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Como construímos a mesquita do povo

César Kaab Abdul [Foto arquivo pessoal]
César Kaab Abdul [Foto arquivo pessoal]

Sumayyah Bint Khayyat foi a primeira mulher que morreu para defender o islamismo. Sua força, coragem e lealdade serviram de inspiração para nomear a primeira mesquita do Brasil construída dentro de uma área carente e periférica na Grande São Paulo.

A mesquita foi fundada em 2012 por César Kaab Abdul, ex-rapper e líder comunitário que sempre esteve envolvido com as causas sociais de sua comunidade. Foi através da cultura de rua e sua vivência dentro do Hip Hop que Abdul conheceu Al Hajj Malik Al-Shabazz,  também conhecido como Malcolm X, que o inspirou com seu livro para que Abdul seguisse o caminho do islamismo.

Com diversos projetos sociais, culturais e religiosos, a mesquita Sumayya, prestes a completar 10 anos, já ajudou  muita gente e desde o início da pandemia vem dando suporte aos mais necessitados, seja com comida, remédios, aprendizado ou afeto. Em entrevista ao Memo, Cesar Kaab, que foi alvo de fake news e de extrema intolerância religiosa, nos conta a história desta mesquita que traz à luz a importância e relevância do altruísmo.

O que fez você  seguir o caminho do islamismo?

Tudo começou no final dos anos 80, ao mesmo tempo  que eu comecei com o movimento de cultura e com o hip hop. Diante de todas as questões que afligem o meio periférico, a gente sempre teve uma leitura diferenciada sobre a questão do próprio sistema. O rap sempre teve essa pegada de falar do sistema e nesse meio tempo conheci o islã através do livro do Al Hajj Malik Al-Shabazz mais conhecido como Malcolm X , até então, eu não tinha o conhecimento do que era o islã, porque até hoje a religião islâmica não é bem difundida, eu digo na sua forma original, na sua essência. Segui totalmente à risca o processo evolutivo dentro do conhecimento do islã. Conheci uma pessoa no Egito que começou a me dar mais instruções sobre a religião, que me deu o indicativo, me mostrou o que era o islã. Com isso tive uma melhor leitura da religião e vi que não era o que eu pensava, o islã é muito mais “manso” do que as próprias outras religiões também monoteístas, no sentido da oração mais pura, mais real, mais leve. Tudo isso  foi o meu primeiro passo para entender um pouco do que era o islã, a partir dai, procurei outros livros e sigo estudando até hoje.

 Como nasceu a Mesquita Sumayyah Bint Khayyat?

Foi um longo caminho até chegar na Mesquita. Em 1998 fundei a primeira biblioteca da favela, a Zumaluma, o nome é referente a Zumbi dos Palmares, Malcolm-X, Luther King e Mandela,  fiz a junção dos nomes e acabei por abrir essa biblioteca. Nela fazíamos ações sociais, oficinas educativas e muito estudo.

Decidi abrir uma Mussala (sala de estudos) na minha casa, onde cabem 10 pessoas. Logo após isso, recebi o convite para fazer o Hajj (peregrinação religiosa) na Arábia Saudita e foi lá onde eu vi que era realmente o que eu queria, a partir dai larguei tudo o que fazia antes, vida boêmia, deixei de subir nos palcos, de praticar o rap e comecei a seguir a religião para valer.

Conhecido pelo trabalho com o Zumaluma, que ganhou diversos prêmios como atividade cultural, inclusive o prêmio Cultura Viva, fiz intercâmbio com grupos de jovens que vieram dos Estados Unidos, França e Alemanha, muitas pessoas ficaram curiosas sobre a minha mudança e começaram a me perguntar sobre o islã e muitas delas começaram a se interessar pela religião e irem à Mussala. Foi aí que pensei em alugar um espaço maior, pois não estava mais cabendo todo mundo na sala. Alugamos um espaço e  reformamos.

Faixada da mesquita Mesquita Sumayyah Bint Khayyat , Embu das Artes [Foto Facebook]

Faixada da mesquita Mesquita Sumayyah Bint Khayyat , Embu das Artes [Foto Facebook]

LEIA: “Abraçamos muçulmanos e não-muçulmanos que chegam ou vivem no Brasil”

Houve muita dificuldade no início?

Sim, muitas. Foi difícil encontrar Sheik para a mesquita por causa da distância, mas, mesmo assim, fomos crescendo e ganhando visibilidade fora e dentro do país. Por ser uma mesquita dentro de uma comunidade carente, as coisas começaram a acontecer de forma lenta, mas significativa. Até chegar em 2015 para 2016 e  recebemos a visita do sheik Muhammad al-Arifi da Arábia Saudita e aí deu uma grande reviravolta em minha vida. A mídia disse que o Daesh (Isis) estava se formando na comunidade e me colocaram como  aliciador de jovens para o Daesh. O Sheik Muhammad al-Arifi só veio porque me conheceu pela divulgação do meu trabalho e ele veio para ajudar, para somar, quando ele chegou na favela  até chorou de emoção, disse que era inacreditável nosso trabalho. Mas no dia seguinte de sua partida, acordei às 05h da manhã com amigos me ligando dizendo que eu estava na capa de uma revista como terrorista, a revista Veja publicou coisas horríveis sobre mim.  A publicação dessa matéria causou muitos transtornos para mim, foi o momento que mais senti falta da comunidade, muitas pessoas se afastaram de mim, me senti um pouco sozinho nessa história. Eu e minha família recebemos diversas ameaças de morte, onde eu ia as pessoas comentavam sobre essa matéria. Foi um imenso transtorno, porém, não foi o único. Tive outros problemas com a mídia também, com publicações de fake news.

E como a mesquita Sumayyah conseguiu se consolidar?

Através desse efeito negativo – Allah sabe os caminhos que faz -, ainda tive que responder na polícia federal, depois colocaram uma foto minha em que eu estava em uma manifestação pró Palestina com uma camiseta escrita Jihad Brasil ( que era referente a um grupo de rap) e a história voltou novamente com toda sua negatividade e mentiras. Neste momento o intercept, me procurou dizendo que não acreditavam naquela história que estava sendo difundida pela mídia e me convidaram para falar a verdade e eu falei, fizeram uma matéria perfeita. A rede Globo também fez uma matéria excelente, de 23 minutos para eu contar minha história, logo após a Record ter feito uma reportagem totalmente maldosa e mentirosa. Depois vieram outras mídias também e  diante de toda repercussão, recebi ligação telefônica de uma pessoa dizendo que devido a minha luta e tudo o que tinha acontecido comigo, ele iria me ajudar a construir a mesquita. Aí compramos a casa de dois andares em baixo é a  mesquita e em cima eu moro com a minha família.

Existe intolerância religiosa na comunidade?

Quando entrou o Bolsonaro sim, aí aumentou muito. Aconteceu faz pouco com minha esposa, ela foi ao mercado Açaí, quando ela estava entrando um cara gritou: “A mulher bomba, corre, todo mundo vai explodir!” e esse cara é funcionário do mercado, o segurança. Fui lá e ele não estava mais, pedi uma explicação e retração ao mercado, mas até agora não obtive resposta. Minha esposa ficou bem chateada com a situação.

A gente precisa lidar com isso da melhor forma possível. Com a entrada desse governo, as pessoas parecem ter mais preconceitos. Aconteceu uma história interessante aqui, de  um cara daqui da comunidade querer agredir  uma irmã nossa. Nós fomos lá e conversamos bastante com ele, não demorou muito ele me procurou  querendo conhecer nossa religião. A intolerância e desrespeito acontece sim, mas é bom mostrar que coisas boas também acabam acontecendo. As pessoas precisam de mais informações.

De que forma estão conseguindo atravessar pela pandemia?

Com a chegada da pandemia e tudo fechado, chamei algumas pessoas para fazer a comida e quando vi já tinha mais de treze voluntários. Começamos entregando 40 marmitas por noite, em semanas passou para 230 marmitas. Durante a pandemia no ano passado chegamos a entregar 22.000 marmitas e 3,5 toneladas de cestas básicas.

Eram muitos adultos e crianças, pois as escolas também estavam fechadas e muitas crianças só conseguem se alimentar na escola.

Além do projeto de alimentação, existem outros desenvolvidos pela Mesquita?

Sim, temos muitos. Além da farmácia em que disponibilizamos diversos medicamentos, temos também as  oficinas de idiomas, alfabetização e esportes, temos o Dawah Delivery que consiste em enviar um kit com Alcorão e alguns livros islâmicos. As pessoas que tem interesse entram em contato conosco através de um link que disponibilizamos em nossas redes sociais. Em São Paulo entregamos pessoalmente, em outros estados enviamos via correios. O que pedimos em contrapartida é unicamente que as pessoas nos deem um espaço para o ouvir o que nós temos para dizer sobre o islamismo. Temos também o projeto Mochileiros muçulmanos no qual visitamos as comunidades carentes do país, levamos livros e a palavra do Islã para diversas cidades do Brasil. Outro interessante é o Projeto Vivência – Recanto Maktub, que inshaAllah (Se Deus quiser), será lançado no próximo Ramadã. Já temos o terreno e estamos trabalhando nele. Maktub  terá um camping, onde participarão muçulmanos e não muçulmanos. A ideia é trabalhar com esportes e artes marciais, trabalhar também  a questão religiosa na sua prática, mas em uma  outra ótica. Teremos diversas atividades, tanto exibição de filmes e documentários, palestras e tudo mais.

E e se alguém quiser ajudar, como que faz?

Recebemos todos os tipos de doações e convidamos a todos a conhecerem nossa mesquita, que sempre estará de portas abertas. Quem se interessar pode nos contatar pelas nossas redes sociais. Serão bem vindos e bem-vindas.

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