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‘Águas desconhecidas aguardam pelo Egito devido à Represa da Renascença’

Grande Represa do Renascimento, projeto bilionário da Etiópia, em dezembro de 2019 [Eduardo Soteras/AFP/Getty Images]

O cientista espacial egípcio Essan Hajji argumentou que seu país enfrenta “águas desconhecidas” à frente, mesmo caso supere a crise da Grande Represa do Renascimento — projeto bilionário de geração de energia construído pela Etiópia na bacia hidrográfica do Nilo. Segundo Hajji, para o Egito, país tão vulnerável a crises ambientais ou hídricas em seu futuro, “a ciência é a única solução”.

Hajj explicou suas considerações em entrevista exclusiva à rede Arabi21.

Como surgiu a ideia da pesquisa supervisionada pelo senhor sobre o déficit hídrico no Egito e os efeitos da Represa do Renascimento?

A ideia veio à mente em 2017, quando desenvolvi um modelo para calcular o déficit atual e futuro nos lençóis freáticos de todos os países do Norte da África e Península Árabe, diante das mudanças climáticas. O modelo simula a quantidade de água utilizada, a quantidade existente e o déficit ao longo de 35 anos. Então dividimos o modelo em cinco cenários climáticos e econômicos com base na demografia. A pesquisa foi divulgada em 2018 na revista Global Environmental Change, uma das mais respeitadas publicações científicas nos estudos ambientais e nos impactos na disponibilidade de água.

Concluímos que os lençóis freáticos estão em risco de desaparecer dentro de 150 a 200 anos no Norte da África e 70 a 90 anos na Península Árabe. A pesquisa circulou bastante e concedeu diretrizes a muitos outros estudos.

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Em 2019, deduzimos que este modelo deveria ser utilizado para compreender o déficit hídrico do Egito, dada a existência da Grande Represa do Renascimento. De fato, desenvolvemos ainda mais o modelo para calcular a carência total provavelmente enfrentada pelo Egito nas próximas décadas e adicionamos o déficit da barragem aos cenários previamente anunciados. Então publicamos os novos dados sob uma análise científica sólida.

Na última quinta-feira (1°), a pesquisa foi publicada na prestigiosa revista britânica Environmental Research Letters, especializada em questões ambientais urgentes. Tornou-se o material mais lido na seção de pesquisa da publicação neste ano e está em quinto lugar na história da revista.

O estudo não surgiu do nada. Entretanto, nada tem a ver com o encontro consultivo entre chanceleres árabes realizado no Catar, há alguns dias, como alguns disseram.

Há quem questione o financiamento da pesquisa. Quem financiou?

Este estudo foi financiado pela Bolsa de Excelência Científica do Centro de Pesquisa Hidrográfica da Universidade do Sul da Califórnia, com participação da Universidade de Cornell, ambas conhecidas por seu produtivo incentivo à pesquisa. Nosso trabalho nada tem a ver com qualquer país ou partido árabe ou estrangeiro. Caso tivéssemos recursos de algum país, diríamos com absoluta transparência. Sobretudo, é uma das condições da própria publicação. Em todo caso, não há nenhuma entidade árabe interessada em financiar tal pesquisa, ao menos porque todos sabem que as autoridades do Egito não assumem decisões cruciais com base em resultados ou recomendações científicas, não importa se veem de seu próprio país ou do exterior.

Lamentavelmente, alguns países árabes, tão interessados em investir em influencers nas redes sociais e profissionais de mídia para manipular a opinião pública, não se importam nenhum pouco em financiar estudos científicos, cujos leitores são pesquisadores anônimos com pouca ou nenhuma influência na sociedade ou na elite política.

Quais são os principais resultados da pesquisa?

Calculamos o déficit hídrico no Egito com base em cenários distintos, após o preenchimento do reservatório da Represa do Renascimento. Também calculamos o consumo de água no Egito — agricultura, indústria, turismo e todos os outros setores —, conforme dados precisos, documentados e amplamente divulgados. Calculamos ainda o estoque de água do país oriundo da bacia do Nilo, lençóis freáticos, chuvas, reciclagem e assim por diante.

Concluímos que o déficit atual equivale a 20 bilhões de metros cúbicos de água, que deve ser adicionado ao déficit médio a ser criado pela Represa do Renascimento. Então, o déficit total estará em torno de 31 bilhões de metros cúbicos de água. Ao introduzirmos este índice ao setor da agricultura, chegamos ao corte de aproximadamente 72% da área atual irrigada, caso o déficit não seja compensado dentro do cenário no qual o reservatório é preenchido rapidamente, no período de três anos.

Este é o cenário presente e tamanho déficit hídrico certamente levará a enormes perdas na área produtiva da agricultura. Avançamos diariamente ao pior cenário, sobre o qual alerta nossa pesquisa.

Por que o estudo não menciona a possibilidade do Egito de compensar o déficit previsto?

 Porque é necessário levar em consideração a magnitude das perdas devido ao exponencial aumento doméstico do déficit hídrico e à presença da Represa do Renascimento. Como demonstrou a pesquisa, só podemos evitar esse cenário ao utilizar as águas dos reservatórios da Represa Alta de Assuã, para então compensar as perdas. Contudo, sob o cenário de preenchimento rápido, o Egito terá de utilizar a maior parte de suas reservas estratégicas para compensar o déficit imediato, o que significa que o país estará exposto à seca dentro de três anos, com repercussões catastróficas em todos os aspectos, devido à perda das reservas de água até então.

Também é necessário mensurar a porcentagem das perdas ocorridas desta maneira, a fim de identificar o impacto econômico da crise hídrica, à medida que alguns possam desconsiderar a urgência do problema caso não haja um impacto econômico imediato. Temos de ponderar também sobre o cenário pessimista de simplesmente não ser possível suprir essa lacuna, no caso de flutuações políticas ou da incapacidade de obter soluções técnicas, o que significa que uma situação terrível é bastante provável.

Caso o déficit hídrico cada vez maior não seja abordado adequadamente, o Egito pode perder ao menos 72% de suas terras agrárias, o desemprego pode aumentar de 14% a 25% da população, a agricultura nacional pode perder até US$51 bilhões em apenas três anos e a renda média do cidadão comum deve cair em 8%. Tratam-se de resultados certamente catastróficos que não devem ser ignorados de forma alguma. Espero realmente que tais dados estejam incorretos, mas há uma enorme diferença entre o que desejamos e a razão científica.

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Como o senhor se sente sobre o ataque à sua pesquisa por alguns apoiadores do regime egípcio de Abdel Fattah el-Sisi?

 Minha resposta àqueles que preferem nos acusar de traição ou mentira, que preferem minimizar a gravidade do problema ao invés de conduzir uma leitura plena e cuidadosa e engajar-se em um diálogo produtivo, é que aceito toda e qualquer crítica à nossa pesquisa. Também aceito a publicação de qualquer pesquisa que contradiga nossos resultados e me disponho a divulgá-la em minhas redes sociais. O direito de resposta é assegurado pela publicação original.

A revista científica usa o sistema de duplo cego e exclui assim qualquer possibilidade de enviesamento. Todos os dados utilizados na pesquisa estão disponíveis na página final de nossa publicação, para aqueles que queiram revisá-los.

O estudo concentra-se no cálculo do déficit hídrico no Egito sob diferentes cenários do preenchimento da Represa do Renascimento, assim como seus efeitos econômicos caso a escassez de água não seja abordada, a fim de restringir a dimensão das perdas e demonstrar a eficácia das soluções propostas — embora deixe claro que não abrange o estudo de outros danos ambientais, sociais, etc. pois estão fora do escopo de nossa pesquisa.

Quando à falta de um consenso, creio que o Egito enfrenta águas desconhecidas à sua frente, mesmo caso supere a crise da Represa do Renascimento, pois sofrerá o duro custo de conservar sua atual política de reservas estratégicas no Lago Nasser e de priorizar seus recursos econômicos, o que torna o país cada vez mais vulnerável a outras crises hídricas e ambientais — lamentavelmente, porvir.

Acredito que a intervenção de órgãos internacionais — como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Casa Branca, a União Europeia e a União Africana — é necessária, à medida que exercícios militares são realizados no Sudão, sem qualquer intenção de romper com a monotonia na região, mas sim como evidência flagrante de uma crise real em torno do Nilo. Nosso papel como cientistas não é amplificar ou minimizar a crise, mas sim tentar determinar sua dimensão e natureza com base em dados públicos.

A pesquisa é um esforço conjunto e produto de uma série de debates e trabalho árduo ao longo de dezoito meses. Qualquer contribuição positiva de sua parte foi compartilhada com outros pesquisadores e assumo toda a responsabilidade por eventuais equívocos.

Quando os egípcios sentirão na pele as previsões de sua pesquisa após o segundo preenchimento do reservatório da Represa do Renascimento?

 Teoricamente, o Egito possui uma reserva hídrica para conter a crise enquanto os reservatórios são preenchidos. Penso que tamanha demanda de água é difícil de ser sustentada por mais de três anos, na eventualidade do preenchimento rápido, isto é, o pior cenário, exceto se os três países — Egito, Sudão e Etiópia — chegarem a um acordo.

Temos de monitorar os níveis do Lago Nasser e da Represa Alta de Assuã, como indicadores da crise hídrica em geral. No presente momento, é difícil prever o quão frágil será a conjuntura após as reservas de água serem exauridas.

Quais soluções o senhor propõe para superar uma catástrofe em potencial?

Penso que temos de utilizar as reservas hídricas de Assuã e aproveitar parcialmente os lençóis freáticos. Então, desenvolver canais e métodos de irrigação e produtos agrários selecionados que consumam menos água. O Egito já começou a adotar tais medidas, mas é preciso uma consciência popular de que a preservação da água é uma responsabilidade pública, não somente dever do estado, a fim de combater o desperdício.

A crise não é apenas sobre água, mas também representa uma imediata crise alimentar pois podemos perder uma enorme porção das terras agrárias — razão pela qual propus que Egito e Etiópia cheguem a um acordo sobre o cultivo, de modo que o Egito contenha sua exploração durante o preenchimento da barragem, devido ao déficit hídrico, e que a Etiópia conceda uma área equivalente de suas terras férteis aos egípcios, sob contrato de longo prazo, para compensar a eventual escassez de alimentos. Desta forma, a Etiópia poderia beneficiar-se ao desenvolver sua infraestrutura agrária e o Egito obteria ganhos substanciais para compensar a queda na produção de alimentos.

E sobre a alternativa de dessalinização, adotada pelo regime?

Usinas de dessalinização do mar jamais serão capazes de compensar o déficit estimado em 31 bilhões de metros cúbicos por ano. É bastante difícil que este processo tenha um impacto positivo imediato para enfrentar a crise.

Alguns analistas acreditam que a alternativa militar tornou-se o último trunfo do Egito sobre a barragem. O senhor concorda?

O problema certamente não será contido ao provocar uma crise ainda maior e mais perigosa. Não penso que o Egito esteja em guerra com a Etiópia, mas ambos os países têm ainda de enfrentar uma guerra contra a fome, a sede e a miséria que ameaça suas populações. É lamentável que algumas pessoas considerem essa opção e exijam “sangue por água” ao enfrentar questões ambientais iminentes.

A ciência, é claro, não tem voz nessa disputa. Vemos o resultado agora, quando a publicação de um estudo científico leva a respostas irracionais.

 O presidente Abdel Fattah el-Sisi culpou a Revolução de Janeiro sobre a crise da barragem etíope. O que o senhor acha?

Não vejo como a Revolução de Janeiro seria a causa desta ou qualquer outra crise. Se é verdade que a Etiópia tirou proveito do período entre o levante popular de 2011 e o verão de 2013, por que então não tirou proveito das crises ainda maiores ocorridas após 3 de julho de 2013 [data do golpe de estado que levou Sisi ao poder]? E por que o regime egípcio não explorou a recente instabilidade no país vizinho, como este supostamente fez antes dele? Não há sabotagem alguma, enfrentamos nossa própria sombra. É preciso parar de culpar os outros ou justificar nossos erros dessa maneira.

Quem então é responsável pelo déficit hídrico previsto, na sua opinião?

O enorme aumento demográfico na bacia do Nilo, em geral, e capitalistas ávidos em obter lucros imediatos de investimentos prejudiciais à região. Não excluo nenhum dos países à margem do Nilo, pois todos buscaram atrair recursos estrangeiros às custas do equilíbrio ambiental, o que implica em uma verdadeira ameaça no futuro próximo. É a mesma coisa com a exploração da bacia hidrográfica do Rio Amazonas e o desmatamento da floresta tropical, caso o governo brasileiro e outros governos e entidades não intervenham para interromper o que está acontecendo.

Investir na geração de energia barata às custas do meio ambiente — com ênfase no Nilo, neste caso — é bastante perigoso. Barragens gigantescas como Assuã e a Represa do Renascimento têm impacto nocivo a todo o rio Nilo e os recursos energéticos podem ser gerados por meios alternativos sem sequer recorrer à controvérsia.

A Represa Alta de Assuã costumava produzir 100% da energia do Egito, mas agora é responsável por menos de 10% do consumo nacional. Como se não bastasse, causou grave erosão na região do delta e suas praias. A Represa do Renascimento deve levar a danos ambientais similares, que devem ser estudados. Portanto, todos pagarão o preço por intervir no Nilo com pouca ou nenhuma atenção às evidências científicas. Tudo que pedimos é que os efeitos de certos projetos sejam estudados antes de sua implementação.

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Como o senhor interpreta o apoio dado por alguns países à construção da Represa do Renascimento?

 Por ser uma fonte de energia barata e uma oportunidade de investimentos agrários a muitos países que não possuem a mesma disponibilidade de terras ou clima, a barragem etíope de fato representa uma oportunidade para tais avalistas para que obtenham sua segurança energética e alimentar. Dessa forma, investem e apoiam tais projetos nas margens do Nilo, porém, sem considerar seu impacto local.

Como o senhor vê os efeitos das enormes barragens sobre a bacia do Nilo no futuro?

Tais represas terão repercussões negativas que demandam pesquisa científica detalhada para determinar com precisão. Lamentavelmente, tenho de dizer que os centros de estudos hídricos nos países do Nilo estão entre os mais precários em todo o mundo, o que impossibilita às partes mais interessadas que forneçam soluções às crises na região.

Em suma, tentamos solucionar uma crise cuja dimensão e mesmo sua natureza, a curto e longo prazo, pouco compreendemos. Discutimos decisões que podem avançar em guerra sobre um problema que pode ser resolvido com pesquisa. Lamentavelmente, nós nos países árabes e africanos enfrentamos um péssimo histórico de gestão de conflito sobre recursos naturais, o que torna a Represa do Renascimento a ponta do iceberg de décadas de negligência científica e falta de investimento em centros de pesquisa especializados.

O Egito será capaz de superar a crise da Represa do Renascimento dado o recente fracasso diplomático em fazê-lo?

 Sair da crise requer compreensão da sua natureza e abordagem científica e empírica, para além de jargões prepotentes e nacionalistas. Esta é a nossa esperança. Acreditamos que, ao publicar nossa pesquisa — ou qualquer outra —, contribuímos com os esforços para solucionar a crise, sem outra solução senão um consenso embasado em fatos científicos. A ciência é a única solução para enfrentar a crise hídrica no Egito. Estou convencido disso.

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