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Copa do Mundo 2022: Futebol, neoliberalismo e revolução no Oriente Médio

Estádio Khalifa Internacional, o único dos oito utilizados na Copa que já existia antes, localizado na área da Aspire Academy, um centro esportivo de excelência. [Divulgação/Fifa]

De longe, o esporte mais popular do mundo, o futebol tem um lugar especial entre os estados e as sociedades do Oriente Médio. O maravilhoso jogo tem uma história rica e vibrante na região e persevera como força de união cultural e identitária na dimensão desportiva. O futebol reúne famílias que passam sua torcida de geração a geração. O esporte leva cidades inteiras a celebrar nas ruas as vitórias mais memoráveis de suas equipes. O futebol mobiliza países inteiros sob um escudo nacional consagrado pelo órgão administrativo do esporte em escala global: a Federação Internacional de Futebol – a FIFA.

As torcidas de futebol também canalizaram a voz do povo durante revoluções de massa, apesar da expropriação histórica do esporte por numerosas ditaduras para tentar angariar apoio a seus regimes autocratas. O futebol é frequentemente invocado para tratar do relacionamento entre os estados, tanto em momentos de cooperação quanto contextos conflituosos. Como registra o trecho abaixo, a história do futebol no Oriente Médio está intrinsecamente entrelaçada com as experiências amplas de toda a região e mesmo o destino de seus povos.

Este é um trecho de Football in the Middle East: State, Society, and the Beautiful Game (Futebol no Oriente Médio: Estado, sociedade e um jogo maravilhoso), editado por Abdullah al-Arian e publicado em inglês pela editora Hurst em colaboração com a Universidade de Oxford.

Contra todas as chances, a seleção nacional iraquiana derrotou equipes como Austrália e Coreia do Sul para chegar à grande final da Copa da Ásia de 2007, onde enfrentou a sempre favorita e tricampeã do torneio, Arábia Saudita. Mesmo sob condições ideais, avançar a sua primeira final seria um feito impressionante para o Iraque; todavia, como observou um articulista na época, a disputa equivalia à peleja entre “um time sem estado contra a equipe com maior financiamento do planeta”.

Desde a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, que culminou em mais de dez anos de duras sanções econômicas, a seleção nacional iraquiana sofreu com sucessivas condições de ameaça, que frustraram as ambições futebolísticas de todo o país. Às vésperas do campeonato, a equipe foi forçada a treinar na vizinha Jordânia para fugir da destruição deixada pela violência sectária e pela ocupação militar estrangeira em suas terras. Pouco antes da partida inaugural, o fisioterapeuta do time foi morto por um carro-bomba em Bagdá, a caminho do aeroporto.

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A seleção iraquiana ergueu a taça em Jacarta, na Indonésia, pelo modesto placar de um a zero, contra a Arábia Saudita. A vitória, contudo, foi ofuscada por notícias de casa, quando uma série de atentados a bomba mataram ao menos 50 torcedores que celebravam a vitória de seu time na semifinal contra a Coreia do Sul.

As notícias subsequentes também se sobrepuseram à notável conquista da equipe, tomada por adversidades. A amálgama entre tragédia e catarse produziu duas narrativas complementares: sobre a união de um país “dividido pelo sectarismo” e sobre o “poder de cura” do esporte.

‘Erradicar preconceitos’

Três anos depois, em 2010, a FIFA ratificou a escolha do Catar como sede da Copa do Mundo de 2022. O anúncio contrapôs incredulidade e júbilo. O Catar se tornou a menor nação do mundo a receber o mais popular campeonato esportivo do planeta, assim como o primeiro estado árabe e do Oriente Médio a fazê-lo.

Sustentado pelas riquezas de gás natural do país, os líderes catarianos buscaram posicionar sua pátria como um local tecnicamente avançado capaz de sediar um torneio com objetivo de “criar novos conceitos” e “expandir fronteiras”. Ao mesmo tempo, prometeram um evento inclusivo – “uma Copa do Mundo para todos”, como alegou o chefe da candidatura catariana e membro da família real, Mohammed bin Hamad al Thani.

Moza bint Nasser – esposa do emir e governante do país na ocasião – acrescentou: “Esta é uma oportunidade para erradicar preconceitos não somente sobre o Catar, mas sobre todo o mundo árabe e islâmico”.

O anúncio da FIFA gerou protestos consideráveis em todo o planeta. Críticos questionaram toda e cada faceta da escolha, desde a falta de tradição desportiva do Catar até preocupações sobre questões climáticas durante os meses escaldantes de verão no país árido – quando as partidas costumam ser disputadas. Outros expressaram ceticismo sobre a capacidade do estado árabe de mobilizar tamanho feito logístico ao construir novos estádios, centros de treinamento, hotéis e sistemas de transporte público, entre outras demandas de infraestrutura, muito embora tivesse doze anos entre a decisão e o evento para tanto.

A Copa do Mundo no Catar e seus problemas [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Debates culturais avançaram sobre a noção de que um regime islâmico que restringe a venda de álcool não poderia receber um evento global no qual o consumo de bebidas é elemento central à experiência coletiva de torcida e celebração. Alguns observadores questionaram a integridade do processo, o qual consagrou uma “nação improvável” como sede da Copa do Mundo. Neste entremeio, emergiram alegações de compra de votos e corrupção sistêmica na FIFA.

Ademais, o Catar enfrentou intenso escrutínio sobre as condições de trabalho de sua tradicional mão-de-obra imigrante, que representa a medula da capacidade nacional de construir aparatos essenciais à realização do torneio. Diante das persistentes acusações de exercer uma modalidade moderna de escravidão, o governo catariano sofreu pressão para reformar todo seu sistema de trabalho e adequá-lo aos padrões internacionais de direitos humanos.

Os ultras do Egito

Poucos meses depois do Catar ganhar as manchetes por sua candidatura bem-sucedida para a Copa do Mundo, uma onda de levantes populares varreu o Oriente Médio e Norte da África. Ao passo que autocracia depois de autocracia enfrentava a possiblidade de queda em favor de uma nova ordem de representação popular, analistas passaram a examinar os múltiplos movimentos sociais que se mobilizaram na oposição a ditaduras há muito entrincheiradas.

No Egito, que vivenciou 18 dias de protestos de massa contra três décadas de governo de Hosni Mubarak, o papel dos ultras – torcidas organizadas – foi notável em defender manifestantes da violência policial. Em seu passado, torcedores devotos de grupos como os Ultras de Al-Ahlawy – do tradicional Al-Ahly Sporting Club – enfrentaram numerosas vezes a repressão do estado.

Como relembrou um membro dos Ultras de Al-Ahlawy: “Não se tratava de apoiar um time, mas sim lutar contra um sistema e contra todo o país. Estávamos em combate com a polícia e com o governo, na luta por nossos direitos”.

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A experiência das torcidas se mostrou valorosa quando Mubarak mandou policiais e gangues à paisana para dispersar os manifestantes da praça Tahrir, no centro do Cairo, e outros lugares do país. Os ultras efetivamente repeliram a ofensiva do governo, protegeram civis e conservaram a pressão popular que, em último caso, derrubou a ditadura de Mubarak.

Durante o período transicional que se seguiu, os ultras continuaram como presença marcante nos protestos de massa contra a hegemonia militar no processo político. Neste contexto, após uma partida de futebol no estádio Port Said, em fevereiro de 2012, ao menos 74 torcedores do Al-Ahly foram mortos por milicianos à medida que as forças policiais nada fizeram para protegê-los. O ataque foi premeditado – retribuição ao ativismo dos ultras contra o regime.

A chacina foi de longe o maior exemplo de violência na história do futebol egípcio. Nas palavras de um analista, a tragédia de Port Said “transformou uma torcida organizada de revolucionários a uma entidade política”. Esforços dos ultras para obter justiça às vítimas nos tribunais egípcios foram negados. Ao contrário, o governo baniu todos as torcidas das arenas de futebol – medida parcialmente suspensa somente em 2018.

Quanto aos ultras, o autoritarismo restaurado pelo presidente Abdel Fattah el-Sisi criminalizou todas as torcidas organizadas como parte de sua repressão de larga escala a qualquer corrente política independente intrínseca à sociedade do Egito.

A universalidade do esporte

Na sombra destes e outros acontecimentos, não é surpresa alguma que, no decorrer da década passada, o futebol no Oriente Médio emergiu como tópico de apaixonada manifestação política e cultural, além de assunto para diversas pesquisas acadêmicas.

O historiador Rashid Khalidi identificou os problemas de retratar o “Oriente Médio” como uma unidade à parte para análise, ao acenar à falta de precisão nas fronteiras físicas que abarcam os países e povos radicados na região, além das origens coloniais do termo e seus sucessivos usos políticos a serviço de interesses neoimperialistas.

Khalidi também observou a falta de estudos que levem em consideração os processos políticos, sociais e econômicos que transcendem a regionalidade e clamou a pesquisadores que busquem conexões entre fenômenos com raízes locais e suas manifestações para além da geografia.

Há pouquíssimos fenômenos da era moderna que abarcam os apelos de Khalidi como o futebol, um esporte criado na Europa, mas que fisgou a imaginação de povos em todos os continentes e firmou, não obstante, profundas raízes políticas, culturais e sociais no Oriente Médio.

Os estudos citados refletem a compreensão da região como uma unidade analítica porosa, com processos que podem ser traçados para além de suas terras; portanto, observados pelo prisma da universalidade e permeabilidade que o esporte pode oferecer.

O egpício Mohamed Salah, do Liverpool, comemora seu gol, o primeiro por pênalti do time durante a partida da Premier League entre Liverpool e Aston Villa em Anfield, em 11 de dezembro de 2021, em Liverpool, Inglaterra [Clive Brunskill/Getty Images]

Este maravilhoso jogo tem raízes regionais que datam da era colonial europeia, assim como dos processos de construção dos estados e sua subsequente modernização. A introdução do futebol como atividade de lazer e esporte organizado é parte integral de esforços oficiais abrangentes, cujo intuito era transformar súditos coloniais em “indivíduos devidamente obedientes”; dentre os meios adotados estava o condicionamento físico. As elites locais internalizaram os discursos disciplinares referentes aos esportes organizados como mecanismo de avanços civilizacionais.

Grupos nacionalistas acreditavam que a presença de uma delegação do Egito nas Olimpíadas de 1920 e 1924 representava a adesão de seu país à comunidade internacional. Na Palestina sob o Mandato Britânico, partidas de futebol eram usadas por agentes coloniais para “pacificar a fúria da população árabe que se opunha às políticas sionistas do Reino Unido”. Tanto colonos quanto palestinos nativos recorriam aos jogos para asseverar suas reivindicações nacionais.

A criação de um torneio anual de futebol em meados da década de 1940 auxiliou a monarquia hachemita a consolidar a incipiente identidade nacional jordaniana. Enquanto isso, no Sudão, a suposta liderança universitária nas organizações de futebol representou um “primeiro exercício de política de massa e governança popular”

Futebol como ‘distração’

Como pesquisadores observaram, o papel central do futebol na vida pública no Oriente Médio e Norte da África avançou ao período das revoluções anticoloniais. Como parte de sua luta contra a metrópole francesa, a Frente de Libertação Nacional (FLN) reuniu uma equipe de futebol para advogar pela independência argelina ao competir internacionalmente.

Ao liderar a derrubada da monarquia egípcia pelas Forças Armadas, Gamal Abdel Nasser foi ao extremo de recrutar a Associação de Futebol do Egito para mobilizar apoio de massa à república recém-estabelecida, com intuito de empoderar o exército e legitimar sua hegemonia no governo. Mais tarde, o mesmo Nasser considerou o esporte como empecilho perante demandas políticas mais urgentes. Após a derrota egípcia para Israel, em junho de 1967, Nasser suspendeu os jogos da Liga Egípcia, ao descrevê-los como “distração” contraposta à luta por libertação nacional.

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De maneira análoga, às vésperas da Revolução Islâmica do Irã, em 1979, opositores do governo monárquico aludiram à “obsessão” do país com o futebol como tentativa deliberada do regime do Xá Mohammed Reza Pahlavi para subjugar a população ao silêncio e à obediência, a despeito da corrupção e repressão sistêmica perpetrada pelo estado.

No fim da década de 1990, em meio a discursos incipientes sobre o impacto da globalização nas sociedades locais, o futebol passou a ser invocado como ferramenta para entender as relações internacionais, o advento do neoliberalismo e a homogeneização da cultura popular. “Futebol e cultura de paz” se tornou um refrão frequente, à medida que as Nações Unidas estabeleceram diversos programas para promover o esporte como meio para o desenvolvimento econômico e a resolução de conflitos.

Futebol como ‘revolução’

Mais do que um jogo, a partida na fase de grupos entre Estados Unidos e Irã na Copa do Mundo da França, em 1998, carregou o peso de quase duas décadas de hostilidade entre os estados. O drama em torno da contenda – vencida pela seleção iraniana pelo placar apertado de dois a um – transbordou a vozes da opinião pública e declarações conciliatórias pelos chefes de estado de ambas as nações.

Encorajado pela abertura política representada pela globalização do esporte, um proeminente escritor chegou ao ponto de contemplar uma “revolução futebolística” no Oriente Médio, capaz de remover do poder as forças do islamismo político e do antiamericanismo.

Monumento celebra a Copa do Mundo FIFA em Doha, no Catar, em 8 de outubro de 2022 [Mohammed Dabbous/Agência Anadolu]

Ademais, a aquisição de uma série de times europeus por conglomerados multinacionais, junto da comoditização do futebol em escala mundial, transformou o Oriente Médio em um dos mais promissores mercados consumidores do esporte no século XXI. Alguns analistas advertem que a natureza cada vez mais mercantil e individualista dos avanços neoliberais reflete uma ameaça a “valores coletivistas” historicamente imbuídos nas torcidas e campeonatos de futebol.

Como alternativa, acadêmicos apelam à ideia de “glocalização” como ferramenta adotada para interpretar como a globalização caminha para tendências aparentemente opostas, ao construir concomitantemente percepções de convergência e uniformidade, por um lado, e diferenciação e divergência, por outro. Tamanha interdependência pode ser observada em sua totalidade no binômio entre “homogeneização” e “heterogeneização”, que registra tendências culturais em ambos os sentidos.

Para ilustrar, de maneira elementar, ao mesmo tempo que a difusão global do futebol aponta a uma suposta convergência global sobre a popularidade de certos esportes, muitas comunidades demonstram divergência em como organizar, interpretar e mesmo praticar o jogo.

Em contraste a vozes mais esperançosas, que retratam o esporte como força transformativa na sociedade, nossa abordagem busca destacar a centralidade do futebol como ente integrante de um fenômeno social amplo. Em outras palavras: “Na dimensão da política e da economia, é fácil ver como o futebol reflete a globalização mais do que contribui para ela”.

Bayan Sadagah (centro, à esquerda) comemora gol durante amistoso entre Arábia Saudita e Butão, no Estádio Príncipe Sultan bin Abdulaziz, em Abha, 24 de setembro de 2022 [AFP via Getty Images]

A começar com a compra do time britânico Manchester City por um grupo de investimento dos Emirados Árabes Unidos, países do Golfo passaram a ostentar seu poderio financeiro no âmbito do futebol global, ao reviver a era da concorrência entre marcas abastadas do esporte europeu.

Rivalidades acaloradas entre seleções nacionais de futebol e seus torcedores refletem conflitos políticos mais abrangentes entre estados e mesmo tentativas cínicas de autocratas para desviar atenção de seus próprios fracassos – como ocorreu em 2009, quando as seleções do Egito e da Argélia disputaram uma das últimas vagas na Copa do Mundo do ano seguinte, na África do Sul. As eliminatórias chegaram a deflagrar uma nova retórica ultranacionalista nas respectivas redes de imprensa estatal e entre funcionários do governo de ambos os países; episódios de violência então se sucederam.

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De fato, a experiência dos entusiastas do esporte no Oriente Médio costuma refletir realidades políticas e socioeconômicas dos estados regionais, desde sua mobilização popular contra forças autoritárias a esforços para contrapor a corrupção sistêmica e a discriminação de gênero.

O sentimento supracitado também é evidente na campanha que levou o Catar a receber a Copa do Mundo de 2022, sob um esforço de US$200 bilhões, menos alusivo a ambições esportivas do que à busca por influência econômica e geopolítica em nome de interesses nacionais.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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