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A causa palestina na ideologia jihadista: entre fatos e ficções

Palestinos protestam contra a decisão do Parlamento alemão sobre o movimento de BDS, em Gaza, 23 de maio de 2019 [Mohammed Asad/Monitor do Oriente Médio]

O compromisso com a Palestina une muitos árabes, muçulmanos e outras minorias marginalizadas no Ocidente, além de gerar um forte apoio político, ideológico e emocional. A natureza deste vínculo costuma superar questões de ascendência familiar ou conexão religiosa, ao envolver uma experiência comum e implícita de alienação política.

Grupos jihadistas radicais, no entanto, exploraram a causa palestina para alcançar seus próprios objetivos. Neste contexto contraditório, o governo francês assumiu medidas recentes que penalizam a manifestação de críticas não-violentas ao sionismo, além de perseguir ativistas simpáticos ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Tais medidas prejudicam o exercício dos direitos humanos mais fundamentais e contribuem para a “radicalização” extremista. Posso argumentar, não obstante, que a liberdade de expressão sobre a ocupação israelense na Palestina tem o potencial de contribuir com a resistência das comunidades marginalizadas na França ao mesmo tempo em que frustra o antissemitismo e outras manifestações de “radicalização”.

Está além do escopo deste artigo rever toda a literatura relevante ao assunto, tais como as biografias dos líderes jihadistas salafitas; tampouco nos cabe traçar como a questão palestina afetou a trajetória histórica do jihadismo transnacional. As opiniões expressadas aqui são, entretanto, retiradas de informações concedidas pelos raros materiais de pesquisa disponíveis sobre o assunto e por declarações e registros em vídeo referentes à Palestina, produzidos pela própria liderança da Al-Qaeda e do Daesh (Estado Islâmico do Iraque e do Levante).

Não posso alegar absoluta objetividade, pois não sou indiferente à causa palestina ou ao Islã. De fato, pesquisar este assunto demonstrou-se particularmente difícil para mim devido às grandes similaridades que encontro entre a propaganda e as ações traumáticas do Daesh e do sionismo na década de 1940.

O conceito de jihad

Há grandes diferenças entre as diversas compreensões sobre o conceito de jihad, como há divergências sobre qualquer outra ideia cujo uso tenha sido mal interpretado a serviço da ideologia. Segundo a interpretação convencional islâmica, jihad pode ser entendido como uma luta interna entre o ego e o egoísmo; os textos islâmicos clássicos referem-se a isso como “grande jihad”. O dever de defender as pessoas da opressão ou o ato em legítima defesa são conhecidos como “pequena jihad”. O Corão declara: “E o que vos impede de combater pela causa de Allah e dos indefesos, homens, mulheres e crianças? Que dizem: Nosso Senhor, tira-nos desta cidade de opressores. Designa-nos, de Tua parte, um protetor que nos socorra’?” (4:75)

De fato, a perspectiva jihadista salafita parte destes conceitos tradicionais islâmicos. Enquanto a Al-Qaeda se esforça para manipular as escrituras corânicas a fim de legitimar seu terrorismo como uma forma de jihad, o Daesh sequer se importa em oferecer tais justificativas.

Militantes do Daesh [foto de arquivo]

Entretanto, a principal interpretação das relações com o “outro” no Islã vêm do Corão: “Allah não vos proíbe de serdes gentis e justos para com os que não vos combateram ou não vos expulsaram de vossos lares. Por certo, Allah ama os justos.” (60:8)

Com esta base, influente pensadores islâmicos como Shaikh Yusuf Al-Qaradawi, Malek Bennabi e Rached Ghannouchi afirmam consistentemente que o pluralismo, a democracia e o Islã são de fato compatíveis. A noção tradicional da jihad islâmica não sugere um conflito com a democracia.

A resistência palestina legítima e o jihadismo transnacional

Associar a resistência palestina legítima com grupos jihadistas internacionais é um objetivo comum a muitos atores, cada qual com sua própria motivação: o propósito de Israel, por exemplo, é recrutar ainda mais apoio do Ocidente à ocupação da Palestina e representar a si mesmo, diante da Europa e dos Estados Unidos, como vítima de ataques terroristas e, portanto, expert em combater o “terrorismo”, a fim de exportar sua perícia e tecnologia militar e de segurança para o resto do mundo.

No Egito, alegações infundadas de que o Hamas cooperava com grupos jihadistas no Sinai foram exploradas para incriminar adversários políticos, em particular, a Irmandade Muçulmana. Mesmo a Autoridade Palestina chegou a difamar o Hamas com uma campanha nas redes sociais que o associava com o Daesh (#Hamas=Daesh), com o intuito de incitar o repúdio popular aos seus principais adversários políticos.

Alegações de Israel

Israel jamais perde a oportunidade de relacionar a resistência palestina contra sua ocupação militar ao terrorismo global e ao jihadismo, mesmo quando tais vínculos são evidentemente falsos. Em janeiro de 2017, por exemplo, policiais israelenses mataram a tiros o educador Yaqoub Abu Al-Qiyan, além de ferir diversas outras pessoas durante uma operação de demolição na aldeia beduína de Umm Al-Hiran. A imprensa israelense fabricou uma história que representava Abu Al-Qiyan como um militante do Daesh que jogou seu veículo contra um policial; a acusação contrariava todos os relatos de testemunhas oculares, os quais afirmavam que tudo que ele havia feito era sair de sua casa para não ter de assistir à demolição. Somente mais tarde, um vídeo foi divulgado expondo a fraude israelense: o choque ocorreu depois que Abu Al-Qiyan perdeu o controle do veículo após ser baleado.

Em um discurso na Assembleia das Nações Unidas, em 2014, o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu declarou: “O Hamas é o Estado Islâmico; o Estado Islâmico é o Hamas.” Tais analogias de Netanyahu foram feitas em detrimento do fato de que as duas organizações são bastante diferentes e até mesmo antagônicas no que se refere à doutrina, jurisdição e prática. No mesmo ano, a Força das Nações Unidas de Manutenção da Paz (UNDOF, da sigla em inglês) revelaram que Israel colabora frequentemente com grupos jihadistas salafitas nas Colinas de Golã, território da Síria ocupado por forças israelenses; esta colaboração não se restringe apenas ao auxílio médico a militantes feridos do Jabhat Al-Nusra. Ao contrário, relatos descrevem a transferência de suprimentos não identificados de Israel às milícias sírias, assim como incidentes nos quais soldados israelenses permitem salvo conduto a sírios que não estão feridos.

Soldados israelenses em uma base militar nas Colinas de Golã, território sírio anexado por Israel, observam a província de Quneitra, no sudeste da Síria, visível da fronteira, em 7 de julho de 2018
[Jalaa Marey/AFP/Getty Images]

Ainda mais grave em tais implicações é o fato de que, em abril de 2017, Moshe Ya’alon, ex-Ministro da Defesa de Israel, sugeriu uma possível colaboração com o Daesh. “Disparos costumam vir de regiões sob controle do regime sírio,” ele explicou. “Porém, uma vez vieram das regiões dominadas pelo Estado Islâmico, que imediatamente se desculpou.” Ninguém pede desculpas a um suposto inimigo; dessa forma, é preciso questionar se o Daesh vê Israel como amigo.

Discurso transjihadista sobre a Palestina

Grupos como a Al-Qaeda e o Daesh, que se apropriam de graves violações de direitos humanos em nome do Islã, também são generosos ao utilizar a Palestina em sua retórica. Ao invés de uma solidariedade genuína, invocam a causa palestina devido à sua legitimidade e popularidade entre aqueles que deseja atingir com a sua propaganda jihadista internacional.

Segundo os relatos de Lawrence Wright sobre a ascensão de Osama Bin Laden, a mãe do líder da Al-Qaeda observou que Osama deixou de assistir filmes ocidentais aos catorze anos de idade. Ela o descrevia como profundamente consternado, triste e frustrado pela situação na Palestina, com lágrimas nos olhos enquanto via reportagens de televisão sobre a terra ocupada.

Thomas Hegghammer e Joas Wagemakers, autores do estudo de 2013 sobre “O Efeito Palestina no Movimento de Jihad Transnacional”, descobriram que os palestinos não ocupam grandes espaços na Al-Qaeda, seja na liderança ou na militância. Dos mais proeminentes ideólogos jihadistas palestinos somente um de três concentra-se na questão palestina: Abdullah Yusuf Azzam. Os outros, Al-Maqdisi e Al Falastini, consideram o nacionalismo palestino como antagônico ao objetivo de estabelecer um estado islâmico. No manifesto fundador do “Fronte Islâmico pela Jihad contra os Judeus e os Cruzados” (fevereiro de 1998), a Palestina é mencionada somente como a terceira justificativa para a jihad transnacional contra os americanos, após a presença militar dos Estados Unidos na Arábia Saudita e as sanções contra o Irã. O documento sugere um interesse religioso, e não humanitário, na Palestina: Caso os objetivos dos americanos nestas guerras [no Oriente Médio] sejam religiosos e econômicos, então servem aos interesses do estado judeu, a fim de distrair a todos de sua ocupação do bayt al-maqdis [um dos nomes árabes para Jerusalém] e do assassinato de muçulmanos no território ocupado.”

A Palestina é somente um dos inúmeros argumentos utilizados para convencer os muçulmanos a apoiarem a jihad, cuja incitação frequentemente ocorre por meio de atrocidades muito bem divulgadas e da tensão política constante nos territórios palestinos ocupados. A causa palestina é mencionada não somente para lamentar a opressão israelenses mas para criticar as ações políticas dos palestinos, em particular quando o Hamas decidiu participar das eleições em 2006. Por exemplo, naquele mesmo ano, Ayman Al-Zawahiri, oficial da Al-Qaeda, afirmou: “A Palestina está sob ocupação e sua constituição é pagã, feita pelo homem, e o Islã não tem nada a ver com isso.” Esta foi a sua forma de criticar o Hamas por participar das eleições. Em março de 2007, Al-Zawahiri repetiu suas críticas, declarando que: “A liderança do Hamas vendeu a Palestina; ainda antes, havia vendido a si mesma em relação à Sharia como fonte de autoridade.”

Outras citações jihadistas indicam como a causa palestina é apropriada

“O povo americano consentiu ao encarceramento do povo palestino, à demolição de casas palestinas e ao massacre de crianças no Iraque. É por isso que o povo americano não é inocente. O povo americano é parte ativa de todos esses crimes.” – Osama Bin Laden, 14 de outubro de 2002.

“O Shaikh Osama Bin Laden não os informou: vocês não sonharão com qualquer segurança enquanto não a vivenciarmos de fato em toda a Palestina?” – Ayman Al-Zawahiri, 4 de agosto de 2005.

“Hoje, a jihad na Palestina e no Iraque é um dever dos povos de ambos os países e dos outros muçulmanos.” – Osama Bin Laden, dezembro de 2004.

Em abril de 2007, Abu Omar Al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico do Iraque, declarou que o conflito em seu país “pavimentou o caminho para invadir o estado judeu e restaurar Jerusalém.”

A Palestina no discurso do Daesh

O Daesh possui um discurso menos elaborado sobre a Palestina do que a Al-Qaeda. A organização costuma utilizar imagens de Al-Aqsa e do Domo da Rocha em seus vídeos de propaganda, em particular no contexto de surgimento e destaque a teorias revisionistas, estabelecidas por falsos intelectuais a serviço do governo em diversos países árabes, que levantam dúvidas sobre a herança islâmica de Jerusalém. O Daesh também dignifica alguns de seus líderes com pseudônimos que sugerem vínculos com Jerusalém e a Palestina.

Amedy Coulibaly, atirador que atacou uma loja kosher em Paris, em 2015, segundo a jornalista Sarah-Lou Cohen (da emissora francesa BFM-TV), deliberadamente escolheu judeus como alvo “a fim de defender os muçulmanos oprimidos, especialmente na Palestina.”

Em outubro de 2015, o Daesh divulgou uma série de vídeos de apologia a ataques à faca, ao sugerir aos palestinos como utilizá-las de modo mais eficiente. Assim como os israelenses, o grupo também faz falsas alegações sobre ataques solitários executados por adolescentes palestinos, contra qualquer evidência disponível. Assim como a Al-Qaeda, o Daesh ataca a própria conjuntura da causa palestina: “Sua luta não é sobre terra, mas sobre certo e errado. É sobre religião.” Entretanto, vídeos do Daesh exibem rituais de queima de bandeiras, além de agressões impiedosas contra refugiados palestinos na Síria. A resposta do grupo à decisão de Donald Trump, presidente americano, de transferir a Embaixada dos Estados Unidos a Jerusalém veio tarde demais e foi irrelevante. Em um editorial publicado pelo jornal Al-Naba, o Daesh utilizou a ocasião para responsabilizar outros grupos islâmicos por suas “declarações hipócritas e oportunistas.”

A dimensão universal da causa palestina

O historiador britânico Arnold Toynbee disse certa vez: “A tragédia na Palestina não é somente local; é uma tragédia para todo o mundo, pois é uma injustiça que ameaça a paz mundial.” A causa palestina possui ecos universais, não apenas devido ao valor religioso da chamada Terra Santa, mas também porque a Palestina é cenário de conflitos e atritos duradouros, concretos e ainda vigentes entre o Ocidente dominante e imperialista e o Oriente. A relação de poder manifestada na ocupação militar de Israel sobre a Palestina é um fator importante na mentalidade social e política de muita gente por todo o mundo; o significado simbólico da resistência palestina à ocupação possui potencial para libertar muitos povos da opressão imediata em seus próprios países.

Mulher palestina chora após sua casa ser destruída por ataques aéreos israelenses em Gaza, 26 de março de 2019 [Hassan Jedi/Agência Anadolu]

No contexto de consciência global, talvez seja inevitável que haja uma contínua, violenta e perigosa deturpação da luta palestina, como aquela representada pelo Exército Vermelho Japonês (1970) aos grupos jihadistas.

A resposta árabe e palestina às alegações jihadistas

Grupos jihadistas globais contribuíram em absolutamente nada para legitimar a resistência palestina contra a ocupação israelense. A razão para isso é que as reivindicações, narrativas e formas de resistência palestinas são terminantemente humanitárias, fundamentadas sobre direitos humanos reconhecidos internacionalmente, além de surgirem de uma realidade política brutal, ao invés de uma suposta promessa divina.

Não surpreende que os grupos jihadistas possuem pouco apoio popular entre os palestinos e entre os árabes de modo geral. Os palestinos não compartilham de sua ideologia política, tampouco imitam suas táticas, pois estas implicam em severas violações de direitos humanos. Uma pesquisa de opinião pública conduzida na Cisjordânia e na Faixa de Gaza pelo Centro Palestino de Pesquisa Política (PSR), em 2015, demonstrou que uma enorme maioria da população (91 por cento) acredita que o Daesh é um grupo radical que não representa o verdadeiro Islã. Em 2018, a Pesquisa de Opinião Árabe, conduzida pelo Centro Árabe de Pesquisa e Estudos Políticos no Catar, revelou o seguinte: quase todos as entrevistados (98 por cento) indicam estar cientes do “Estado Islâmico”; uma maioria esmagadora (92 por cento) enxerga a organização jihadista de forma negativa; somente dois por cento demonstraram uma concepção “positiva” sobre o Daesh. De modo bastante interessante, as respostas favoráveis não eram correlacionadas a qualquer aspecto religioso; aqueles que se identificaram como “não religiosos” eram tão propícios a simpatizar com as visões do Daesh quanto aqueles que se identificaram como “bastante religiosos”. Os pesquisadores concluíram que o comportamento público em relação ao Daesh é gerado por considerações políticas atuais e não motivados pela religião.

Quando questionados sobre os fatores que poderiam levar alguns cidadãos de países árabes a se filiarem ao Daesh, 42 por cento dos entrevistados reiteraram a instabilidade política em seus países; 24 por cento, condições econômicas; seis por cento, circunstâncias sociais como desigualdade, marginalização e exclusão social. Dezoito por cento também mencionaram “lavagem cerebral” e “propaganda”; outros seis por cento descreveram a oportunidade de lutar contra potências estrangeiras e/ou contra milícias sectárias na Síria e no Iraque. Menos de trinta por cento dos entrevistados creditaram a existência do grupo como resultado de conflitos internos no Oriente Médio, comparados a 59 por cento que a atribuíram às políticas das potências internacionais. Quando perguntados sobre a melhor forma de combater o Daesh, resolver o conflito palestino foi a terceira resposta mais comum, na seguinte ordem: meios militares (18 por cento), fim da intervenção estrangeira nos países árabes (17 por cento), resolver o conflito palestino (13 por cento), apoiar transições democráticas (12 por cento) e resolver problemas econômicos (nove por cento).

Refugiados sírios em um campo provisório entre Síria e Jordânia, em 1° de março de 2017 [Khalil Mazraawi/AFP/Getty Images]

No início de 2018, o Daesh divulgou um vídeo de 22 minutos no qual declarava guerra contra o Hamas ao descrever os combatentes palestinos como “apóstatas”. No final do vídeo, o soldado do Daesh Hamza Zamli ordenou que um homem mascarado executasse Musa Abu Zamt, membro do Hamas capturado pelos jihadistas. O vídeo expôs a feroz inimizade entre o Daesh e o Hamas. O Daesh é visto pelo público palestino em geral como mais uma ferramenta de controle e repressão contra a resistência palestina.

O Hamas também se distanciou dos jihadistas salafitas. Após um atentado suicida matar Nidal Ja’afri, membro do braço militar do Hamas, na fronteira com o Egito, em agosto de 2017, o movimento de resistência passou a descrever as concepções jihadistas salafitas como “uma ideologia corrompida” e “implantação estrangeira.” O Hamas acredita que enfrenta ao menos dois adversários: Israel e os jihadistas salafitas; o último tenta “perverter o compasso da jihad santa contra os ocupantes sionistas.” O então chamado Estado Islâmico acusou o Hamas de abandonar o caminho muçulmano, capitular à tirania e concentrar-se exclusivamente na Faixa de Gaza, ao abandonar, portanto, o resto da Palestina. O Daesh chegou até mesmo a incitar que seus apoiadores agissem contra o Hamas, declaração apoiada por Qazem Al-Azawi, mufti da organização residente no Sinai.

Correspondências entre o ‘Estado Judeu’ e o ‘Estado Islâmico’

Os palestinos talvez sejam a população mais repudiada pelo Daesh devido à similaridade nos objetivos e métodos do grupo jihadista com aqueles utilizados para a criação do estado judeu, em 1948. Fiz comparações dessa natureza em um artigo prévio – “Após Paris, o caminho israelense não é a resposta”, onde argumentei que: “Tanto o Daesh quanto o ‘estado judeu’ foram estabelecidos por meio de massacres hediondos que resultaram em uma enorme população de refugiados. Ambos demonstram ambições expansionistas. A estratégia do Daesh é atacar o Ocidente, com o propósito de provocar ainda maior discriminação contra muçulmanos ocidentais a fim de tirá-los da ‘zona de isenção’. De modo semelhante, o Mossad israelense foi responsável por ataques terroristas contra judeus no Iraque, Egito e Marrocos, planejados para induzí-los a emigrar para Israel. Outros exemplos são: a Operação Sushana, na qual espiões israelenses planejaram ataques a bomba contra judeus egípcios; o ataque prolongado e deliberado contra o USS Liberty, executado pela força aérea e por barcos torpedeiros israelenses, que resultou na morte de 34 tripulantes e 171 feridos; além de diversas operações de bandeira falsa em todo o mundo. Outras pessoas, países e organizações levaram a culpa por estes crimes hediondos cometidos por Israel.”

Sobretudo, jihadistas salafitas ainda hoje compartilham com a ideologia sionista a constante deslegitimação da narrativa nacional palestina; além disso, ambos têm como alvos integrantes da resistência palestina. Ambos advogam pela supremacia religiosa em detrimento a valores fundamentais da sociedade, princípios da democracia e direitos humanos universais. Entretanto, uma diferença significativa entre os líderes do terrorismo sionista e os homens do Daesh é que os primeiros tornaram-se estadistas, quando não consagrados pelo Prêmio Nobel da Paz, enquanto os últimos foram universalmente condenados à morte.

Enfrentando o psicológico e o contextual

O compromisso com o jihadismo salafita é um processo individual de desenvolvimento de crenças, emoções e comportamentos extremos; contudo, não se desenvolve somente no campo psicológico. Também recebe influência do contexto sociopolítico. Pesquisas e intervenções sobre o assunto, até então, são concentradas em torno da “mente dos jihadistas”. Discriminação, crise socioeconômica, repressão política e entraves duradouros a qualquer mudança social e política por meio de métodos pacíficos; tudo isso estremece a fé do indivíduo nos direitos humanos e na democracia. Tais pressões criam uma abertura para certos indivíduos vulneráveis e receptivos a se submeterem a mentalidades absolutas, binárias e sectárias. Estas distorções cognitivas servem para compensar sentimentos pessoais de incerteza, falta de sentido, falta de foco na vida e uma noção subjetiva de um mundo fragmentado.

Não podemos subestimar o efeito os ataques contra organizações islâmicas moderadas, como a Irmandade Muçulmana, ao tentar compreender a radicalização de certos indivíduos da juventude muçulmana. Justamente nestes momentos de máxima vulnerabilidade que o jihadismo salafita apela às pessoas privadas de sua própria identidade para lhes oferecer uma “solução diferente”. A identificação de grupo soluciona o problema da incerteza e da insegurança (Tajfel, 1979).

Assim como outros países ocidentais que apoiam regimes árabes opressivos enquanto demonizam grupos islâmicos moderados, a França também realiza esforços para deslegitimar ações que desafiam ideologicamente o sionismo. Dois meses após sua posse, o Presidente francês Emmanuel Macron declarou: “Não cederemos ao antissionismo pois esta é a forma reinventada do antissemitismo.” Em fevereiro deste ano, Macron afirmou que considerava propor uma legislação para equiparar o antissionismo com o crime de antissemitismo. O Primeiro-Ministro francês Manuel Valls reiterou: “Há, no âmago do coração do Islã, uma doença que o devora, que é o antissemitismo, o ódio a Israel.”

A França também se apropria da Lei Lallouche, que pune a “discriminação” com base na nacionalidade, para restringir o movimento de BDS, campanha palestina e internacional da sociedade civil com o propósito de conter a opressão dos palestinos pela ocupação israelense e pressionar Israel a adequar-se às leis internacionais. Em janeiro deste ano, um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da França afirmou: “O chamado pelo boicote a Israel é de fato ilegal na França.” Inúmeras decisões da mais alta corte criminal da França confirmaram que este chamado, segundo a interpretação jurídica, infringe a lei e constitui em incitação à discriminação ou ao ódio com base em nacionalidade ou religião. Entretanto, o governo francês não assumiu a mesma postura ao boicotar a Rússia devido às suas ações na Ucrânia.

Deslegitimar a solidariedade com a causa palestina na França e disseminar perspectivas islamofóbicas, junto à exclusão da comunidade islâmica na vida política do mundo árabe, ameaçam compelir as pessoas em direção ao radicalismo, o que serve aos interesses dos grupos jihadistas. Abu Musab Al-Suri, ideólogo jihadista, em seu manifesto de 2005 – “O Chamado à Resistência Islâmica Global” – argumentou que conduzir ataques em solo europeu – a “zona vulnerável do Ocidente” – seria capaz de revelar a conjuntura política europeia e convencer os muçulmanos europeus de que a coexistência não é possível em um continente xenofóbico e racista.

A responsabilidade moral dos palestinos

Indivíduos envolvidos na resistência palestina possuem um perfil psicológico diferente dos jihadistas transnacionais: ao contrário de muitos militantes deste último, os palestinos não são criminosos condenados, tampouco são motivados por teorias supremacistas, pensamento dicotômico ou supostas promessas feitas por Deus. A resistência palestina aceita a democracia, o pluralismo, a responsabilidade política e o conceito de estado civil. Na Palestina ocupada, a resistência legítima luta para responsabilizar os agentes de sua opressão política, reage de forma modesta contra ataques iniciados contra a população palestina e busca oportunidades para solucionar os conflitos e chegar à paz. O Hamas jamais atacou ou incitou o ataque contra qualquer entidade que não fosse a ocupação israelense. Além disso, sempre interveio para impedir qualquer agressão cometida a estrangeiros, como no caso do sequestro do jornalista britânico Alan Johnston, e jamais alardeou o tratamento concedido aos prisioneiros israelenses, como Gilad Shalit.

Protesto durante uma partida da Copa Davis de tênis entre Israel e África do Sul, em Pretória,
África do Sul, 3 de fevereiro de 2018 [Facebook/BDS África do Sul]

Os palestinos possuem a obrigação moral de observar como a sua causa é apropriada por agentes políticos fora da Palestina. Os eventos na Palestina há muito motivam uma noção complexa de solidariedade às suas reivindicações na comunidade internacional; este sentimento os inspira a agir pela mudança. Os palestinos inventaram métodos e criaram oportunidades para a resistência global ao sionismo e para a solidariedade com seu povo de modo compatível aos direitos humanos universais e à cultura da democracia, como estabelecido pelo Conselho da Europa, em 2016. Alguns destes movimentos de resistência são a campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), We Are All Mary, em apoio às mulheres palestinas, e a Rede Global de Saúde Mental.

O povo da Palestina pode oferecer um esclarecimento conceitual profundo e uma alternativa internacional ao ativismo de direitos humanos como desafio às decisões injustas, por meio do engajamento civil e pacífico. Este ativismo abraça decisões políticas que previnem a radicalização violenta e recebem aceitação genuína de si mesmos e de quem os observa; aumenta, ao invés de menosprezar, a noção de pertencimento a um grupo humano amplo, constituído por cidadãos responsáveis moral e socialmente.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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