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Como o mundo passou a entender a Nakba

Reconhecendo a catástrofe da expulsão palestina em 1948, o termo árabe "Nakba" surgiu como um conceito político, usando a memória coletiva como resistência
Pessoas participam de manifestação com bandeiras e faixas palestinas no 74º aniversário da Nakba, em Ramallah, Cisjordânia, em 15 de maio de 2022. [Issam Rimawi - Agência Anadolu]

Em 22 de novembro de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas solicitou à Divisão da Secretaria de Direitos Humanos da Palestina que “dedicasse as atividades de 2023 para comemorar o 75º aniversário da Nakba”.

A população palestina sofreu a Nakba – a palavra árabe para “catástrofe” – quando sua sociedade foi destruída com a criação de Israel em 1948. O pedido oficial da ONU reconhece seu papel na expulsão forçada de mais de 700.000 palestinos de suas terras, por meio da resolução 181, o “Plano de Partição”, que propôs a divisão do território da Palestina em dois estados, um árabe e um judeu.

Naquela época, o mundo comemorava a criação do Estado judeu como uma resposta ao genocídio perpetrado contra os judeus pelo nazismo. Muito poucos fora do mundo árabe prestaram atenção à expulsão de centenas de milhares de pessoas de suas casas. Isso continuou de tal forma que foram necessárias décadas para que o termo “Nakba” ganhasse força como um conceito político que identificasse a catástrofe sofrida pelos palestinos.

Apesar de ter aparecido em um livro de 1948 do intelectual sírio Constantin Zureik, o uso popular da palavra “Nakba” teve vida curta até o final da década de 1980. Embora seja amplamente invocada hoje, ela não fez parte da narrativa política palestina por quase 40 anos. Isso não significa que a catástrofe era desconhecida, muito pelo contrário; ela era frequentemente mencionada como parte da memória coletiva.

Por esse motivo, é interessante examinar por que a palavra “Nakba” quase não foi usada por décadas, para depois ressurgir como um conceito político em si, com o original árabe sendo usado sem tradução em todos os idiomas, incluindo o hebraico.

A importância das palavras

Em qualquer questão política, muito menos no conflito palestino-israelense, as palavras desempenham um papel importante na formação do discurso público. A inclusão e exclusão de palavras, uma escolha deliberada e não deixada ao acaso, faz parte de um jogo dialético que busca impor uma narrativa, seja localmente ou na mídia de massa.

    A disseminação do termo “Nakba” desmascarou a versão israelense da história, que apaga a destruição sistemática da sociedade palestina pré-existente

O uso, a repetição e a internacionalização de um conceito podem ter uma conotação positiva ou negativa. Talvez o caso mais conhecido seja como o termo “apartheid” – em seu próprio idioma, o africâner – passou a ser entendido globalmente como um sistema de exclusão e segregação, e não apenas em relação à população negra da África do Sul.

LEIA: NAKBA: o povo palestino continuará resistindo.

A revolta palestina de 1987 permitiu que uma palavra árabe, pela primeira vez na história do conflito, penetrasse na mídia internacional e até mesmo no discurso de Israel, sem conotação pejorativa. A Intifada, que significa literalmente “sacudir” ou tirar algo (incômodo) dos ombros, mais tarde passou a ser identificada – e, até certo ponto, legitimada – como a luta pacífica dos palestinos contra o poderoso exército israelense.

Outras palavras que ganharam reconhecimento internacional incluem a palavra árabe fedayeen (combatentes), embora inicialmente tenha sido reivindicada apenas por aqueles que apoiavam a luta da resistência palestina. Naksa, que significa retrocesso ou derrota, tornou-se amplamente usada em referência à guerra de junho de 1967, quando o exército israelense ocupou a Cisjordânia, Jerusalém Oriental, a Faixa de Gaza, a Península do Sinai egípcia e as Colinas de Golã sírias. A expressão, entretanto, não tem o mesmo peso fora do mundo árabe.

Até 1987, a maioria dos meios de comunicação ocidentais era influenciada pela versão israelense dos eventos. Um exemplo disso é a guerra árabe-israelense de 1973, que ficou conhecida no Ocidente como a “Guerra do Yom Kippur”, quando os árabes geralmente se referem a ela como a “Guerra de Outubro” ou a “Guerra do Ramadã”.

Durante décadas, a Nakba que os palestinos sofreram em 1948 esteve ausente de qualquer narrativa que abraçasse a versão israelense da história, que celebra sua condição de Estado e sua “independência”, ao mesmo tempo em que apaga a destruição sistemática da sociedade palestina pré-existente.

No entanto, a transmissão oral, a poesia, as histórias sobre a terra perdida, a pesquisa realizada por intelectuais palestinos e a disseminação do termo Nakba para denotar a catástrofe sofrida pelo povo palestino em 1948 conseguiram desmentir a versão disseminada por Israel.

O debate sobre 1948

A expulsão da maioria dos palestinos de sua terra natal é inegável do ponto de vista histórico e foi exaustivamente documentada. Um exemplo dessa evidência é uma carta do primeiro-ministro israelense David Ben Gurion para seu filho, na qual ele expressou sua crença de que os palestinos não sairiam voluntariamente. Ele escreve sem rodeios: “Devemos expulsar os árabes e tomar seus lugares”.

Da mesma forma, Yosef Weitz, diretor de terras e florestamento do Fundo Nacional Judaico (JNF), escreveu em seu diário: “Deve ficar claro que não há espaço para os dois povos neste país.” É claro que os palestinos não estavam preparados para abandonar suas terras, muito menos para enfrentar a expulsão em massa. A maioria achava que voltaria e até guardou as chaves de suas casas, mas foi proibida de fazer isso.

A expulsão começou antes do fim do Mandato Britânico, mas em junho de 1948 a destruição das cidades árabes foi implementada como política oficial. Em Tel Aviv, Weitz se reuniu com Ben Gurion, que havia se tornado primeiro-ministro, para apresentar a ele um memorando de três páginas intitulado “Retroactive Transfer: A Scheme for the Solution of the Arab Question in the State of Israel” (Transferência retroativa: um esquema para a solução da questão árabe no Estado de Israel). Lá, foi solicitado que se evitasse o retorno dos árabes às suas casas, destruindo suas aldeias durante as operações militares, e que se estabelecessem judeus nas cidades e aldeias árabes.

Um idoso palestino e uma criança podem ser vistos durante a Nakba, em 1948 [Hanini/Wikipedia]

As evidências fornecidas pelos próprios arquivos do movimento sionista demonstram uma linha de pensamento semelhante entre os diferentes líderes judeus que consideravam necessária a desapropriação e o exílio dos palestinos. Portanto, o dano causado aos palestinos em 1948 não foi acidental ou uma consequência não intencional da guerra.

A novidade é que, nos últimos anos, como resultado de vários estudos historiográficos e de seu uso na mídia, o conceito de Nakba reapareceu e agora faz parte da narrativa dominante.

Os estudos sobre a Nakba palestina se multiplicaram desde a década de 1980 e se concentraram em relatos orais que desmascararam o mito israelense da “fuga dos árabes”. Isso também se deve à desclassificação de arquivos e documentos da guerra de 1948 pelo Reino Unido e por Israel, o que favoreceu o debate acadêmico sobre o que aconteceu na Palestina.

LEIA: A verdade aparece sobre o encobrimento dos fatos da Nakba por Israel

O trabalho de 2004 de Rosemary Esber, Rewriting The History of 1948: The Birth of the Palestinian Refugee Question Revisited, descreveu a situação: “As investigações de Nazzal e Morris foram os estudos mais detalhados e sistemáticos que tentaram explicar as causas do êxodo palestino de 1948… mas os resultados da avaliação da documentação, ampliados pelas histórias orais daqueles que viveram a expulsão, mostram que 94% da população palestina foi deslocada… expulsa pela violência e pelo ataque direto das forças sionistas”.

Após a criação do Estado de Israel, a figura do refugiado palestino se consolidou à medida que o tempo passava e os palestinos não tinham permissão para retornar às suas terras e recuperar suas propriedades. A primeira tendência de muitas famílias foi permanecer em locais próximos aguardando o momento de retornar, mas, após décadas de exílio forçado, a maioria se dispersou para vários países e uma minoria conseguiu ficar dentro dos limites do novo Estado de Israel.

No entanto, os laços familiares e de amizade entre os habitantes das mesmas aldeias ou acampamentos tornaram-se fundamentais e permitiram a coesão necessária para manter a identidade e fortalecer a memória coletiva palestina, na qual a experiência e a memória da Nakba como uma história-identidade histórica adquiriram um papel relevante. Consequentemente, a Nakba deixou de ser uma história vivencial e passou a fazer parte do discurso político da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Esse foi o caso, apesar dos esforços historiográficos israelenses para apagar o registro da limpeza étnica.

Nakba como um conceito político

Constantin Zureik foi o primeiro a usar o conceito de “Nakba” sobre o que aconteceu em 1948 em seu livro “Ma’na al-Nakba” (O significado do desastre), publicado em árabe em agosto de 1948 e depois traduzido para o inglês em 1956 por Richard Bayly Winder, do Departamento de Línguas Orientais da Universidade de Princeton, nos EUA.

Zureik utilizou uma palavra aplicada a infortúnios ou calamidades para dar a ela um conteúdo social, embora seu livro não tenha sido amplamente divulgado na época fora do círculo de alguns intelectuais árabes. Ele também não se tornou a “versão oficial” do relato palestino sobre o que aconteceu em 1948.

O principal objetivo de Zureik era entender a magnitude da catástrofe no mundo árabe de um ponto de vista regional e geopolítico. Para sua análise, a “questão palestina” era secundária, assim como o deslocamento populacional que havia ocorrido, embora ele não deixasse de mencioná-lo.

Seu livro é um texto de análise crítica dos líderes dos países árabes durante a criação do Estado judeu.

Na mesma linha estavam outras obras da época, como as de Musa al-Alami, Muhammad Nimr al-Khatib, Muhammad Nimr al-Hawwari, ou a do historiador palestino Arif al-Arif, que usou o termo em sua obra monumental Al-Nakba: Nakbat Bayt al-Maqdis wa-l-Firdaws al-Mafqud, 1947-1952 (O desastre: o desastre de Jerusalém e o paraíso perdido).

Gráfico da Nakba

Como o historiador palestino Adel Manna corretamente aponta, as primeiras obras escritas após 1948 foram contribuições importantes para a compreensão árabe do evento traumático e das condições para lidar com seus resultados, mas onde a questão palestina ficou em segundo plano.

Devido à devastação causada pela Nakba, os palestinos não escreveram, a princípio, sua própria história. Os afetados transmitiram a experiência do que aconteceu de geração em geração oralmente, sem a necessidade urgente de encontrar uma definição exata do que aconteceu.

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Costuma-se dizer que a história é escrita por aqueles que vencem e, nesse caso, a regra é confirmada. Os fundadores de Israel negaram sistematicamente a expulsão da população palestina e a mídia ocidental – a mais influente do mundo – transmitiu prontamente a versão israelense, afirmando que os palestinos fugiram por ordem dos países árabes e que não houve nenhum tipo de expulsão. No entanto, vários pesquisadores refutaram essa versão das “supostas ordens”.

O historiador palestino Walid Kalidi, um dos fundadores do Instituto de Estudos Palestinos, com sede em Beirute, garante que:

“Em 15 de maio, a Arab News Agency informa que estações de rádio árabes anunciaram três declarações do alto comitê. A primeira pede que os membros do Conselho Muçulmano Supremo, os funcionários dos tribunais muçulmanos e Waqfs, os imãs e os servidores das mesquitas continuem com suas funções. A segunda declaração solicita que os funcionários do departamento carcerário continuem com suas tarefas, e a terceira solicita que todos os funcionários árabes permaneçam em seus postos. Certamente, essa é uma maneira muito estranha de ordenar a evacuação do país”.

O principal obstáculo para a criação e a manutenção do Estado judeu na Palestina foi – e ainda é, várias décadas depois – a presença de uma população autóctone que continua ligada à sua terra. A negação da Nakba está, consequentemente, intimamente relacionada à negação da Palestina e dos palestinos pelos diferentes governos israelenses. O esforço para negar a expulsão e a desapropriação reside no fato de que “se esta é a Palestina e não a terra de Israel, então vocês são conquistadores e não cultivadores da terra; vocês são invasores. Se esta é a Palestina, então ela pertence às pessoas que viviam aqui antes de vocês chegarem”.

O paradigma da propaganda pró-Israel foi contestado por vários pesquisadores palestinos. Entretanto, o surgimento dos Novos Historiadores marcou um ponto de inflexão e possibilitou o questionamento da versão oficial israelense, causando um impacto no imaginário coletivo europeu e norte-americano. Os acadêmicos israelenses que deram crédito às alegações palestinas de expulsão agora questionavam sua sociedade e o discurso oficial.

Registro da história

Como geralmente acontece diante de um evento traumático coletivo, é preciso esperar por uma mudança geracional para começar a reconstruir a própria história de forma ordenada. No início, o objetivo de alguns intelectuais palestinos era tentar refutar a versão israelense dos eventos, em vez de contar sua própria história. É possível pensar que o efeito do choque causado pela destruição de sua sociedade implicou a ausência da palavra nakba na mídia ou no discurso acadêmico.

Entretanto, a catástrofe em si, mesmo sem o uso da palavra Nakba, sempre esteve presente. Como a antropóloga Diana Allan ressalta:

“Na década de 1950 e no início da década de 1960, outros termos mais eufemísticos foram usados para descrever os eventos de 1948, incluindo al-ightisab (o estupro), al-ahdath (os eventos), al-hijra (o êxodo), lamma sharna wa tlana (quando escurecemos nossos rostos e fomos embora). Como a sociedade palestina havia sido destruída, as famílias palestinas foram deixadas para sobreviver enquanto aguardavam a libertação de suas terras com a ajuda dos países árabes que permitiram que elas voltassem para suas casas. Mas isso não aconteceu”.

Somente na década de 1960, o surgimento da OLP como uma força organizadora para os palestinos e a produção de vários intelectuais palestinos permitiram uma aproximação do que aconteceu em 1948. É interessante que, naquela época, quando a expulsão de 1948 era mencionada, vários documentos palestinos divulgados em todo o mundo usavam palavras como massacre, ocupação e expulsão, e insistiam na desapropriação da maioria dos habitantes originais da Palestina sem recorrer à palavra Nakba.

Isso pode ser verificado por meio da análise de documentos e declarações políticas dos principais representantes palestinos, incluindo o então presidente da OLP, Yasser Arafat.

Yasser Arafat, então presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), fala a representantes da Organização da Unidade Africana (OUA), em Kampala, Uganda, julho de 1972 [AFP via Getty Images]

Além disso, no primeiro documento importante dos princípios da OLP – a famosa Carta Nacional Palestina de 1964 – a palavra Nakba não é mencionada nem uma vez. Em 13 de novembro de 1974, Arafat compareceu à Assembleia Geral da ONU. Depois de citar diferentes lutas dos povos do Terceiro Mundo, Arafat volta ao surgimento da questão palestina no século XIX, com o aparecimento do que ele chama de invasão judaica de 1881 e a presença de 1.250.000 palestinos em 1947.

Lá ele diz que o movimento sionista “ocupou 81% da área total da Palestina, expulsando um milhão de árabes e ocupando 524 cidades e vilas, destruindo completamente 385 no processo… A raiz da questão palestina está aqui… É a de um povo expulso de sua terra natal, disperso e vivendo principalmente no exílio e em campos de refugiados… milhares de nosso povo foram mortos em suas próprias vilas e cidades, dezenas de milhares foram forçados a deixar suas casas e a terra de seus pais sob a mira de armas… ninguém que tenha testemunhado a catástrofe será capaz de esquecer sua experiência.” O discurso de Arafat nas Nações Unidas está em árabe e, na transcrição em inglês, a palavra catástrofe aparece três vezes.

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Entretanto, o termo Nakba não é usado como sinônimo de catástrofe porque, em 1974, essa palavra como conceito não havia sido incorporada à linguagem política, nem mesmo entre os palestinos. Se alguém se der ao trabalho de procurar a palavra Nakba no Journal of Palestine Studies, a prestigiosa revista política e acadêmica dirigida por Rashid Khalidi, encontrará quase 600 artigos que a mencionam; no entanto, quase todos são da década de 1990 em diante. Isso significa que, embora a palavra Nakba talvez fosse usada na linguagem cotidiana de muitas famílias, ela não fazia parte do discurso político.

Na Conferência Internacional sobre a Questão da Palestina, realizada pelas Nações Unidas em Genebra, de 29 de agosto a 7 de setembro de 1983, um grupo de intelectuais renomados apresentou o que eles chamaram de “Perfil do povo palestino”. Lá, Edward Said, Ibrahim Abu-Lughod, Janet Abu-Lughod, Muhammad Hallaj e Elia Zureik contaram a história de seu povo:

“A situação atual do povo palestino tem suas raízes em um evento histórico concreto: o desmembramento da Palestina em maio de 1948. O surgimento de Israel, então em uma parte da Palestina, teve duas consequências: Primeiro, os palestinos foram expulsos… Segundo, houve a incorporação legal e administrativa das áreas restantes da Palestina pela Jordânia e pelo Egito… Ambas as partes foram ocupadas por Israel em 1967. Assim, toda a área da Palestina obrigatória agora é controlada exclusivamente por Israel.”

Nessa reunião, o desmantelamento da sociedade palestina e os preparativos para a eliminação dos palestinos são mencionados, mas a palavra Nakba como tal também não aparece. Além disso, em novembro de 1988, o Conselho Nacional Palestino se reuniu e proclamou formalmente a independência da Palestina. No documento aprovado, é feita referência às expulsões de 1948, mas a palavra Nakba também não aparece. Um mês depois, Arafat se dirigiu às Nações Unidas em Genebra para declarar a independência do Estado da Palestina sem usar a palavra Nakba.

Na mesma época, o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) nasceu e publicou sua primeira carta pública em agosto de 1988, sem que a palavra Nakba aparecesse. Levou vários anos até que a palavra como tal aparecesse em sua página oficial como uma seção para explicar o que aconteceu em 1948.

Em termos gerais, podemos afirmar que a expressão nakba não foi usada publicamente e de forma recorrente como conceito político até a década de 1990.

A “Nakba” ressurge

Diversos historiadores palestinos – entre eles os renomados Walid Khalidi e Salman Abu Sitta – dedicaram-se a expor o planejamento e a expulsão dos palestinos de sua terra. No entanto, o surgimento dos Novos Historiadores de Israel permitiu que a grande mídia e os intelectuais europeus e americanos ecoassem a “nova versão” dessa história.

Se até então a narrativa palestina era considerada “propaganda” diante da “verdade” israelense, depois que os Novos Historiadores divulgaram suas pesquisas, ela não pôde mais ser ignorada

Se até então a narrativa palestina era considerada “propaganda” diante da “verdade” israelense, quando os Novos Historiadores divulgaram suas pesquisas, não foi mais possível ignorar que havia outra história, pois, dentro da mesma sociedade israelense, surgiram acadêmicos que questionaram de forma documentada e contundente a repetida narrativa israelense.

Por meio de seus textos, The Birth of Israel: Myths and Realities, de Simha Flapan, The Birth of Israel: Myths and Realities, de Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem, 1947-1949, Britain and the Arab-Israeli Conflict, 1948-1951, de Ilan Pappé, The Palestinian People: A History, de Baruch Kimmerling e Joel Migdal, e Collusion Across the Jordan, de Avi Shlaim, para citar apenas alguns, questionaram a versão israelense da história e reconheceram que a expulsão em massa da população palestina havia ocorrido.

É interessante observar que, embora seus textos relatassem o que aconteceu no período entre 1947 e 1949, eles também demoraram a incorporar a palavra nakba como um conceito associado à catástrofe de 1948.

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Em 1988, Benny Morris publicou o artigo “The New Historiography: Israel Confronts Its Past” (A nova historiografia: Israel confronta seu passado) na revista judaico-americana Tikkun, onde ele explica o surgimento dos novos historiadores que questionavam a história oficial.

Entretanto, ao analisar a expulsão da população palestina, ele não usa a palavra nakba, mas “êxodo”. No índice analítico do livro de Pappé mencionado acima, publicado em 1994, a palavra nakba não aparece, embora vários anos depois ele mesmo tenha se tornado um dos autores mais prolíficos ao usá-la para explicar a expulsão da população palestina em 1948.

Em seu livro, Co-memory and Melancholia: Israelis Memorializing the Palestinian Nakba, a socióloga Ronit Lentin tenta rastrear o uso do conceito de nakba e descobriu que o primeiro trabalho acadêmico em hebraico que o utilizou foi o de Kimmerling, em 1999.

Entretanto, Kimmerling e Migdal publicaram seu livro em 2003 e usaram a expressão Jil al-Nakba (A Geração do Desastre) para explicar a experiência do exílio, embora sem dar muita importância ao conceito de nakba em si. Além disso, eles dedicam o capítulo “The Meaning of the Disaster” (O significado do desastre) para descrever o processo de expulsão palestina entre 1947 e 1948, usando o mesmo título do livro de Zureik, embora não mencionem o intelectual sírio em todo o livro.

O surgimento dos New Historians abriu uma brecha na cobertura da mídia ocidental e israelense sobre o relato hegemônico de Israel quando contrastado com documentos do próprio exército israelense. Os Acordos de Paz de Oslo de 1993 restabeleceram o debate sobre o que aconteceu em 1948, já que uma das demandas levantadas pelos palestinos era o retorno dos refugiados.

O reconhecimento da existência de refugiados implicou, para os acordos, o reconhecimento de sua expulsão, que, por sua vez, tornou-se sinônimo de Nakba. Embora a questão dos refugiados palestinos de 1948 tenha reaparecido no processo de negociação, na Declaração de Princípios de 13 de setembro de 1993, a palavra refugiados aparece apenas uma vez e como uma das muitas questões a serem tratadas no futuro.

A exigência de uma solução para o problema dos refugiados palestinos permitiu a exposição do que aconteceu em 1948. Até então, a versão palestina da expulsão tinha o apoio dos Novos Historiadores israelenses.

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Isso também explica por que várias organizações não governamentais surgiram, juntamente com palestinos deslocados em Israel, e formaram um comitê de ação em março de 1995 para reafirmar o direito de retorno de todos os palestinos. Nasceu a Associação para a Defesa dos Direitos dos Palestinos (ADRID) entre os palestinos de 1948, assim como as marchas anuais para suas aldeias despovoadas em comemoração ao Dia da Nakba.

Em 1998, para comemorar o 50º aniversário da expulsão de 1948, Arafat declarou 15 de maio como o Dia da Nakba, transformando o que aconteceu em 1948 em um conceito político. Após sua morte em 2004, Mahmoud Abbas o substituiu na Autoridade Nacional Palestina e, como tal, em 29 de novembro de 2012, ele falou perante a Assembleia Geral da ONU. Lá, ele afirmou claramente:

“O povo palestino, que milagrosamente se recuperou das cinzas da Nakba de 1948, que tinha como objetivo extinguir seu ser e expulsá-lo para desenraizar e apagar sua presença, que estava enraizada nas profundezas de sua terra e nas profundezas da história. Naqueles dias sombrios, quando centenas de milhares de palestinos foram arrancados de suas casas e deslocados dentro e fora de sua terra natal, expulsos de seu belo, acolhedor e próspero país para campos de refugiados em uma das mais terríveis campanhas de limpeza étnica e desapropriação da história moderna.”

Como podemos ver, o conceito de Nakba já havia entrado na linguagem política da liderança palestina.

O uso do termo Nakba pelos palestinos e seu uso na mídia após os Novos Historiadores também influenciaram alguns políticos israelenses. Shlomo Ben-Ami, ex-ministro das Relações Exteriores e historiador israelense, escreveu vários livros sobre o conflito israelense-palestino.

Mulher palestina com a bandeira nacional de seu povo em frente às suas terras [foto de arquivo]

Em Israel, entre la guerra y la paz (Israel, entre a guerra e a paz), publicado em 1999, ele apresenta a linha tradicional israelense em relação aos eventos de 1948. Entretanto, em seu livro de 2005, Scars of War, Wounds of Peace: The Israeli-Arab Tragedy, Ben-Ami reconhece as “atrocidades e os massacres cometidos contra a população civil”  e usa o termo “Naqba” para explicar a dissolução da comunidade árabe palestina em 1948.

Memória como resistência

Enquanto Israel comemora seu Dia da Independência todos os anos em 15 de maio, os palestinos e seus apoiadores em todo o mundo comemoram a Nakba como o massacre de palestinos e a expulsão de suas terras. No entanto, por mais de 75 anos, a narrativa da desapropriação palestina tem sido um campo de luta contra o negacionismo israelense.

Desde a Primeira Intifada, alguns acadêmicos israelenses começaram a desconstruir essa história oficial, e o paradigma começou a ruir. Nas palavras do israelense Eitan Bronstein, da Associação Zochrot: “Se a Nakba nunca aconteceu, é impossível que hoje milhões de palestinos sejam refugiados exigindo a restituição de seus direitos”.

As tentativas políticas de comemorar a Nakba como um evento singular e passado, em vez de um processo contínuo, estão fadadas ao fracasso. A memória sempre foi fundamental para a resistência palestina. Ao insistir em identificar seu país, cidades e vilas por seus nomes originais, gerações de palestinos fortaleceram uma memória coletiva que Israel se esforçou para apagar.

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O conceito de Nakba não encontrou traduções em outros idiomas que consigam abranger todas as nuances de seu significado no árabe original. A Nakba não está relacionada apenas a um aspecto puramente epistemológico, mas também abrange aspectos culturais, ideológicos, políticos, comunicacionais e até mesmo midiáticos. Dessa forma, a Nakba não se refere apenas a aspectos da destruição de grande parte da Palestina e da expulsão de seus habitantes originais que, embora tenham resistido, não conseguiram impedir a expulsão em massa e os massacres em 1948.

O aparecimento da palavra Nakba nos principais meios de comunicação pode ser considerado uma conquista política e de relações públicas para os palestinos. Agora, quando o aniversário da fundação do Estado de Israel é comemorado, a mídia de massa é forçada a explicar a catástrofe sofrida pelos palestinos usando a palavra Nakba em árabe.

Não é mais apenas uma catástrofe como tantas outras, é a Nakba, com todo o peso que o uso da palavra em árabe implica. O domínio do discurso e os espaços de mídia são fundamentais no conflito palestino-israelense. De acordo com o pesquisador palestino Amjad Alqasis, também é imperativo que os palestinos criem seu próprio discurso, o que pode ser alcançado com a introdução e o estabelecimento de seu próprio idioma e terminologia.

Israel dominou esses espaços linguísticos internacionalmente por décadas. No entanto, a Nakba é um processo que continua e provoca várias práticas de resistência que levaram o governo israelense a até mesmo legislar sobre ela, proibindo a comemoração dessa data.

O emprego de certas linguagens e termos, como Nakba e Intifada, reflete mudanças importantes, que vão desde a reivindicação da identidade e da agência de um povo até a mudança de narrativa na mídia, o que tem um impacto profundo no conflito palestino-israelense.

A grande mudança em relação aos anos anteriores é que os palestinos não aparecem mais como meros “refugiados” que foram supostamente “ordenados” a fugir da Palestina pelos governos árabes, como afirmava a versão israelense. Em vez disso, agora é um fato estabelecido que eles são vítimas de expulsão de seu território.

A legitimidade obtida na esfera da mídia também é transferida para a esfera política e dá maior apoio à luta por seus direitos, seja para o estabelecimento de um estado independente ou para reforçar a demanda pelo retorno à terra dos refugiados expulsos em 1948.

E a palavra Nakba, que deu um salto do pessoal para o político, foi a chave para essa transformação.

Artigo originalmente publicado em inglês no Middle East Eye em 18 de maio de 2023

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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