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Resistência em um ano que não vai deixar saudades

Ataque à Gaza [Hosny Salah/Pixabay ]
Ataque à Gaza [Hosny Salah/Pixabay ]

“Israel serve de inspiração. É um país que, perto de nós, nada tem, mas graças à fé, à coragem e à determinação de um povo, é um pequeno grande país. Obrigado por vocês existirem.” A declaração, publicada em reportagem do portal UOL, foi feita por Bolsonaro durante solenidade de “Ação de Graças” no Palácio do Planalto no último dia 16 de dezembro, ao cumprimentar o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley.

A representação ideológica do sionismo cristão, que tem em Bolsonaro seu porta-voz na Presidência do País, e saudação ao projeto colonial sintetizam a posição vergonhosa do Brasil consolidada durante o ano de 2020. Um ano que não vai deixar saudades, em que milhares de pessoas no mundo perderam a vida diante da pandemia de covid-19 e o racismo estrutural registrou cenas deploráveis, do Brasil aos Estados Unidos e Palestina ocupada.

Nesta última, os poderosos inimigos históricos identificados pelo revolucionário marxista Ghasan Kanafani em sua obra “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Ed. Sundermann) – regimes árabes, sionismo/imperialismo e burguesia palestina – não deram trégua. Pelo contrário: sob o governo Trump e seu malfadado “acordo do século”, deram um passo além a partir de setembro último.

A frase repetida por refugiados palestinos de que “os árabes venderam a Palestina”, ao se referirem ao papel desses regimes à Nakba – catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada –, segue atual. E a partir dos desastrosos acordos de Oslo em 1993, entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Israel, ganharam um novo ator institucional: a Autoridade Palestina, que termina o ano retomando a cooperação de segurança com o Estado sionista.

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A nova etapa de normalização do apartheid sionista, inaugurada com Emirados Árabes e Bahrein, foi seguida por Sudão e Marrocos – este último em troca do reconhecimento do imperialismo estadunidense de sua ocupação do Saara Ocidental. Agora são seis estados árabes nesse rol, que inclui também Egito e Jordânia.

A diplomacia brasileira saudou cada uma dessas traições, em vergonhosas notas do Itamaraty à imprensa, rompendo pragmatismo que chegou a levar a ditadura empresarial-militar que Bolsonaro faz apologia a votar em 1975 a favor de resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que considerava o sionismo uma forma de racismo – a qual foi anulada em 1991. Ditadura esta que ao momento do golpe de 1964 foi celebrada pelo Estado sionista e contou com sua contribuição.

Para além da cumplicidade histórica do Brasil com o projeto colonial sionista – que se iniciou ainda na votação da partilha da Palestina em um estado árabe e judeu recomendada pela Assembleia Geral da ONU em 29 de novembro de 1947, presidida pelo brasileiro Osvaldo Aranha –, o pragmatismo que até então perdurava separava diplomacia de interesses econômicos.

Paradoxalmente, até Bolsonaro assumir o poder em 2019, isso levava o Brasil a votar a favor dos palestinos na ONU, enquanto firmava cada vez mais acordos com o Estado racista de Israel – uma posição que predomina na América Latina. Essa ruptura com o eixo diplomático se manteve ao longo de 2020, a ponto de o governo Bolsonaro votar em novembro último até mesmo contra a garantia de saúde aos palestinos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em meio à pandemia, na qual Israel não só intensificou o apartheid e colonização na Palestina, como atuou para minar qualquer esforço de auto-organização dos que vivem sob ocupação. Bolsonaro, coerente em seu projeto negacionista e genocida, também se empenhou nessa direção no Brasil em 2020, na contramão da dedicação de cientistas e profissionais da saúde para salvar vidas, bem como da solidariedade ativa.

Em junho último, ainda ao encontro de sua posição vergonhosa, o Brasil votou contra resolução no Conselho de Direitos Humanos da ONU que recomenda a investigação de crimes cometidos pela ocupação sionista no Tribunal Penal Internacional (TPI), bem como reparação pelas violações cometidas.

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Normalização vai além

Lamentavelmente a cumplicidade não se restringe a estados. A normalização alcança até mesmo círculos “progressistas”. Em meio a ataques à campanha de BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel, os denominados “sionistas de esquerda” realizaram em 2020 várias atividades com convidados árabes, bem como de lutas democráticas e identitárias, que ignoraram o pedido dos palestinos para que não normalizassem o apartheid.

Choca o fato de uma das convidadas em mais de uma iniciativa ter sido a filósofa e escritora negra Djamila Ribeiro, que se destaca pela defesa do lugar de fala na luta antirracista. Além disso, como demonstrou ao aceitar dialogar com representação do apartheid sionista, ignora que são lutas inseparáveis, uma vez que armas israelenses que matam palestinos estão também nas mãos das polícias que promovem o genocídio negro e pobre nas periferias brasileiras.

Outra atitude lamentável ocorreu durante as eleições municipais de 2020 no Brasil. Sob pressão da “esquerda sionista”, tão implicada na limpeza étnica na Palestina quanto a chamada “direita”, como denunciam inclusive judeus antissionistas, dois candidatos em São Paulo – Guilherme Boulos (PSOL) e Jilmar Tatto (PT) – retiraram em meio à campanha eleitoral a adesão a carta-compromisso por embargo militar a Israel. Esta continha a assinatura de mais de 20 candidatos da esquerda em diversas cidades brasileiras, a maioria do PSTU, mas também do PSOL.

Solidariedade e luta

Um balanço deste ano trágico não poderia omitir essas denúncias e trazer a reivindicação a potenciais aliados brasileiros de que repensem sua posição e atendam ao chamado dos palestinos por solidariedade. Nem deixar de enfatizar que, em meio a um período particularmente desafiador, houve vitórias importantes do BDS no País.

Em repúdio ao plano de anexação na Palestina ocupada apresentado por Trump, dezenas de parlamentares, ex-presidentes, ex-ministros e artistas brasileiros se somaram a nomes no sul global em um manifesto por embargo militar a Israel. Entre eles, os cantores Chico Buarque e Caetano Veloso. Cerca de um mês depois, em julho último, parlamentares do PSOL e do PT em diversos estados da Federação protocolaram simultaneamente requerimentos de informação sobre relações comerciais e militares entre Brasil e Israel – abrangendo as polícias federal, civis e militares locais, bem como Exército.

Além disso, oito cineastas, que representavam mais da metade dos curtas brasileiros no TLVFest israelense neste ano, retiraram suas produções do festival, atendendo ao apelo dos palestinos contra o pinkwashing sionista para encobrir seus crimes contra a humanidade.

Mostra de que a solidariedade internacional também não dá trégua e se fortalece. A inspiração vem da heroica resistência palestina, que ecoa, dia a dia, as palavras de seu poeta Mahmoud Darwish: “Nós sofremos de um mal incurável que se chama esperança. Esperança de libertação e de independência. Esperança de uma vida normal, na qual não seremos nem heróis nem vítimas. Esperança de ver nossas crianças irem à escola sem riscos. Para uma mulher grávida, esperança de dar à luz um bebê vivo, num hospital, e não uma criança morta diante um posto de controle militar. Esperança de que nossos poetas verão a beleza da cor vermelha nas rosas e não no sangue. Esperança de que esta terra reencontrará seu nome original: terra de amor e de paz. Obrigado por carregar conosco o fardo dessa esperança.”

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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