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Vidas negras devem sempre importar: desvinculando justiça social da política sazonal dos EUA

Manifestantes marcham na Praça Black Lives Matter em protesto contra a brutalidade policial e o racismo, em Washington DC, Estados Unidos, 6 de junho de 2020 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]
Manifestantes marcham na Praça Black Lives Matter em protesto contra a brutalidade policial e o racismo, em Washington DC, Estados Unidos, 6 de junho de 2020 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]

Depois de assistir ao primeiro debate presidencial dos Estados Unidos em 29 de setembro, não restam dúvidas sobre a degeneração do discurso político entre as elites dominantes da América.

Logo após o debate entre o Presidente dos Estados Unidos Donald Trump e o candidato democrata à presidência Joe Biden, a maioria das análises se concentrou principalmente nos insultos pessoais e xingamentos, o que, merecidamente, rendeu ao evento o título de “pior debate presidencial na memória recente”.

Apoiadores de ambos os partidos, entretanto, correram para minimizar os danos infligidos pelo mau desempenho de seus respectivos candidatos, elevando certos pontos e convenientemente omitindo outros.

No entanto, algumas questões foram amplamente discutidas, permitindo-nos formular opiniões bem fundamentadas sobre as posições de ambos os candidatos sobre determinados assuntos, como racismo e brutalidade policial.

Protestos em massa ainda em curso, distúrbios ocasionais e violência policial persistente em muitas cidades americanas deveriam ter elevado a conversa a tal ponto que o racismo endêmico nos Estados Unidos de fato contribuísse muito à formulação de perguntas e respostas no debate de quinta-feira à noite. No entanto, aconteceu o contrário.

Embora o presidente Trump tenha falhado claramente em condenar “supremacistas brancos e milícia”, concedendo o benefício da dúvida a tais associações desprezíveis, como os infames Proud Boys, Biden não se saiu-se tão melhor.

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A posição de Trump não foi particularmente chocante. Afinal, em 2015, então candidato, acusou insistentemente o México de enviar criminosos, traficantes e estupradores aos Estados Unidos, além de proibir a entrada de diversos cidadãos muçulmanos no país, em 2017 e, mais recentemente, referir-se ao movimento de justiça social Black Lives Matter como “símbolo de ódio”.

Manifestantes marcham na Praça Black Lives Matter em protesto contra a brutalidade policial e o racismo, em Washington DC, Estados Unidos, 6 de junho de 2020 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]

Manifestantes marcham na Praça Black Lives Matter em protesto contra a brutalidade policial e o racismo, em Washington DC, Estados Unidos, 6 de junho de 2020 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]

Contudo, é a posição de Biden neste debate que revelou-se verdadeiramente precária.. Apesar de golpes ocasionais contra Trump, ao chamá-lo de racista, por exemplo, Biden falhou tristemente em articular um programa coerente de justiça racial que priorizaria a luta pela igualdade e direitos aos negros e outras minorias dos Estados Unidos.

Surpreendentemente, não houve referência à proibição de viagens intrinsecamente racista de pessoas provenientes de países predominantemente muçulmanos. Pior ainda, nenhuma referência ao Islã, aos muçulmanos ou à islamofobia, sendo esta o fator chave para unificar a maioria dos grupos ultranacionalistas e supremacistas nos Estados Unidos e em outras partes do mundo.

Em vez disso, Biden tentou encontrar um meio termo que lhe permitisse se autodenominar como alternativa a Trump em questões raciais, sem parecer “radical” aos olhos de eleitores brancos. O resultado foi uma aceitação tímida e marginal da responsabilidade em relação à “injustiça sistêmica neste país”, mas sem confrontar seriamente a hegemonia branca que construiu-se e lucrou com o racismo sistêmico.

Decerto, ninguém esperava que Biden, patrono do infame projeto de lei sobre crime de 1994, durante o governo Bill Clinton – responsável pelo encarceramento em massa de negros, em grande maioria – se transformasse subitamente na alegoria de paixão e eloquência, no que concerne á justiça social, como nas figuras de Cornel West, Noam Chomsky ou Angela Davis. No entanto, seu fracasso em enunciar um programa minimamente responsivo às demandas, capaz de tranquilizar eleitores negros e de outras minorias, ainda surpreendeu.

Seus primeiros comentários pareceram fracos, como se tentasse abster-se de condenar abertamente o racismo no país. Biden falou sobre “equidade e igualdade”, “decência”, “Constituição” e comprometeu-se a “tentar exigir equidade para todos, igualdade para toda a América”.

No que diz respeito aos detalhes, porém, pareceu engasgar-se diante de críticas mais duras, ao brevemente referir-se a gangues de manifestantes brancos “vomitando bile antissemita” e, mais tarde, lamentar a discriminação contra “católicos irlandeses”.

E quanto ao racismo antinegro?

Homens negros têm 2.5 vezes mais probabilidade de serem mortos pela polícia do que qualquer outro grupo nos Estados Unidos, embora os negros tenham duas vezes mais chances de estar desarmados do que os brancos quando mortos a tiros. Além disso, de acordo com um grande estudo citado na revista Nature, “oficiais brancos enviados a bairros negros dispararam suas armas cinco vezes mais do que oficiais negros enviados a chamadas semelhantes para os mesmos bairros”.

Consequentemente, reduzir a discussão sobre racismo na América à brutalidade policial é, por si só, dissimuladamente racista, pois insiste em ignorar as raízes do racismo que vão desde a marginalização social e econômica até os estereótipos culturais.

Biden, muitas vezes exaltado como a escolha “progressista”, não só perdeu a oportunidade de reconhecer os conflitos sociais e de classe como os principais alicerces do “racismo sistêmico” da América, mas também minimizou as causas e a magnitude da brutalidade policial. “Veja, a grande maioria dos policiais são homens e mulheres bons, decentes e honrados. Eles arriscam suas vidas todos os dias para cuidar de nós, mas há algumas maçãs podres. E quando aparecem, quando as encontram, isso tem de ser resolvido”, afirmou Biden. Essa linguagem neutra dificilmente é reconfortante para as famílias de Breonna Taylor, George Floyd e milhares de outras famílias afro-americanas que perderam entes queridos nos últimos anos devido à violência policial com forte motivação racial.

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Evidente, o racismo antinegro e a violência policial não são eventos isolados, mas são parte integrante de uma doença de longo alcance que tem atormentado a América há muito tempo.

Além disso, nem Trump, tampouco o próprio Partido Republicano, devem ser unicamente responsabilizados pelas atitudes contra negros, minorias e imigrantes, que marcaram todos os governos dos Estados Unidos na história recente. Pode ser preocupante lembrar que foi o Presidente Barack Obama quem referiu-se a manifestantes negros em Baltimore como “criminosos e bandidos que destruíram o lugar”, ao impor um severo bloqueio militar na cidade, em abril de 2015.

Igualmente relevante, foi também o governo democrata Obama que, entre 2009 e 2015, deportou mais de 2.5 milhões de pessoas por meio de ordens de imigração, “mais do que a soma de todos os presidentes do século XX”, segundo a rede ABCNews.

Isso não quer dizer se os republicanos são melhores ou piores do que os democratas no que diz respeito aos assuntos referentes a racismo, injustiça social e imigração. No entanto, a julgar pelos legados das administrações atual e anterior – representando ambos os partidos – torna-se claro que as elites governantes dos Estados Unidos não se preocupam com a situação das minorias ou jogam a cartada racial como uma tática política que serve às suas agendas fugazes durante o período eleitoral.

Ou seja, caso Trump conquiste outro mandato na Casa Branca ou caso Biden encene uma reviravolta no próximo mês, a luta por justiça social deve continuar.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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