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OS EUA e suas indústrias da morte são a grande ameaça à paz mundial, e não o Oriente Médio

Soldados dos EUA, a bordo de uma aeronave C-17 Globemaster III, se preparam para chegar à província de Kandahar, Afeganistão, em 28 de março de 2013. [Foto do Exército dos EUA pelo primeiro tenente Jason Jones / Picryl/ Public Domain]

Um obsceno, desumano, e imensamente lucrativo negócio. Muitos brasileiros imaginam que a tal Guerra ao Terror, ou seja, as invasões criminosas dos EUA ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, e depois à Síria, travestidas de “vamos levar a democracia e salvar as mulheres desses países” possam ter sido, além de um retumbante fracasso militar, um espetacular prejuízo à maior potência bélica do mundo e aos aliados da morte.

Nada poderia estar mais longe da verdade.

Para entendermos por que isso é tão falso, é necessário voltarmos a 2003 e à invasão do Iraque, vendida ao mundo como humanitária e justa pelas “ provas” que os norte-americanos teriam de que o Iraque possuía armas químicas e de destruição em massa. Armas que jamais foram encontradas porque simplesmente jamais existiram.

Os EUA causaram o genocídio de um povo que já estava de joelhos devido às sanções que vinha sofrendo. Entre março de 2003 e agosto de 2007, a Guerra do Iraque matou de mais de um milhão de iraquianos, entre mulheres, crianças e jovens, produziu mais de 5 milhões de refugiados, produziu a fome e o empobrecimento em massa, e permitiu o roubo do maravilhoso patrimônio cultural do país que foi um dos berços da humanidade. Negociantes norte-americanos de antiguidades encomendaram o roubo de milhares de relíquias do império abássida, da época de ouro de Bagdá, da cidade que foi durante mais de 1000 anos uma das capitais mais lindas, avançadas cientificamente, tolerantes e mais ricas do planeta, uma  espécie de farol do mundo durante a Idade Média, época em que o Ocidente estava mergulhado nas trevas do feudalismo, da servidão miserável que produzia apenas fome, das guerras entre pequenos reinos que não formavam sequer uma nação e de pequenos tiranos que se matavam entre si, enquanto a Igreja proibia que milhões de jovens pobres estudassem e queimava mulheres nas fogueiras.

Bush Jr desconhecia completamente a história de Bagdá como um dos berços da civilização humana e chegou a dizer várias vezes que os EUA fariam uma “ nova cruzada”, até ser corrigido por um de seus assessores, que lhe explicara que que essa era uma péssima analogia pois os cristãos haviam matado muito mais que os muçulmanos e cometido mais atrocidades durante as Cruzadas e os fatos eram confirmados pelos maiores historiadores do mundo.

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As imagens da invasão criminosa dos EUA ao Afeganistão, de crianças mutiladas e mulheres ensanguentadas ao lado de seus bebês, povoariam meu coração e minha mente para sempre, desde que as vi pela primeira vez num telão da Via Veneto, em Roma, onde eu morava naquela época.

Além de uma tristeza imensa, as imagens me intrigavam pela rapidez da resposta da CIA e do governo Bush aos ataques. Ainda em setembro de 2001, em Roma, descobri que jovens muçulmanos, meus amigos, que viviam e estudavam na Itália, e haviam viajado para seus países de origem nas férias de verão, estavam sendo impedidos de voltar a Roma e que a Itália, presidida então por Berlusconi, estava assinando acordos militares com os norte-americanos e liderava uma campanha midiática de ódio religioso e islamofobia que me envergonhavam profundamente como cristã.

A CIA anunciava com rapidez supersônica ao mundo medidas de segurança jamais vistas em um país que sempre vendeu a si mesmo como a meca da liberdade pessoal.

[charge Latuff]

As medidas aprovadas após os ataques de 11 de setembro traziam um poder quase infinito ao presidente dos EUA e sobretudo à própria CIA. O Patriot Act, aprovado em outubro de 2001, passou a permitir, em nome da “guerra contra o terrorismo”, que a CIA espionasse associações políticas e religiosas sem que fossem suspeitas de nenhuma atividade criminosa, por exemplo. A mesma CIA que havia ignorado as ações dos sauditas em território americano, que havia armado os mujahdeen extremistas no Afeganistão contra a União Soviética na década de 1980, que havia armado a Al Qaeda e seu líder Osama Bin Laden nessa mesma década, que havia ignorado vários sinais de que extremistas sauditas estavam envolvidos com a radicalização de alguns grupos islâmicos, em setembro de 2001, agora divulgava medidas que permitiam, por exemplo, que órgãos de inteligência dos EUA interceptassem ligações telefônicas de pessoas com sobrenome árabe ou com familiares no Oriente Médio, mas sem ligação nenhuma com o terrorismo, sem qualquer autorização da Justiça.

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O Patriot Act passou  também a permitir interrogatórios em aeroportos, mesmo que não houvesse provas de que uma pessoa estava envolvida com terrorismo e ainda uma série de restrições que mudariam para sempre nosso modo de viajar e atravessar fronteiras.

Enquanto isso, continuavam os assassinatos de milhares de mulheres e crianças no Afeganistão e no Iraque pelos norte-americanos. Saddam Hussein, ex-aliado dos EUA na guerra Irã- Iraque, era deposto sob a acusação de produzir as armas de destruição em massa jamais encontradas.

O povo iraquiano mergulhava no que se transformaria em duas décadas de fome, miséria, medo, destruição de vidas, escolas, passado e futuro, ao mesmo tempo em que as empresas norte-americanas de petróleo mergulhavam em duas décadas de prosperidade, ambição de domínio mundial, riqueza jamais vista. Se as armas químicas jamais foram encontradas pela CIA e pelos militares norte-americanos, os poços de petróleo e as reservas que valiam bilhões foram encontradas nas primeiras semanas de invasão dos EUA ao país, e hoje pertencem multinacionais americanas como a Exxon, ou seja, criam riquezas, empregos, lucros estratosféricos para investidores e empresários norte-americanos.

Não apenas isso.

Os norte-americanos convenceram o mundo de que essa era uma guerra da civilização contra a barbárie, do cristianismo ocidental, que” jamais errara”, contra muçulmanos malvados, terroristas e estupradores, mesmo que a História das Cruzadas e da Reconquista violenta da Andaluzia pelos reis cristãos evidenciassem que o oposto acontecera durante séculos.

A CIA, e não um George W. Bush limitado mentalmente e dominado por eminências pardas como Ramsfeld, convenceu o mundo a mobilizar dezenas de países a acompanhá-los nos jogos de guerra contra o Afeganistão, através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o braço militar dos EUA na Europa.

As justificativa  para mais guerras, depois de já terem invadido 38 países do mundo nos últimos 70 anos, patrocinado ou apoiado Golpes militares como os do Chile e do Brasil, destruído dezenas e dezenas de economias do mundo, matado milhões de inocentes, e jogado duas bombas nucleares no Japão, em Hiroshima e Nagazaki, no final da II Guerra Mundial, eram  “encontrar Bin Laden, destruir a Al Qaeda, destruir o Talibã no Afeganistão, e, claro, salvar o povo sofrido do Iraque e do Afeganistão”.

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Bin Laden seria encontrado e morto em 2011, mas os norte-americanos deram continuidade à invasão do Afeganistão por mais 10 anos e a Guerra do Iraque também duraria muito mais do que alguns meses, como afirmavam os senhores da morte.

Mais de um milhão e 400 mil mortos e 20 anos depois, os EUA abandonaram um Afeganistão em ruínas, ainda mais pobre, uma população feminina aterrorizada e faminta, e um Talibã muito mais forte, que reconquistou Cabul em poucos dias e tomou posse de milhares de armas, tanques, aviões e Kalashinikovs deixados pelos norte-americanos no país.

Minha filha, uma menina observadora e curiosa como eu na sua idade, me diria, pedindo uma explicação, dois dias depois da saída dos EUA de Cabul:

-Mãe, os EUA mataram mais de 200 mil pessoas no Afeganistão, e mais de um milhão de pessoas no Oriente Médio, eu li que eles gastaram dois trilhões de dólares lá, mas as pessoas estão se pendurando em aviões, as crianças estão passando fome e o Talibã voltou, então, eles mataram tantas pessoas por nada e ainda tiveram esse prejuízo!

Naquela noite expliquei à minha filha, com imensa tristeza pelas amigas refugiadas afegãs que conheci em Roma, como Latiffa, com quem tenho conversado desde então, que os EUA, sua fábrica de matar mulheres e crianças, seus senhores da morte e sua indústria armamentista jamais tiveram prejuízos nessas duas décadas.

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Expliquei a ela que o complexo industrial-militar norte-americano é composto por 14 mil companhias que empregam cerca de 3 milhões de pessoas. As cinco maiores fabricantes de armas no mundo são empresas norte-americanas que alcançaram juntas um faturamento de mais de US$ 165 bilhões em 2019.

Ou seja, o dinheiro gasto e perdido é socializado e dividido entre os contribuintes dos EUA, um país com mais de 40 milhões de pessoas vivendo na linha da pobreza e sem assistência médica básica, mas o lucro obtido através das guerras e das mortes de milhões de inocentes é privatizado e enriquece apenas empresários norte-americanos que, gratos por tanta doçura e bondade, financiam as campanhas eleitorais dos candidatos à presidência do país. Os campos de morte e genocídio no Afeganistão e no Iraque representam um balcão de negócios para os EUA. Como se fossem um Salão do Automóvel em São Paulo ou feira de carros aqui no Rio. Só que ao invés de carros, estão expostas nos campos de batalha as armas, tanques e fuzis que outros países, como Israel, podem comprar dos EUA no atacado, claro.

Naquela noite, expliquei á minha filha que quando as guerras “acabam”, os Estados Unidos continuam com imensos estoques das mercadorias de seu grande balcão da morte, e eles precisam inventar novos medos, novos ódios e novas ameaças para vendê-las. O importante é criar novas narrativas e novas máquinas de ódio e de guerras. Ganhar ou perder uma guerra em solo estrangeiro não é importante para a indústria da morte norte-americana. O relatório da Universidade Brown, divulgado em 2021, apontou que o Pentágono (Departamento de Defesa dos EUA) gastou desde 2001 quase 6 trilhões de dólares em invasões e guerras. Nos vintes anos em que estiveram no Afeganistão, eles gastaram mais de US$ 1 trilhão. Apenas o pentágono responde por 75% do faturamento da indústria da morte.

Nesses 20 anos, os EUA também descobriram que o Afeganistão, cujo território é constituído por 75% de montanhas, possui reservas minerais avaliadas em US$ 1 trilhão. Dentre elas, minério de ferro, cobre e lítio, um minério usado pela indústria da tecnologia na produção de baterias para aparelhos eletrônicos como computadores e celulares. Segundo o próprio New York Times, as reservas potenciais de lítio no Afeganistão seriam tão grandes quanto as da Bolívia, a maior produtora mundial. Os analistas do Pentágono já comunicaram à opinião pública mundial que o país, “prejudicado pela corrupção e por um Estado central fraco, não está preparado para gerir a sua riqueza mineral”.

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 Não é difícil imaginar quem irá se apossar dessas reservas.

O Afeganistão já vive uma emergência humanitária e a grande maioria de sua população civil, mulheres, crianças e jovens, está faminta, devastada pelo medo e pelas incertezas sobre o futuro. Muitas escolas estão fechadas enquanto o Talibã decide sobre as novas regras educacionais.

Enquanto as cinco maiores industrias bélicas norte-americanas celebram o crescimento gigantesco de seus lucros no Afeganistão e o crescimento do perímetro geográfico onde atuam, e planejam novamente a campanha eleitoral do próximo presidente dos EUA, seja ele democrata ou republicano, o perímetro de vida, de esperança e de futuro das sobrinhas afegãs de minha amiga Latiffa diminui a cada segundo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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