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Uma mulher não é nenhum homem

Autor do livro(s) :Etaf Rum
Data de publicação :março de 2019
Editora :Harper Collins
Número de páginas do Livro :346 páginas
ISBN-13 :978-0062699763

Enquanto continuam a surgir novas vozes dentro da tradição das ficções anglo-árabes, uma constante dessas narrativas é a conversa em torno da negociação de identidades entre a cultura tradicional árabe em relação a uma cultura ocidental. O romance de estréia de Etaf Rum, “A Woman is No Man” (“Uma mulher não é nenhum homem”, em tradução livre), diverge das representações tradicionais da luta de identidade ao fornecer aos leitores uma perspectiva de gênero. O romance segue a vida de três gerações de mulheres dentro da mesma família. Começa em 1990, em Birzeit, com Isra, que aos 17 anos de idade, na Palestina, prefere ler livros a alimentar discussões sobre casamento e pretendentes. Um dia, uma família de americanos palestinos vem a sua casa para pedir sua mão e é aqui que o leitor é apresentado ao seu futuro marido; Adam Ra’ad, de Ramla, vivendo no Brooklyn, Nova Iorque. Como se subitamente, Isra se vê imigrando para um novo país, equipada com sua própria versão do sonho americano; a esperança de encontrar amor e liberdade.

O início do romance já deixa antever que a vida de Isra será definida por uma espécie de cativeiro doméstico. Seus dias são cíclicos e ela é incapaz de experimentar qualquer coisa além das quatro paredes de seu porão ou da cozinha onde sua exigente sogra, Fareeda, espera que ela passe seus dias trabalhando ao seu lado. A vida de Isra é reduzida a ter filhos, limpar e cozinhar uma variedade da culinária palestina. Para o desgosto de sua sogra, todos os filhos de Isra e Adam são meninas, colocando mais pressão sobre o casal para que mantenha o nome da família nos Estados Unidos, embora sua nova casa permaneça estrangeira e intimidadora. A partir dessa infelicidade, surge uma relação exploratória na qual Adam bate em Isra, aprofundando ainda mais o ciclo vicioso de abuso e confinamento doméstico que domina as passagens desse romance. Na esteira de seu trauma, Isra lê para lidar com sua dor e ficar em silêncio; raramente utiliza sua voz.

Entre os pontos fortes da estreia de Rum está a maneira pela qual ela é capaz de tecer as três perspectivas das mulheres cujas experiências ocupam suas páginas. A narrativa muda de um lado para o outro entre Isra, Fareeda e a filha primogênita de Isra, Deya. Como sua mãe, Deya luta com a monotonia da vida doméstica. Ela é incapaz de livrar-se da pressão e da natureza sufocante das exigências e expectativas de Fareeda, que apesar das muitas tragédias que caíram sobre sua família, ainda acredita sinceramente que o lugar de uma mulher é em casa e seu destino é casar-se e tornar-se mãe. Em resposta a isso, todas as mulheres neste romance, com exceção de Fareeda, são notavelmente semelhantes em seu apetite voraz por livros, como um meio de fuga mental. Todos os homens são semelhantes em sua incapacidade de ver além de seu papel como provedores financeiros e como patriarcas da estrutura familiar.

O ponto fora da curva nesta narrativa é Deya, que em contraste a sua avó e mãe, é sincera, ousada e anseia por uma vida cheia de opções. Ela representa a primeira ou segunda geração nascida de comunidades tradicionais de imigrantes nos EUA ou outros lugares, uma geração que resiste em aceitar plenamente os papéis de gênero em um contexto hiper-tradicional. Assim, “Uma mulher não é nenhum homem” está entre os poucos romances do gênero e pode servir como uma intervenção oportuna em um momento em que o debate público em torno do abuso doméstico e do assédio sexual está em alta na mídia global. Além disso, Rum subliminarmente sugere que a ocupação e a violência que dominam muitas experiências palestinas são em si o demônio que duplamente oprime homens e mulheres, já que eles têm pouco poder e atuação além de reforçar e cumprir o hiper-tradicionalismo.

A estréia de Rum falha, no entanto, diante do uso de uma linguagem absolutista e da super-generalização de uma comunidade diaspórica que enfrenta muitas lutas. Em sua tentativa de retratar a ansiedade e a natureza cíclica do confinamento doméstico, Rum produziu um romance no qual uma mensagem singular inunda a obra de aproximadamente 300 páginas, como sugere seu título; que uma mulher não está a par das mesmas liberdades que um homem. Isso é evidente nas linhas de abertura do livro, uma declaração da perspectiva de Deya:

“Eu nasci sem voz, num dia frio e nublado em Brooklyn, Nova York. Ninguém nunca falou da minha condição. Eu não sabia que era muda até anos mais tarde, quando abri a boca para pedir o que queria e percebi que ninguém podia me ouvir. De onde eu venho, a falta de voz é a condição do meu gênero.”

Rum declarou em entrevistas que seu principal embate ao escrever este romance esteve no fato de trair um código de silêncio dentro de sua comunidade, que luta para se proteger de sentimentos anti-palestinos e aumento da islamofobia. Ao mesmo tempo, ela sentia que era importante representar as lutas de mulheres submetidas a esta experiência particular. Rum poderia ter descartado esse medo se tivesse feito a distinção de que este romance representa uma experiência palestino-americana que ela e outras testemunharam ou experimentaram, ao invés de uma experiência palestino-americana generalizada.

Sugerir que uma mulher não tem voz na sociedade árabe, algo que Rum faz em muitos pontos do romance, ignora completamente a tradição de contar histórias como um meio de preservação histórica e sobrevivência que a diáspora palestina tornou conhecida. Uma tradição que homens e mulheres desfrutam. Além disso, como a experiência do exílio entra agora na quarta geração, muitos palestinos valorizam a busca da educação e da liberdade intelectual acima de tudo. Assim como em qualquer comunidade (imigrante), enquanto há aqueles que permanecem devotos de uma interpretação limitada das tradições, há também um grande número de homens, e maior ainda de mulheres dessas comunidades que desfrutam de uma ascensão meteórica ao topo da escala social, seja através da sua aceitação na Liga Ivy (grupo desportivo de elite de universidades nos EUA) ou através das suas contribuições inovadoras para a sociedade.

A representação do Rum continua sendo importante. No entanto, infelizmente, reverbera o equívoco de confundir uma experiência particular de imigrante com todas as experiências de imigrantes em suas muitas manifestações, ao invés de enfatizar que é uma representação de uma família e uma comunidade neste vasto mundo de lutas e experiências vividas. A questão da liberdade e atuação das mulheres é global e não uma situação exclusiva das culturas árabes, em termos gerais. A obsessão do Ocidente em usar uma imagem ou experiência de pessoa não-branca como modelo de propaganda determinante de todo entendimento coletivo dessa cultura também permanece um desafio universal. Já é tempo de nos concentrarmos na distinção e nas nuances dos registros linguísticos em nossa troca mútua de informações. Ao todo, a estréia de Rum apresenta aos leitores uma história de partir o coração, e muitos já se perguntam sobre o que ela trará para seus leitores na próxima vez.

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