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O genocídio cultural na Palestina: Sobre a decisão de Sally Rooney de boicotar Israel

Sally Rooney participa de um ensaio fotográfico durante o Festival Internacional do Livro de Edimburgo, em 22 de agosto de 2017, em Edimburgo, Escócia. [Simone Padovani/Awakening/Getty Images]

A multidão pró-Israel nas redes sociais se apressou em atacar a premiada romancista irlandesa Sally Rooney, assim que ela declarou que tinha “optado por não vender … os direitos de tradução de seu romance de sucesso, ‘Belo mundo, onde você está’ a uma editora com sede em Israel”.

Como era de se esperar, as acusações centraram-se na difamação padrão utilizada por Israel e seus apoiadores contra qualquer pessoa que ouse criticar Israel e demonstrar solidariedade com o povo palestino oprimido.

A ação louvável de Rooney não foi de forma alguma ‘racista’ ou ‘antissemita’. Pelo contrário, foi tomada como uma demonstração de apoio ao Movimento Palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), cuja defesa se situa dentro dos discursos políticos anticoloniais e antirracistas.

A própria Rooney deixou claro que sua decisão de não publicar com a Editora Modan, que trabalha em estreita colaboração com o governo israelense, é motivada por valores éticos.

“Simplesmente não sinto que seria correto, nas atuais circunstâncias, aceitar um novo contrato com uma empresa israelense que não se distancia publicamente do apartheid e não apóia os direitos do povo palestino garantidos pelas Nações Unidas”, disse ela em uma declaração em 12 de outubro.

Na verdade, a contestação de Rooney não é com o idioma em si, pois ela declarou que “os direitos de tradução em hebraico para meu novo romance ainda estão disponíveis, e se eu conseguir encontrar uma maneira de vender esses direitos que esteja de acordo com as diretrizes de boicote institucional do movimento BDS, terei muito prazer e orgulho em fazê-lo”.

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Rooney não é a primeira intelectual a tomar uma posição ética contra qualquer forma de normalização cultural com instituições israelenses, especialmente aquelas que apóiam e se beneficiam diretamente da ocupação militar israelense na Palestina. Sua posição é consistente com posturas similares tomadas por outros intelectuais, músicos, artistas, autores e cientistas. A lista em constante expansão inclui Roger Waters, Alice Walker e o falecido Stephen Hawking.

O movimento BDS deixou bem claro que, nas palavras do co-fundador do movimento, Omar Barghouti, “o boicote palestino visa apenas as instituições, devido a sua cumplicidade arraigada no planejamento, justificação, branqueamento ou qualquer outra forma de perpetuação das violações de Israel do direito internacional e dos direitos palestinos”.

É claro que alguns ainda não estão convencidos. Aqueles críticos do movimento BDS confundem intencionalmente o antissemitismo com uma forma legítima de expressão política, que visa enfraquecer e isolar as próprias infra-estruturas econômicas, políticas e culturais do racismo e do apartheid. O fato de muitos judeus antissionistas serem partidários e defensores do movimento não é suficiente para fazê-los reconsiderar sua lógica falaciosa.

Uma das denúncias mais “polidas” de Rooney, que apareceu na revista Jewish Forward, foi escrita por Gitit Levy-Paz. A lógica da autora é, no mínimo, confusa. Levy-Paz acusou Rooney de que, ao recusar-se a permitir que seu romance fosse traduzido para o hebraico, ela excluiu “um grupo de leitores por causa de sua identidade nacional”.

Palestinos em Gaza protestam contra decisão do Parlamento alemão sobre BDS, em Gaza, em 23 de maio de 2019 [Mohammed Asad/Monitor do Oriente Médio]

Embora a escritora da Forward seja culpada de confundir ética política e nacionalidade, ela não é a única. Os sionistas israelenses fazem isso, naturalmente, onde a ideologia sionista e a religião judaica – e, neste caso, a língua – são frequentemente intercambiáveis. Como resultado, a definição de “antissemitismo” foi estendida para incluir o antissionismo – embora o sionismo seja uma construção ideológica moderna. Como Israel se define como um Estado judeu e sionista, qualquer forma de crítica às políticas israelenses é frequentemente representada como se fosse uma forma de antissemitismo.

Um dos aspectos mais interessantes desta conversa sobre a língua é que a língua hebraica tem sido usada pelo Estado de Israel desde sua criação em 1948 como a língua da opressão. Na mente dos palestinos, em qualquer lugar da Palestina, o hebraico raramente é a língua usada para expressar cultura, literatura, coexistência social e outras. Em vez disso, todas as portarias militares emitidas pelo exército israelense, incluindo encerramentos e demolições de casas, muito menos os procedimentos das audiências dos tribunais militares, e até mesmo os cantos racistas antipalestinos nos estádios de futebol, são comunicados em hebraico. Os palestinos podem então ser desculpados se não considerarem a língua hebraica moderna como uma língua de inclusão, ou mesmo de comunicação inócua, cotidiana.

Estas percepções não são apenas o resultado de experiências cotidianas. Sucessivos governos israelenses aprovaram inúmeras legislações ao longo dos anos para promover o hebraico em detrimento do árabe. Por mais de sete décadas, a limpeza étnica do povo palestino tem sido associada ao apagamento de sua cultura e de sua língua, desde a hebraicização de nomes árabes históricos de cidades, aldeias e ruas, até a demolição de antigos cemitérios palestinos, olivais, mesquitas e igrejas, o etnocídio israelense é um item de destaque na agenda política israelense.

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A Lei do Estado Nacional Israelense de 2018, que elevou o hebraico como língua oficial de Israel e rebaixou o árabe para um “status especial”, foi o culminar de muitos anos de uma campanha israelense incansável e centralizada, cujo único objetivo é dominar os palestinos, não apenas politicamente, mas também culturalmente.

Tudo isso em mente, a hipocrisia dos porta-vozes de Israel é inconfundível. Eles acolhem, ou pelo menos permanecem em silêncio, quando Israel tenta demolir e enterrar a cultura e a língua palestina, mas reclamam quando um autor respeitado ou um artista bem considerado tenta, ainda que simbolicamente, demonstrar solidariedade com o povo palestino oprimido e ocupado.

O movimento de boicote palestino está consciente de sua missão moralmente orientada, portanto, nunca poderá duplicar as táticas do governo israelense e das instituições oficiais. O BDS visa pressionar Israel, lembrando aos povos de todo o mundo de sua responsabilidade moral para com os palestinos.

O BDS não visa os israelenses como indivíduos e, sob nenhuma circunstância, visa indivíduos judeus porque eles são judeus, ou a língua hebraica, como tal. Israel, por outro lado, continua a visar os palestinos como um povo, desvaloriza sua língua, desmantela suas instituições e destrói sistematicamente sua cultura. Isso é corretamente chamado de genocídio cultural, e é nossa responsabilidade moral detê-lo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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