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A anexação cumpre o desenho de Oslo

Entrevista com a professora de História Árabe, Arlene Clemesha
Professora de História Árabe, Arlene Clemesha [Foto Lina Bakr]
Professora de História Árabe, Arlene Clemesha [Foto Lina Bakr]

A entrevistada Arlene Clemesha lida com o interesse das novas gerações de estudantes e acadêmicos em compreender a intrincada situação do Oriente Médio, onde a ocupação da Palestina vai sendo normalizada através de acordos internacionais em favor de Israel.

A começar por desmontar o mito de que o conflito israelense-palestino tenha origem na religião, a professora de História Árabe do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP) e comentarista da bancada do Jornal da Cultura ensina sobre um conflito que resulta da política e da colonização – europeia, britânica e sionista.

Nesta entrevista ao Memo, ela reconhece o avanço de Israel em direção a legalizar a ocupação ilegal através da anexação compulsória, negociando inclusive com importantes governos árabes. Mas não deixa de apontar a armadilha. Existe convivência possível entre propaganda democrática e apartheid?

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Você é professora de história árabe na USP, qual o lugar e o interesse pela Palestina entre os estudantes?

Eu dou 2 disciplinas, História Árabe  que é chamada de Cultura, e História da Palestina. Percebo que há um grande interesse, não há desistência, costumo ter cerca de em média 50, 60 alunos por turma, por turma e por semestre. A principal característica que percebo é que a disciplina de Palestina consegue atrair alunos de toda a universidade, tem gente da Poli, da Medicina, Direito, vem de fora do Campus, tenho a percepção de que a disciplina Palestina atrai uma curiosidade mais variada.

Muitos acreditam que o conflito israelo-palestino é religioso, qual é a origem?

A origem do conflito na Palestina é política e remete ao processo de colonização, tanto europeu, inglês  como sionista. São dois processos simultâneos e que boa tarde do tempo foram aliados na primeira metade do século XX. A origem do conflito é iminentemente política, remete a história moderna da região. O que existe é uma politização do imaginário religioso, dos argumentos das narrativas religiosas que são usadas a serviço de intenções políticas e contemporâneas.

Portanto, nenhum conflito religioso…

Nenhum. Tanto que sempre houve uma convivência harmônica e tranquila entre as comunidades religiosas antigas, tanto cristã, como judaica, minorias que por séculos habitaram a região da Palestina.

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Qual o papel da ONU para resolução deste problema que ela mesmo criou?

A ONU, depois de passar alguns meses estudando o caso através de uma comissão especial criada com esse propósito, colocou em votação a proposta de partilha. Não era a única proposta existente, mas essa foi colocada em votação no dia 29 de novembro de 1947 e foi aprovada pela maioria dos países naquela época, lembrando que alguns poucos países árabes que faziam parte votaram contra a proposta e a Palestina não estava representada.

A ONU não criou Israel e não criou Palestina, ela aprovou a partilha. O caso é que o movimento sionista estava estabelecido na região da Palestina desde o começo do século XX,  o que era naquela época o Mandado Britânico,  e havia construído as bases, os pilares de um Estado, de uma autogestão.  Enquanto isso, a sociedade palestina teve suas formas de autogestão e resistência reprimidas, e até suprimidas, pelo duplo processo colonizador, britânico e sionista . O  projeto político local, árabe, na verdade, era muito mais amplo, não estava atrelado à ideia importada de Estado-nação.

Qual o papel da ONU hoje? Porque não consegue barrar que Israel continue passando por cima de todas resoluções?

Acontece que as resoluções  favoráveis à criação de um Estado palestino nas fronteiras de 1967, incluindo Jerusalém oriental como capital e o reconhecimento do direito de retorno, são um desenvolvimento da Assembleia Geral. Se a gente for olhar as votações, sempre são bastante favoráveis à realização de um mínimo de justiça, digamos assim, para a Palestina.  O problema é que, na estrutura da ONU, a instância que tem a prerrogativa do uso do poder, de aprovar uma intervenção militar  e fazer aplicar uma resolução, é o Conselho de Segurança, não é a Assembleia Geral. O Conselho de Segurança foi criado com base na divisão de poder e no equilíbrio de poder que resultou do pós II Guerra Mundial. São cinco países com poder de veto, nenhum deles comprometido com a criação do Estado Palestino. Pelo contrário, um deles se coloca inclusive como aliado incondicional de Israel. Então a ONU é uma estrutura engessada, na medida em que não consegue fazer e aplicar resoluções que são aprovadas e que são consensos mundiais.

Prof. Arlene Clemesha, Nur Masalha, Dr. Daud Abdullah no seminário realizado pelo Monitor do Oriente na USP, Dezembro de 2016 [Foto Lina Bakr]

Prof. Arlene Clemesha, Nur Masalha, Dr. Daud Abdullah e Ben White no seminário realizado pelo Monitor do Oriente na USP, Dezembro de 2016 [Foto Lina Bakr]

Os assentamentos israelenses são considerados ilegais pela ONU e pela comunidade internacional, qual sua análise para os planos de anexação de Netanyahu?

A gente vive um momento em que o regime israelense claramente tenta consolidar avanços na lei.  Esses processos de conquista territorial e de expansão territorial já estão colocados na prática e já existem. E por que isso está acontecendo? Porque Netanyahu tem apoio incondicional  do governo Trump, de um governo declaradamente reacionário, que se coloca explicitamente a favor da anexação de territórios palestinos e árabes. Os presidentes anteriores dos EUA, como Obama, não combateram de fato a colonização da Cisjordânia, mas não estavam dispostos reconhecer a anexação territorial de porções desse território.

A Cisjordânia está toda fragmentada e sob controle militar israelense direto. Boa parte desse território está ocupada fisicamente pelos cerca de quinhentos mil colonos  israelenses que ali vivem ilegalmente, segundo a ONU. Então, o que Netanyahu quer fazer é aprovar que esses territórios onde vivem esses colonos e um pouco mais, incluindo a área C, que inclui o Vale do Jordão, que é uma região estratégica, com subsolo rico e com margem do Rio Jordão e do mar morto. Quer que todas essas regiões tomadas possam ser anexadas a Israel.

Você acredita que os acordos de Oslo tenham contribuído para isso acontecer?

Esses acordos foram o desenho do que está acontecendo agora, que é a implementação do traçado dos acordos de Oslo. Autores e intelectuais, como Edward Said, denunciaram no dia seguinte à publicação do texto que ali existia  uma armadilha. Havia pré-condições para o avanço da paz que eram impossíveis de serem implementadas por parte da Autoridade Palestina. A expansão dos assentamentos continuou a todo vapor, causando muito descontentamento. Os acordos de Oslo não negociaram questões que são fundamentais para se chegar a qualquer paz, como fronteiras, utilização da água subterrânea, o futuro dos assentamentos, o futuro de Jerusalém oriental, entre outras.

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Porque não houve apoio da Liga Árabe aos palestinos frente aos acordos de normalização de Israel com os Emirados Árabes Unidos e Bahrein?

O primeiro aspecto é o estrutural da Liga Árabe que, desde a sua origem,  é uma organização cujas as decisões não precisam ser seguidas por todos os países. Os segundo aspecto é a grande dificuldade de se conseguir um consenso sobre o tema das relações árabe-israelenses. E para emitir uma declaração tem que haver um consenso mínimo de que aquela declaração é bem-vinda por todos. Encontramos nesses países árabes governos atuais que já são bastante aliados, com todo um eixo, um corredor de países árabes em contato e colaboração com Israel, começando pela Arábia Saudita, um país muito importante e uma grande voz árabe na região e que está muito comprometida na colaboração com Israel. Portanto não tem nenhum interesse contrário a isso.

Esses acordos mudam a história e o destino da Palestina?

Acredito que eles dificultam o cenário político para os palestinos. O que acontece com esses acordos entre os países árabes e Israel é que se dá a um passo a mais rumo à aceitação de uma ocupação quase completa da Palestina histórica, incluindo a Cisjordânia e a anexação de outros territórios. Isso dificulta o cenário, faz com que a gente esteja mais próxima de ver o que já é tendência na região, que é a formação de um estado único, tendo a população palestina sob administração israelense. Um território inteiro com uma população palestina vivendo sob o impacto de diversas formas de leis arbitrárias e guetoizada em regiões que são quase bantustões, sem comunicação entre elas.

Estamos um passo além para a aceitação mundial de um Estado único, que não é um estado binacional,  no qual a partilha se discutia. É um Estado único de segregação e que trata de maneira diferente e inferiorizada os palestinos. Isso também é uma certa armadilha para Israel que se coloca como país democrático para o mundo e que usa isso dentro da sua narrativa política internacional. Vai também dificultar para Israel manter essa narrativa em pé, porque ficará mais claro ainda a sua condição de estado de apartheid, onde uma população é inferiorizada, não tem plenos direitos, é uma cidadania de segunda categoria, que tem uma série de profissões vetadas. Ainda hoje são vigentes as chamadas leis de emergência que vem  do período do mandato britânico e que a Inglaterra tinha criado em 1945 para arcar com uma situação de pós-guerra, de caos, de dificuldade.

Uma vitória dessas para Israel também vai forçá-lo à arcar com isso, com essa questão, de ter que explicar mundialmente porque que a população palestina é subjugada.

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Palestina: quatro mil anos de história
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