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Síria: onde quem monitora as armas químicas torna-se arma

Equipes de defesa civil e residentes locais conduzem operações de busca e resgate sobre os escombros de um edifício, após ataques aéreos executados pelo regime de Bashar al-Assad no distrito de Saraqib, na zona de desescalada de Idlib, Síria, 21 de dezembro de 2019 [Hüseyin Fazil/Agência Anadolu]

No que se refere à cobertura de mídia comercial sobre o conflito na Síria, há sempre algum ceticismo expressado contra aqueles que recusam-se a acreditar plenamente na narrativa opositora ao governo em Damasco. É bastante comum que a imprensa convencional desminta aqueles que denunciam sua versão dos fatos como conspiracionistas ou “assadistas”. Este não é apenas o caso no que se refere àqueles que contestam o quão popular e generalizada a oposição ou os proponentes de “mudança no regime” são no país, mas também, de modo bastante controverso, aos supostos casos de uso de armas químicas pelo governo liderado pelo Presidente Bashar al-Assad contra seu próprio povo.

Até recentemente, tais interpretações eram tratadas como fato ou ao menos “altamente confiantes” de que o governo era de fato o responsável. Entretanto, após o vazamento de um relatório interno de engenharia que demonstra atos de supressão e adulteramento de documentos relacionados ao ataque químico em Douma, em 7 de abril de 2018, parece-nos agora mais razoável do que nunca que possamos não somente questionar a integridade da supostamente apolítica e imparcial Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), mas também levantar a questão de que suas informações são utilizadas para justificar operações militares do Ocidente, como ocorreu anteriormente após o incidente de Ghouta, em agosto de 2013.

Douma foi, afinal, o único lugar realmente visitado pelos inspetores da OPAQ. AS alegações dos chamados Capacetes Brancos (Defesa Civil Síria) e da Sociedade Médica Sírio-Americana (SAMS), supostamente não-política, embora financiada pelos Estados Unidos, foram aceitas como confiáveis pela organização internacional. Subsequentemente, isso levou à justificativa de Estados Unidos, Reino Unido e França para realizar ataques militares punitivos contra instalações dentro do território sírio, identificadas por esses países como relacionadas às atividades de armas químicas, mesmo antes da OPAQ iniciar suas investigações in loco.

A Convenção sobre Armas Químicas entrou em vigor em 1997, após anos de negociações e debates entre a comunidade internacional, que procurou proibir de modo abrangente o desenvolvimento e o uso de tais armas em vista ao emprego generalizado durante a 1ª Guerra Mundial e na então recente guerra entre Irã e Iraque, na década de 1980, na qual o Irã foi alvo de agentes químicos. A OPAQ tornou-se o corpo internacional incumbido de implementar a convenção. Hoje, há 193 estados-membros, incluindo a Síria. É interessante notar que Israel ainda não ratificou a Convenção sobre Armas Químicas, embora tenha assinado o tratado – o governo israelense é bastante reservado sobre os agentes químicos que possui para uso militar, assim como sobre suas armas nucleares. Os três países não-signatários são Egito, Coreia do Norte e Sudão do Sul.

Entretanto, há agora enormes evidências, após os vazamentos, que sugerem a instrumentalização da OPAQ pelas potências ocidentais, a fim de dar vazão às armas para uso político referente a diversas tentativas de depor governos que possam estar no caminho de seus interesses geopolíticos – neste caso, a Síria. O potencial para tal uso político da agência foi exacerbado pelo fato da OPAQ agora possuir chamadas “atribuições mecânicas”, isto é, que a autorizam a não apenas identificar se ocorreram ataques de armas químicas, mas quem foi responsável por executá-los.

O problema, como revelado por informações divulgadas por fontes internas, é que os cientistas, analistas e técnicos da OPAQ encontraram evidências convincentes de que o governo sírio não foi culpado pelo incidente de Douma, embora a chefia da agência tenha suprimido tais apreensões e substituído os documentos por aqueles obtidos de “especialistas externos”, os quais “não refletem os pontos de vista dos membros da equipe enviada [à Síria]”. Os vazamentos também sugerem que a OPAQ possuía evidências cientificamente razoáveis que as vítimas do suposto ataque apresentaram sintomas inconsistentes com a exposição a gases químicos. Além disso, o colunista Peter Hitchens, do jornal Daily Mail (até então uma anomalia na cobertura convencional no Ocidente sobre o escândalo da OPAQ), recentemente revelou que um “oficial de alto escalão” na agência “exigiu a ‘remoção de qualquer vestígio’ de um documento que prejudicava as alegações de que cilindros de gás foram atirados do ar – elemento fundamental dentre as ‘provas’ de que o regime sírio era o responsável”. Theodore Postol, professor de ciência, tecnologia e segurança internacional do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) também endossou a conclusão de que os ataques de armas químicas “foram forjados”.

Tareq Haddad, jornalista do Newsweek, pediu demissão no início deste mês em protesto à recusa de seus editores em publicar sua reportagem sobre as manipulações da OPAQ. Sobre os planos de publicação de Haddad, um porta-voz do jornal afirmou: “O escritor apresentou uma teoria conspiratória, ao invés de uma ideia para uma reportagem objetiva. Os editores do Newsweek rejeitaram a proposta.”

Vale também nos lembrar do incidente de Ghouta, em 21 de agosto de 2013, ocorreu apenas alguns dias após o inspetor de armas das Nações Unidas pousar em Damasco, a fim de iniciar sua investigação sobre o suposto uso de armas químicas – uma “cronologia estranha” para Bashar al-Assad, conforme disse um artigo da publicação The Atlantic divulgado no mesmo dia do ataque, considerando que a responsabilidade logo foi atribuída ao governo. Alguns elementos da oposição síria demonstraram então esperanças de que a “linha vermelha” do Presidente dos Estados Unidos Barack Obama havia sido ultrapassada.

Outras dúvidas sobre o incidente em Douma residem no fato de que o governo sírio fez progresso ao recapturar territórios com assistência da Rússia e seus aliados ligados ao Irã, de modo que, do ponto de vista estratégico, o uso de gás clorino ou sarin desafia a lógica.

Ao referir-se ao vazamento inicial de documentos de engenharia, o Grupo de Trabalho sobre Síria, Propaganda e Mídia (WGSPM, em inglês), composto por acadêmicos críticos à cobertura convencional sobre Síria e que receberam o documento diretamente de um dos dissidentes da OPAQ, descreveram a organização, em sua supressão e manipulação de evidências, como “sequestrada desde o topo por França, Reino Unido e Estados Unidos”. Também afirmou que “o incidente forjado em Douma provocou um ataque a mísseis dos Estados Unidos, Reino Unido e França em 14 de abril de 2018 que levaria então a uma guerra de larga escala.”

O WGSPM ainda acrescenta que equipes da OPAQ que “suprimiram as evidências do adulteramento de informações, involuntariamente ou não, são cúmplices de assassinatos em massa.” O WGSPM foi acusado de recrutar um blogueiro suspeito de disseminar inverdades russas sobre a guerra na Síria.

A OPAQ, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2013, ainda não foi capaz de eliminar os depósitos de armas químicas de Israel, não declarados ou esclarecidos. Caso não existam, então os inspetores devem receber toda a licença para verificar o fato, assim como foram convidados por Bashar al-Assad. Evidentemente, este convite não ocorrerá assim tão logo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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