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Guerra no Sudão: Rússia cobre apostas ao apoiar ambos os lados no conflito

Moscou firmou uma série de acordos com as Forças Armadas do Sudão, enquanto o Grupo Wagner, seus infames mercenários, continuam a apoiar o grupo adversário
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o desfile do Dia da Vitória na Praça Vermelha, em Moscou, 9 de maio de 2024 [Gabinete de Imprensa do Kremlin/Agência Anadolu]

A Rússia corre para desenvolver e assegurar seus interesses estratégicos no Sudão — cuja guerra civil fez aniversário há um mês —, ao oferecer armas às Forças Armadas enquanto continua a abastecer seus inimigos, na forma do grupo paramilitar conhecido como Forças de Suporte Rápido (FSR), por meio do Grupo Wagner.

Analistas explicaram ao Middle East Eye que a Rússia age para cobrir um vácuo de poder deixado pelos Estados Unidos e para reagir à presença militar da Ucrânia no Sudão, onde algo entre cem e 300 soldados ucranianos operam ao lado do exército.

Neste mesmo contexto, fontes da oposição armada na República Centro-Africana disseram ao Middle East Eye que o Grupo Wagner, companhia de mercenários russos, ainda age na região, ao facilitar o abastecimento de armas dos Emirados Árabes Unidos às milícias das Forças de Suporte Rápido. Conforme os relatos, foram capturados combatentes do Grupo Wagner na República Centro-Africana logo neste início de maio.

A Rússia mantém relações com ambos os lados desde antes da guerra começar em 15 de abril de 2023. Após um ano, o conflito deixou dezenas de milhares de mortos e milhões e milhões de refugiados.

Nas semanas que antecederam a eclosão da guerra, o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, visitou Cartum, capital do Sudão, onde se encontrou separadamente com Abdel Fattah al-Burhan, chefe do exército, e Mohamed Hamdan Dagalo, ou Hemeti, chefe do grupo paramilitar.

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Diversas fontes confirmaram que agentes do Grupo Wagner estão envolvidos no fluxo de armas emiradenses às Forças de Suporte Rápido desde o início da guerra, muito embora o governo militar se recuse a admiti-lo publicamente. O Grupo Wagner também nega operar no Sudão, mas uma fonte diplomática e testemunhas de Cartum e Darfur corroboram a presença de mercenários russo.

Mudança de foco

Há sinais, no entanto, de que a Rússia prioriza no momento suas relações com Burhan e o governo militar.

Falando em árabe de Porto Sudão, no último dia 28 de abril, o vice-chanceler russo Mikhail Bogdanov foi claro em dizer que o chamado Conselho Soberano do Sudão, controlado pelo exército, é quem verdadeiramente representa o povo sudanês.

Bogdanov liderou uma delegação que incluiu oficiais militares e se reuniu com Burhan na cidade do Mar Vermelho, de onde o governo militar opera.

Bogdanov também celebrou a “rica experiência” compartilhada entre Rússia e Sudão em projetos de mineração e insistiu que sua visita deve ampliar a cooperação entre as partes, além de reafirmar o apoio do Kremlin à “legitimidade vigorante no país, representada pelo Conselho Soberano”

Malik Agar, vice-presidente do Conselho, saudou na ocasião a “história de raízes profundas e a cooperação conjunta em diversos setores” e destacou “a necessidade de fortalecer a colaboração e coordenação russo-sudanesa nas plataformas internacionais, sobretudo na Organização das Nações Unidas”.

Armas, combustível e ouro

A visita de Bogdanov não veio do nada. Segundo duas fontes anônimas ligadas ao exército, o chefe da inteligência sudanesa, Ahmed Mufaddal, esteve na Rússia com seus homólogos uma semana antes, com destaque para o emissário especial do presidente Vladimir Putin para África e Oriente Médio.

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Em abril, conforme os relatos, o embaixador russo no Sudão, Andrey Chernovol, abordou Burhan para lhe oferecer armas.

O jornal Sudan Tribune reportou que, durante as conversas entre a delegação de Bogdanov e os oficiais do regime militar sudanês, os russos ofereceram ao exército “ajuda qualitativa irrestrita”. A oferta poderia mesmo envolver “expertise e presença em potencial da Rússia no Sudão”.

Em 4 de maio, um avião de carga registrado na Rússia pousou de Dubai em Porto Sudão. O Ilyushin Il-76MD da Abakan Air fez múltiplas viagens de Dubai a Aktau, no Cazaquistão, nos dias que antecederam o voo à cidade sudanesa, conforme dados compilados pela agência de monitoramento Flightradar 24.

No início de abril, a Rússia começou a exportar diesel ao Sudão através de dois petroleiros — Pavo Rock e Conga —, com uma carga de 70 mil toneladas métricas de combustível que chegou a Porto Sudão nos dias 2 e 5. Outro petroleiro, o Marabella Sun, continua ancorado na cidade, segundo o website Marine Traffic. A Rússia luta para encontrar novos mercados a seus produtos refinados desde fevereiro de 2023, quando a União Europeia lhe instituiu um embargo.

Empresas russas, no entanto, têm interesses no Sudão há muito tempo, em particular na mineração de ouro. Diplomatas ocidentais radicados em Cartum, neste sentido, disseram previamente que o Grupo Wagner trabalhava junto da família Dagalo para contrabandear ouro da região de Darfur.

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Hemeti e sua família são donos de uma empresa de mineração que opera em terra que ele próprio confiscou em Darfur, no oeste do Sudão, em 2017. O líder paramilitar afirma com desenvoltura não se tratar do “primeiro homem a possuir minas de ouro”. No entanto, os recursos certamente lhe abastecem, assim como a suas forças paramilitares, com meios de poder político e econômico.

Ao falar com o Middle East Eye em abril do ano passado, um oficial americano radicado no Norte da África confirmou que um volume estimado de 32.7 toneladas de ouro foi retirado do Sudão por 16 voos fretados, somando US$1.9 bilhão em minérios contrabandeados no período de um ano, entre fevereiro de 2022 e 2023.

Algumas vezes, a carga voa até uma base russa na Síria e pousa sob o disfarce de biscoitos, seguiu o relato. O empreendimento é utilizado por Moscou para ajudar a manter viva sua economia, diante das repercussões da guerra na Ucrânia.

Base no Mar Vermelho

Em Porto Sudão, segundo as fontes ligadas ao exército, a delegação russa também discutiu a presença militar ucraniana no país e as possibilidades de se estabelecer uma base naval de Moscou na costa do Mar Vermelho — algo acordado desde a ditadura de al-Bashir.

Em fevereiro de 2023, Lavrov realizou uma coletiva de imprensa em Cartum na qual disse que um acordo para construção de sua base naval fora “assinado previamente por ambos os países e esperava apenas ser transformado em lei”.

“A Rússia vê uma janela de oportunidade onde quer que os Estados Unidos não operem”, comentou Cameron Hudson, ex-analista do da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) e observador associado do programa para o continente africano do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), think tank sediado em Washington. “Lembre-se: eles não desistiram do sonho de um porto no Mar Vermelho. Penso que suas ações no Sudão servem a este objetivo”.

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De acordo com Jalel Harchaoui, pesquisador do think tank britânico Royal United Services Institute for Defence and Security Studies (RUSI), a visita de Bogdanov ao Sudão equivaleu a um “evento significativo”. Para Harchaoui, “a Rússia tem um acordo de longo prazo sobre Porto Sudão, um recurso estratégico que o general Hemeti, inimigo de Burhan, jamais teve qualquer chance de capturar”.

“Até então, a Rússia apoio Hemeti, mas está ciente de suas dificuldades, sobretudo dado o crescente apoio de Teerã a Burhan”, acrescentou Harchaoui. “Tudo isso dá a Moscou uma oportunidade de ouro. Os russos devem usar sua influência para reduzir a ajuda militar às Forças de Suporte Rápido em troca de um acordo abrangente com Burhan. O Kremlin não está comprometido com os Emirados, que hoje dobram o apoio a Hemeti”.

Jogos diplomáticos

Há registros abundantes das rotas adotadas pelos Emirados para suprir seus parceiros no Sudão. Essas rotas permanecem intactas. Recentemente, pela primeira vez em público, os Estados Unidos sugeriram ter conversado com alguns oficiais emiradenses sobre seu apoio às forças paramilitares.

“Sabemos que ambos os lados recebem ajuda, tanto com armas quanto combustível, em seus esforços para continuar a destruir o Sudão”, disse Linda Thomas-Greenfield, emissária americana na ONU, em 29 de abril. “Sim, contactamos as partes sobre a questão, incluindo nossos colegas nos Emirados”.

Segundo informações, uma delegação americana chegou a Porto Sudão no início de maio, para realizar discussões com oficiais do regime militar. Fontes indicaram que conversas por cessar-fogo, mediadas por Estados Unidos e Arábia Saudita, deviam recomeçar em Jeddah, em solo saudita, em 15 de maio.

Detalhe do apoio iraniano às Forças Armadas do Sudão surgiram nos meses recentes. De acordo com a rede Africa Confidential, drones iranianos — Mohajer-4, Mohajer-6 e Ababil — operam desde janeiro a partir da base aérea de Wadi Saydna, a norte de Cartum.

Kholood Khair — analista sudanesa e fundadora da Confluence Advisory — reconhece que a Rússia busca “reagir à Ucrânia”, assim como preencher o vácuo dos Estados Unidos.

“Rússia, Emirados e Israel jogam dos dois lados, sem escolher favoritos”, explicou Khair. “O momento é este dado que os ucranianos não estão no país há tanto tempo assim, porém, sem jamais alterar sua política, isto é, o apoio a Burhan por parte do Kremlin e à Hemeti pelo Grupo Wagner, que — é claro — é um braço da política externa russa”.

“Assim, os russos têm seu cavalo na corrida não importa quem ganhe”, acrescentou.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 6 de maio de 2024 pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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