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Reconhecimento da Palestina pode ser ‘simbólico’, mas também é crítico

Primeiro-Ministro da Austrália Scott Morrison em Sydney, 15 de dezembro de 2018 [Mick Tsikas/Getty Images]
Primeiro-Ministro da Austrália Scott Morrison em Sydney, 15 de dezembro de 2018 [Mick Tsikas/Getty Images]

O reconhecimento da Palestina como Estado pelo Partido Trabalhista da Austrália (ALP), em 30 de março deste ano, é uma medida muito bem-vinda, embora possua suas ressalvas. Ativistas em solidariedade ao povo palestino têm razão ao questionar a postura do partido e a sua capacidade genuína de adotar tal posição em absoluto, caso conquiste o governo após as eleições nacionais de 2022.

A linguagem da emenda referente ao reconhecimento da Palestina é bastante ambígua. Embora o ALP comprometa-se em reconhecer o estado palestino, contudo, “espera que tal questão seja uma prioridade importante ao próximo governo trabalhista”. Isso mesmo: “espera”. Não é a mesma coisa que confirmar o reconhecimento da Palestina como política decisiva caso o Partido Trabalhista assuma o poder.

Além disso, a questão representa uma “prioridade importante” ao ALP há anos e anos. De fato, linguagem similar foi adotada na sessão de encerramento da conferência partidária de dezembro de 2018. Os delegados concederam seu apoio ao “reconhecimento e direito de Israel e Palestina de existir como dois estados dentro de fronteiras reconhecidas e seguras”, além da proeminente cláusula: “[O partido] exorta o próximo governo trabalhista a reconhecer a Palestina como Estado”.

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Infelizmente para o ALP, as eleições de maio de 2019 resultaram em sua derrota. O Partido Liberal manteve maioria e novamente compôs um governo sob liderança de Scott Morrison.

Morrison era Primeiro-Ministro da Austrália quando, em 2018, o Partido Trabalhista adotou uma clara mudança em sua política sobre a Palestina, De fato, foi a posição reacionária de Morrison sobre Israel que supostamente levou o grupo de oposição a desenvolver uma aparente postura mais progressista, em particular, sobre a questão palestina. Nove dias após o ex-Presidente dos Estados Unidos Donald Trump desafiar a lei internacional ao reconhecer oficialmente Jerusalém como capital de Israel – em seguida, transferir a embaixada americana de Tel Aviv à cidade ocupada –, Morrison flertou com a mesma ideia, na esperança, sem dúvida, de angariar apoio de grupos sionistas na Austrália, às vésperas de sua campanha eleitoral.

Entretanto, o premiê australiano não foi tão longe como Trump. Por ora, recuou em mover a embaixada de seu país a Jerusalém, mas assumiu uma atitude igualmente ilegal ao reconhecer Jerusalém Ocidental como capital israelense e prometer transferir a embaixada “quando prático, em apoio e após a determinação final de seu status”.

Embaixada dos EUA é transferida a Jerusalém [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Embaixada dos EUA é transferida a Jerusalém [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Canberra, contudo, assumiu efetivamente medidas “práticas”, incluindo a decisão de estabelecer um escritório de defesa e comércio em Jerusalém. O governo australiano também começou a analisar possíveis locais para uma futura embaixada.

A estratégia oportunista de Morrison permanece como vergonha política à Austrália, à medida que aproximou o país da posição ilegal e antipalestina do governo Trump. Embora a vasta maioria dos estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) ainda defendam uma posição unívoca sobre a ilegalidade da ocupação israelense sobre a Palestina, segundo a qual o status de Jerusalém só pode ser alterado conforme negociação, o governo australiano de Morrison decidiu avançar na contramão.

Palestinos, árabes e cidadãos de todo o mundo se mobilizaram contra a nova atitude da Austrália e o Partido Trabalhista local viu-se sob pressão para equilibrar a agenda do Partido Liberal – por sua vez, visto como apoiador cego da ocupação militar e apartheid de Israel.

Dado que o ALP perdeu as eleições, sua nova política sobre a Palestina não pode ser avaliada na prática. Agora, segundo a conclusão mais recente da conferência partidária, a mesma posição se reitera, todavia, com espaço de manobra para revertê-la ou postergá-la caso e quando chegue ao poder.

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Não obstante, a postura trabalhista australiana ainda é um passo importante para os palestinos em sua “guerra de legitimidade” contra a brutal ocupação israelense.

Richard Falk, ex-relator especial das Nações Unidas para a Palestina, durante o lançamento de seu novo livro em evento do Monitor do Oriente Médio em Londres, Reino Unido, 20 de março de 2017 [Jehan AlFarra/Monitor do Oriente Médio]

Richard Falk, ex-relator especial das Nações Unidas para a Palestina, durante o lançamento de seu novo livro em evento do Monitor do Oriente Médio em Londres, Reino Unido, 20 de março de 2017 [Jehan AlFarra/Monitor do Oriente Médio]

Em entrevista recente, o especialista em direito internacional Richard Falk, ex-relator especial da ONU sobre a questão de direitos humanos nos territórios palestinos, explicou a necessidade de “distinguir a política simbólica da política substantiva”. Falk destacou: “Nas guerra coloniais combatidas após 1945, o lado vitorioso foi o lado que venceu o que chamo de guerra de legitimidade, isto é, no ‘campo de batalha simbólica’, por assim dizer, de modo a manter uma posição fundamentada de acordo com o fluxo anticolonial da história”.

Em termos práticos, significa que o lado mais fraco militarmente perdeu diversas batalhas, mas venceu a guerra. É verdade, por exemplo, no caso do Vietnã, em 1975, e da África do Sul, em 1994. A mesma prerrogativa pode valer à Palestina.

É exatamente por isso que políticos, comentaristas de imprensa e organizações sionistas demonstram fúria em resposta ao reconhecimento do ALP de um futuro estado palestino. Dentre as diversas reações ferozes, a mais expressiva, creio, é a posição apresentada por Michael Danby, ex-membro da Câmara dos Representantes da Austrália pelo Partido Trabalhista. Segundo o website australiano Jewish News, Danby acusou os líderes de seu partido, Anthony Albanese e Richard Marles, de ir além da posição pró-palestina do ex-líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn, ao adotar “seus métodos stalinistas [sic] para obstruir o debate sobre moções de política externa”.

Israel e seus apoiadores compreendem por completo o sentido da “guerra de legitimidade” exposta por Falk. De fato, a superioridade militar do estado colonial e seu domínio absoluto sobre a população ocupada é capaz de permitir a ocupação por armas em campo, mas nada faz para avançar em termos de reputação, perspectiva moral e legitimidade.

Que o ALP mantenha a defesa de uma solução de dois estados – não prática, tampouco justa – não deve diminuir o fato de que o reconhecimento da Palestina ainda representa uma postura potencialmente utilizada na busca palestina para legitimar sua luta e deslegitimar o regime de apartheid de Israel.

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A teoria de Falk sobre política “simbólica” e “substantiva” também aplica-se aqui. Embora conclamar pela “solução” defunta de dois estados como parte da política substantiva demandada pelo consenso internacional, o simbolismo de reconhecer a Palestina como Estado é um passo crucial para desmantelar o monopólio de Israel sobre a narrativa e a agenda adotada pelas elites políticas ocidentais. Além disso, representa uma eventual derrota dos esforços sionistas em todo o mundo.

Nenhum político em lugar algum do mundo pode vencer a guerra de legitimidade em nome dos palestinos ou qualquer povo oprimido. O povo palestino e seus apoiadores têm de impor sua superioridade legal e moral a figuras tradicionalmente oportunistas de modo que a política simbólica possa tornar-se um dia substantiva. O reconhecimento do Partido Trabalhista da Austrália do estado palestino é, por ora, meramente simbólica, mas pode ser também bastante crítica. Caso utilizada corretamente – via pressão, atos por direitos e mobilização –, pode converter-se em algo significativo no futuro. Não trata-se, porém, de uma responsabilidade dos trabalhistas australianos, mas sim dos próprios palestinos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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