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Israel e o uso da tragédia em Beirute

Avanços das forças israelenses na fronteira com o Líbano até a Linha Azul obrigam soldados da Unifil a se posicionarem separando-as das forças libanesas [alishoeib1970 / Twitter]
Avanços das forças israelenses na fronteira com o Líbano até a Linha Azul obrigam soldados da Unifil a se posicionarem separando-as das forças libanesas [alishoeib1970 / Twitter]

“Nós compartilhamos a dor do povo libanês e sinceramente procuramos oferecer ajuda neste momento difícil.” Assim tuitou o presidente de Israel, Reuven Rivlin, na noite de 4 de agosto – dia da megaexplosão na zona portuária de Beirute, capital do país árabe –, ao anunciar a decisão oficial do governo sionista de enviar auxílio ao Líbano ante a tragédia. Mais uma propaganda para encobrir seus crimes contra a humanidade, como denunciado não à toa pelo movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel como aid washing (que significa limpar a imagem com gestos de ajuda).

A história mostra a hipocrisia e cinismo por trás dessa oferta. Dias antes da explosão, ao enfrentamento da grave crise socioeconômica e política no Líbano, a “ajuda israelense” veio sob a forma de bombardeio na cidade de Kafr Shuba, no sul do país, aumento do contingente de tropas estacionadas na fronteira e ameaças de nova guerra.

Enquanto isso, a ong de defesa das crianças Save the Children revelava o cenário em que não foram pacotes de alimentos o que Israel mandou: o iminente colapso econômico no Líbano, em que cerca de metade da população encontra-se na pobreza e 30% desempregada. “Essa crise atinge a todos – famílias libanesas, refugiados palestinos e sírios. Começaremos a ver crianças morrendo de fome antes do final do ano”, disse Jad Sakr, diretor interino da organização no país árabe, em informe publicado no dia 28 de julho último. “Uma em cada cinco famílias libanesas e 33% das famílias sírias pularam refeições ou ficaram sem comida durante um dia inteiro, e 50% dos libaneses, 63% dos palestinos e 75% dos sírios estavam preocupados com o fato de não terem o suficiente para comer”, acrescenta o comunicado.

Além da dramática situação, à beira do colapso, com escassez de água e eletricidade – e sendo reprimida por protestar nas ruas a partir de outubro de 2019, ante denúncias de corrupção por parte de seu governo –, a população trabalhadora e pobre libanesa enfrentava o temor de uma nova guerra, como já vivenciara muitas vezes.

Histórico exemplar

Em sua memória, entre outros, o traumático ano de 1982. Após invadir o país árabe em meio à guerra civil – e passar desde então a ocupá-lo, até 2000 –, Israel teve papel decisivo no massacre nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila em setembro. Não apenas facilitou a entrada das tropas libanesas da extrema direita cristã que cometeram o genocídio, quanto as treinou e cercou os campos, impedindo sua evacuação. Em 1996, outro massacre pelas mãos sionistas, desta vez na aldeia de Qana, no sul do Líbano. Mais recentemente, ainda, na longa lista de crimes contra a humanidade cometidos por Israel, a invasão de 2006, em que o Estado sionista saiu derrotado, não sem antes ser responsável pelo derramamento de muito sangue e destruição de Beirute mais uma vez. Como escreveu o jornalista Ali Abunimah em seu twitter, foram dezenas de milhares de mortos por Israel ao longo dessas décadas.

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Frente a esse histórico – que se soma a crimes contra a humanidade cometidos na Palestina desde a Nakba (catástrofe com a criação do Estado de Israel em 1948, mediante limpeza étnica) –, a população assombrada, em toda a região, revelou a justa desconfiança de que a megaexplosão tivesse sido causada por um ataque israelense – e que persiste em muitos círculos árabes. Houve quem relatasse ter escutado ruídos de aviões próximos à zona portuária pouco antes da tragédia. As causas seguem sob investigação, não obstante essa hipótese tenha sido descartada tanto por Israel quanto pelo governo libanês. Este último declarou ter sido resultado da explosão em um depósito que armazenava irregularmente 2.750 toneladas de nitrato de amônia e que os “responsáveis” encontram-se em prisão domiciliar – sem, contudo, assumir a criminosa negligência de nada ter feito. Segundo relato, funcionários do porto teriam feito esse alerta há pelo menos cinco anos de possibilidade de tragédia como a que ocorreu, ceifou mais de cem vidas, deixou até agora 4 mil feridos, desaparecidos sob escombros e Beirute destruída.

Retórica e realidade

Assim que os holofotes se acenderam, Israel não perdeu tempo: mudou o tom em relação ao Líbano e anunciou ao mundo o quão humanitário pode ser mesmo com inimigos.

A contradição entre retórica e realidade se expressa neste momento internamente em Israel. Enquanto o governo se faz de bom moço, alguns sionistas despiram as máscaras. Entre eles, o ex-parlamentar israelense Moshe Feiglin, que em suas redes sociais comemorou e agradeceu aos “heróis” que causaram a trágica explosão. Para ele, “um presente de Deus” ao feriado judaico neste dia 5 de agosto que representaria o Dia do Amor.

Como aponta matéria no jornal sionista Times of Israel, em 5 de agosto, Bezalel Smotrich, outro político israelense, escreveu em seu twitter: “Moralmente não temos obrigação ou necessidade de estender a mão a um estado definitivamente inimigo.” Yair Netanyahu, filho do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, também foi incisivo em se opor a qualquer ajuda. Sob esse suposto ar de imparcialidade, a publicação transmite a ideia de que essa seria uma posição de raivosos da direita – quando, na realidade, apenas reflete o que as ações de Israel demonstram há tempos: que vidas árabes não importam.

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Se quisesse realmente ajudar, poderia começar por reconhecer o direito de retorno dos milhões de refugiados palestinos, como os que vivem em campos no Líbano em situação de extrema vulnerabilidade e racismo, agora, diante da megaexplosão. Algo, obviamente, fora da agenda sionista.

À revelia disso, a cínica máquina de propaganda israelense, que conta milhões de investimentos, como já fez em outras tragédias mundo afora, tem como única preocupação transmitir internacionalmente falsa imagem positiva e civilizatória. Assim, busca desviar a atenção do apartheid, colonização e ocupação contínuas a que estão submetidos os palestinos há mais de 72 anos – e que seguem a ceifar vidas. Propaganda a serviço de encobrir crimes contra a humanidade e, quiçá, avançar na normalização de relações com governos da região.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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