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Uma economia do genocídio: Israel e o Relatório Albanese

6 de julho de 2025, às 14h00

Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, durante ato contra o genocídio em Gaza na cidade de Madrid, na Espanha, em 23 de junho de 2025 [Burak Akbulut/Agência Anadolu]

É uma leitura sinistra. O relatório para o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) denominado Da economia da ocupação a uma economia do genocídio identifica diversas “entidades corporativas” que de fato enriqueceram com a “economia israelense de ocupação ilegal, apartheid e, agora, genocídio”. De autoria da implacável Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, este documento é contundente em sua análise e seus alertas a empresas que fazem negócios com Israel.

O que torna a investigação de Albanese tão útil é sua avaliação do mundo corporativo e seus laços com um programa colonial de assentamentos voltado a remover e deslocar uma população nativa de suas terras. O maquinário de conquista dos Estados envolve necessariamente não apenas a burocracia civil e as decisões militares como a ânsia de agentes corporativos em lucrar mais e mais. “Empreendimentos coloniais e genocídios associados”, escreve Albanese, “têm sido motivados e avalizados, historicamente, pelo setor corporativo. Interesses comerciais têm contribuído para a despossessão de povos nativos de suas terras — um modelo de dominação conhecido como ‘capitalismo racial colonial’”.

Oito setores privados estão sob escrutínio: fabricantes de armas, firmas de tecnologia, construtoras civis, indústrias de extração e serviços, bancos, seguradoras e fundos de pensão, universidades e entidades beneficentes. “Essas entidades viabilizam a negativa da autodeterminação e possibilitam outras violações estruturais na Palestina, incluindo ocupação, anexação e crimes de apartheid e genocídio, assim como uma lista de crimes e violações auxiliares — desde discriminação, destruição generalizada, deslocamento à força e pilhagem a fome e assassinatos extrajudiciais”. 

No centro da multifacetada economia do genocídio, indica o relatório, está o complexo industrial militar, que constitui a “espinha dorsal da economia do Estado”. Albanese cita um exemplo formidável: jatos militares F-35, desenvolvidos pela corporação Lockheed Martin, radicada nos Estados Unidos, em parceria com centenas de outras companhias, “incluindo a fabricante italiana Leonardo S.P.A. e firmas de oito Estados”.

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Desde outubro de 2023, o processo de colonização e deslocamento assumiu novos ares de urgência, auxiliado pelo setor privado. Em 2024, foram aventados cerca de US$200 milhões para “construção colonial”. Entre novembro de 2023 e outubro de 2024, foram estabelecidos 57 novos assentamentos e postos avançados ilegais em terras ocupadas, “com empresas israelenses e internacionais fornecendo maquinário, matéria-prima e apoio logístico”. Exemplos abrangem a manutenção e expansão da Linha Vermelha de veículos leves sobre trilhos de Jerusalém e a construção da Linha Verde, com 27 km de trilhos e 50 estações na Cisjordânia. Tamanha infraestrutura, a uso exclusivo de colonos ou a serviço das entidades israelenses, sob segregação institucionalizada, é inestimável em criar continuidade no projeto colonial Jerusalém—Cisjordânia. Apesar da saída de algumas empresas “devido a pressão internacional”, entidades como a empresa basco-espanhola Construcciones y Auxiliar de Ferrocarriles se mantiveram ávidas a participar do esquema, junto de fornecedoras de escavadoras — como a Doosan sul-coreana e o Grupo Volvo da Suécia — e de materiais utilizados na instalação de pontes — como a Heidelberg da Alemanha.

Para além do programa físico-estrutural de construção e subsequente deslocamento à força — tudo esboçado para extinguir qualquer vestígio de autodeterminação de parte dos palestinos —, emergiram outras facetas do projeto colonial. Um aspecto eminente, comentou Albanese, repousa na “vigilância e carceralidade”. Reprimir os palestinos se tornou um empreendimento “progressivamente automatizado”, com corporações de tecnologia alimentando a voracidade israelense, com “desenvolvimentos sem paralelo de aparelhos de vigilância e detenção”, incluindo redes de câmeras, biometria, postos e checkpoints de ponta, drones-sentinelas e armazenamento em nuvem.

A Palantir Technologies Inc. merece menção: “Há base para crer que a companhia tem fornecido tecnologia automatizada de policiamento previsional, infraestrutura fulcral para construção rápida e em escala e uso de softwares militares, incluindo plataformas de Inteligência Artificial, a Israel, para possibilitar a integração em tempo real de dados do campo de batalha, voltados a tomada automatizada de decisões”.

Com a publicação, começou a dança da dissimulação. A Lockheed Martin alegou à rede Middle East Eye que analisar as exportações militares não lhe diz respeito no que alude a responsabilização ou causa de apreensão devida — uma atitude frouxa e corporativa sem qualquer fundamento ético. Tais vendas, insistiu a empresa, caberiam a governos, de modo que a Casa Branca, no caso, seria mais adequada a conceder respostas. Lavar as mãos — sujas de sangue — é especialidade do setor privado.

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Em um sentido mais franco, tanto Israel quanto Estados Unidos prosseguiram com sua campanha de ódio a Albanese, ao repisar — de forma deveras tediosa — acusações de longa data e interpretações tacanhas e facciosas, empregues pela ocupação, sobre a lei internacional. Dado o óbvio desprezo às convenções de direitos humanos pelos oficiais israelenses e seus apoiadores americanos, o dossiê e sua réplica se revelam ainda mais ricos, dada a jurisprudência, como a decisão consultiva, de julho de 2024, do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, sobre a ilegalidade da ocupação, bem como os mandados de prisão contra oficiais israelenses do Tribunal Penal Internacional (TPI) — corte-irmã, que julga indivíduos —, incluindo o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Tais desenvolvimentos são parte fundamental da argumentação de Albanese.

Conforme o TIJ, todos os Estados têm obrigação de “cooperar com as Nações Unidas” em assegurar “fim da presença ilegal israelense nos territórios ocupados, bem como a plena realização do direito à autodeterminação do povo palestino”. A ocupação, sob a análise histórica, embora tardia, “é um ato injusto de caráter contínuo, que engendrou violações israelenses, mediante práticas e políticas, de aquisição de território à força, e contra o direito à autodeterminação do povo palestino”.

Para Israel, o relatório seria “legalmente infundado e difamatório, como abuso aberto do cargo [de Albanese]”. Em carta de 20 de junho ao secretário-geral da ONU, António Guterres, da gestão americana de Donald Trump, a Casa Branca — notória por abrigar, hoje, supremacistas brancos — buscou deslegitimar o dossiê técnico de Albanese como “virulento antissemitismo e apoio ao terrorismo”, para além de tentar diminuir mesmo as qualificações técnicas da experiente relatora. Pouco falou, no entanto, das normas e das leis internacionais, senão uma recusa prepotente, por parte da enviada americana na ONU Dorothy C. Shea, de resoluções da Assembleia Geral e decisões de seus órgãos, como as cortes em Haia.

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Para Shea, em tom difamatório característico do governo trumpista, Albanese “mentiu em suas qualificações para o papel, ao alegar ser advogada internacional muito embora tenha admitido não ter passado na prova da ordem ou ser licenciada para a prática do direito”. Uma acusação fantasiosa, é claro, dado o desdém aberto a “qualificações” de membros do exército israelense e outras repartições burocráticas e corporativas, cujo enfoque é deslocamento, assassinato e fome.  Além disso, as acusações documentadas contra diversas corporações, incluindo 20 americanas, estaria “repleta de uma retórica inflamatória”, em alusão a termos de uso amplo como “violações de direitos humanos”, “apartheid” e “genocídio”. Para Washington, “uma campanha inaceitável de guerrilha político-econômica contra os mercados americano e global”.

Não surpreende que a lógica de segurança — que ignora os direitos palestinos, e ainda mais as necessidades de vida e sobrevivência de sua população — tenha esperneado diante das denúncias “enviesadas” de Albanese. “Atividades empresariais, sobretudo aquelas alvejadas pela sra. Albanese, contribuem e auxiliam com a segurança nacional, a prosperidade econômica e o bem-estar humano no Oriente Médio, Norte da África e Europa”, insistiu a resposta. Novamente, nenhuma menção ao povo palestino.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.