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A Nakba de Sheikh Jarrah: Como Israel usa a ‘lei’ para limpeza étnica de Jerusalém

Ativistas palestinos, israelenses e estrangeiros exibem cartazes e faixas durante protesto contra a ocupação e os assentamentos de Israel nos territórios palestinos, no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, 19 de março de 2021 [Ahmad Gharabli/AFP via Getty Images]
Ativistas palestinos, israelenses e estrangeiros exibem cartazes e faixas durante protesto contra a ocupação e os assentamentos de Israel nos territórios palestinos, no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, 19 de março de 2021 [Ahmad Gharabli/AFP via Getty Images]

Em 19 de março, durante um protesto semanal contra a expansão dos assentamentos ilegais de Israel, o palestino Atef Yousef Hanaysha foi morto por forças da ocupação israelense em Beit Dajan, perto de Nablus, ao norte da Cisjordânia ocupada. Embora trágicas, tais notícias são lidas como mera rotina da Palestina ocupada, onde atirar e executar manifestantes desarmados é parte da realidade cotidiana. A realidade, não obstante, é parte de um avanço ainda maior e mais sinistro.

Desde setembro de 2019, quando o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu anunciou suas intenções de anexar ilegalmente quase um terço da Cisjordânia ocupada, tensões mantiveram-se altas. O assassinato de Hanaysha é apenas a ponta do iceberg. Nos territórios palestinos ocupados de Jerusalém Oriental e Cisjordânia, uma enorme batalha já está em curso. Por um lado, soldados, tratores militares e colonos ilegais judeus, armados até os dentes, conduzem missões diárias para despejar famílias palestinas, deslocar fazendeiros, incendiar colheitas, demolir casas e expropriar terras. Por outro lado, civis palestinos, frequentemente não coordenados, indefesos e sem liderança, tentam resistir.

As fronteiras territoriais desta batalha situam-se sobretudo em Jerusalém Oriental ocupada e na chamada “Área C” da Cisjordânia — que abrange quase 60% do território ocupado —, sob controle militar absoluto e direto de Israel. Nenhum outro lugar retrata o perfeito microcosmo desta guerra desigual quanto o bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental.

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Em 10 de março, catorze organizações árabes e palestinas emitiram um “apelo urgente” às Nações Unidas sobre as expulsões à força perpetradas em Jerusalém Oriental, a fim de dar fim às campanhas de despejo da ocupação israelense na região. Sucessivas decisões outorgadas por cortes sionistas pavimentaram o caminho para que o exército e a polícia de Israel despejassem quinze famílias palestinas — 37 lares; em torno de 195 pessoas — do distrito de Karm Al-Ja’ouni, em Sheikh Jarrah, além do bairro de Batn Al-Hawa, na região de Silwan.

O ocupação israelense de 1967 sobre toda a Palestina [Sarwar Ahmed/Monitor do Oriente Médio]

O ocupação israelense de 1967 sobre toda a Palestina [Sarwar Ahmed/Monitor do Oriente Médio]

Tais iminentes despejos não são os primeiros, tampouco os últimos. Israel ocupou Jerusalém Oriental em junho de 1967 e anexou formalmente, embora ilegal, o território palestino em 1980. Desde então, o governo israelense rejeita veementemente todas as críticas internacionais à ocupação, ao reivindicar Jerusalém como “capital eterna e indivisível de Israel”.

Para garantir que a anexação da cidade seja irreversível, o governo israelense aprovou o Plano Mestre de 2000, um enorme esquema instituído para redesenhar as fronteiras municipais de modo a assegurar a maioria demográfica permanente de judeus israelenses, sobretudo colonos, às custas dos palestinos nativos. O Plano Mestre nada mais foi do que um reiterado retrato da limpeza étnica promovida pelo estado sionista, que impôs a destruição de milhares de casas palestinas e a subsequente expulsão de inúmeras famílias.

Embora as manchetes costumam representar os despejos habituais de famílias palestinas em Sheikh Jarrah, Silwan e outras localidades de Jerusalém Oriental como mera questão de disputa entre residentes palestinos e colonos judeus, a verdadeira narrativa remete a um quadro mais vasto da história moderna da Palestina. De fato, famílias inocentes enfrentam ainda hoje o “iminente risco de expulsão à força” e revivem seu pesadelo ancestral da Nakba (em árabe, catástrofe), isto é, a limpeza étnica deliberada da Palestina histórica para criar então o estado colonial de Israel, em 1948.

Dois anos após os habitantes nativos da Palestina histórica serem expulsos de suas casas e expropriados de suas terras, sob limpeza étnica, Israel promulgou a chamada Lei de Propriedade de Ausentes, em 1950. A legislação colonial, que não possui qualquer validade legal ou moral, conforme a lei internacional, concedeu ao estado sionista, sem qualquer contrapartida, as propriedades de palestinos expulsos por ataques paramilitares e a subsequente guerra. Dado que os palestinos “ausentes” jamais foram permitidos a exercer seu legítimo direito de retorno, como consagrado pela lei internacional, a legislação israelense propagou em larga escala o roubo de terras e casas sancionado pelo estado. Possuía então dois objetivos finais: asseverar que os refugiados palestinos não tivessem meios de retornar ou reivindicar suas propriedades roubadas na Palestina histórica; e conceder a Israel um espantalho legal para confiscar permanentemente terras palestinas.

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A ocupação militar israelense do restante da Palestina histórica, em 1967, demandava, do ponto de vista da colonização israelense, a criação de novas leis que permitissem ao estado sionista e ao empreendimento de assentamentos ilegais expropriar mais e mais propriedades palestinas. Em 1970, na forma da Lei de Assuntos Legais e Administrativos, houve novo avanço. Segundo a legislatura, apenas judeus israelenses têm o direito de reivindicar terras e propriedades na Palestina ocupada.

Muitos dos despejos em Jerusalém Oriental ocorrem sob o contexto desses três argumentos legais interconectados: a Lei de Propriedade dos Ausentes, a Lei de Assuntos Legais e Administrativos e o Plano Mestre de 2000. Ao analisarmos tais avanços lado a lado, deciframos com facilidade a natureza do esquema colonial israelense em Jerusalém Oriental, onde colonos israelenses, em coordenação com organizações de assentamentos ilegais, trabalham juntos para materializar os objetivos do estado sionista.

Em apelo conjunto, organizações palestinas de direitos humanos descreveram como a vazão de ordens de despejo emitidas por cortes israelenses culminaram reiteradamente na construção de assentamentos ilegais exclusivamente judaicos. Propriedades palestinas confiscadas costumam ser transferidas a um ramo do Ministério da Justiça denominado Custódia Geral Israelense, que conserva o título de tais propriedades até que colonos as reivindiquem, conforme prevê a Lei de Assuntos Legais e Administrativos de 1970. Uma vez que cortes sionistas acatem alegações jurídicas de colonos judeus para expropriar terras palestinas, tais indivíduos costumam transferir sua propriedade ou gestão das terras a organizações coloniais. Rapidamente, tais entidades utilizam as recém adquiridas propriedades para expandir assentamentos existentes ou inaugurar novos, embora — evidentemente — todos os assentamentos sejam ilegais sob a lei internacional.

A colonização de Jerusalém [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

A colonização de Jerusalém [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Apesar do estado israelense alegar um papel imparcial neste esquema, de fato cumpre a função de facilitador do processo como um todo. O resultado final manifesta-se em cenas previsíveis, nas quais uma bandeira israelense ergue-se triunfante sobre uma casa palestina e uma família palestina recebe em troca uma tenda da ONU e alguns cobertores.

A imagem acima pode então ser ignorada por muitos como apenas rotina, uma ocorrência fatalmente comum, mas a situação nos territórios ocupados de Jerusalém Oriental e Cisjordânia tornou-se extremamente volátil ao longo de décadas. Por um lado, os palestinos sentem que não há nada mais a perder; por outro, o governo de Netanyahu sente-se mais encorajado do que nunca antes. O assassinato de Atef Hanaysha e outros como ele é somente um indício de um iminente confronto generalizado.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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