clear

Criando novas perspectivas desde 2019

Bombardear hospitais é um absurdo — exceto quando Israel é que está fazendo

24 de junho de 2025, às 06h00

Bebês prematuros recebem cuidados no Hospital Nasser de Khan Yunis, sob ataques de Israel, na Faixa de Gaza, em 19 de junho de 2025 [Doaa Albaz/Agência Anadolu]

Na manhã de quinta-feira (19), mísseis iranianos atingiram o hospital de Soroka, em Beersheba, levando a expressões de indignação de oficiais israelenses. 

O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, conhecido por suas declarações racistas, não se constrangeu em equiparar os iranianos a “nazistas que lançam mísseis contra hospitais, idosos e crianças”.

O presidente israelense Isaac Herzog evocou imagens de um bebê em terapia intensiva e um médico correndo entre leitos.

Já o ministro da Cultura, Miki Zohar, declarou nas redes sociais que “somente a escória da humanidade é capaz de lançar mísseis contra crianças e idosos hospitalizados, em seus leitos de enfermaria”.

O presidente da associação médica israelense, Zion Hagay, classificou o ataque como crime de guerra e pediu condenação da comunidade médica internacional.

Tamanha condenação rápida e unânime por parte da liderança política e médica israelense expõe uma contradição gritante: os mesmos atores ignoraram — e muitas vezes justificaram abertamente — a destruição de hospitais em Gaza nos últimos dois anos.

Desde 7 de outubro de 2023, ataques aéreos e invasões por terra perpetrados pelas forças da ocupação israelense dizimaram a infraestrutura de saúde em Gaza. A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou cerca de 700 ataques a unidades de saúde. Centros cruciais para salvar vidas — como al-Shifa, Nasser e o Hospital Indonésio — foram sitiados, bombardeados e desmantelados.

LEIA: Como o sistema de saúde israelense se tornou um instrumento de violência estatal contra palestinos

Autoridades israelenses enquadram esses hospitais como “alvos militares” e mesmo “escudos do Hamas”. O complexo de al-Shifa — maior hospital de Gaza — foi colocado sob cerco e então invadido, com o ataque sendo celebrado pela imprensa israelense em tons de vitória.

A Associação Médica Israelense permaneceu em silêncio. Em uma de suas raras declarações após um ano e meio de ataques diretos e deliberados contra hospitais e outros itens de infraestrutura civil, a entidade repetiu a narrativa do Estado, ao insistir que instalações e profissionais de saúde não devem ser alvo “a menos que estejam sendo usados como base para atividades terroristas”.

Indignação seletiva

O que mais choca neste momento é a indignação seletiva dos líderes israelenses e seus cúmplices internacionais. Os mesmos ministros que justificaram o desmantelamento sistemático do sistema de saúde de Gaza agora descrevem um ataque a um hospital como um limite intransponível — crime de guerra.

A imagem passional criada por Herzog — de médicos correndo entre leitos — ecoa a realidade brutal em Gaza, onde pacientes de saúde são baleados em salas de cirurgia, presos ou forçados a abandonar pacientes sob fogo.

A comunidade médica internacional compactuou com silêncio. Embora muitos médicos tenham se manifestado, a maioria se omitiu — sem jamais propor medidas concretas para responsabilizar Israel.

Seria ingênuo ver tais declarações oficiais como desconectadas do sentimento do público israelense. A grande maioria dos israelenses defende a destruição da infraestrutura médica do território palestino. O discurso público normalizou a ideia de que hospitais seriam alvos militares legítimos — em muitos casos, até comemorando sua destruição.

LEIA: Não restam hospitais no norte de Gaza, confirmam Nações Unidas

A normalização não é acidental, mas integra um processo mais amplo de desumanização dos palestinos, onde mesmo uma criança anestesiada em cirurgia não é vista como vítima, mas como “dano colateral” ou “escudo humano”.

A indignação com Soroka revela uma verdade mais profunda: para muitas instituições e plateias globais, algumas vidas valem muito mais que outras. Quando hospitais israelenses são porventura atingidos, o mundo reage com empatia urgente. Quando hospitais palestinos são destruídos — com pacientes mortos nos leitos e médicos presos durante cirurgia — o mundo vacila, racionaliza ou cala.

Isso vai além de mero padrão duplo: reflete uma hierarquia arraigada sobre qual sofrimento merece ou não atenção. 

Líderes israelenses hoje falam de limites morais, de civis e crianças, de hospitais como santuários. No entanto, há quase dois anos, esses mesmos valores são sistematicamente violados em Gaza, sem um pingo de arrependimento. A situação revela não apenas hipocrisia, mas também a confiança cínica que vem com a impunidade. Demonstra como os limites do luto e da indignação se limitam às vidas israelenses, baseados na certeza de que Israel não sofrerá consequências.

A conjuntura põe todo o sistema internacional à prova. Embora alguns grupos médicos e humanitários tenham exprimido apreensão, a maioria dos atores globais segue em silêncio diante da destruição em Gaza.

Revistas médicas, associações internacionais e agências das Nações Unidas responderão ao ataque a um hospital israelense com a mesma condenação rápida e ações concretas que deixaram de tomar quando hospitais em Gaza foram bombardeados? O mundo deveria ter agido assim que a primeira sala de cirurgia foi atacada em Gaza. Não deveria ser necessário um hospital israelense ser atingido para que se lembrassem que hospitais são espaços protegidos por lei.

Se um ataque a um hospital é uma linha vermelha, deve valer para todos — não apenas aos interesses israelenses. Se o direito internacional tem ainda algum sentido, deve proteger a todos, com os mesmos padrões aplicados a cada violação. Qualquer coisa menos que isso é mais do que hipocrisia: é cumplicidade.

LEIA: Israel mata 27 palestinos em posto humanitário de Gaza, alertam paramédicos

Artigo publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 19 de junho de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.