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Copa do Mundo 2022: Como o futebol mudou o jogo para o Oriente Médio

O futebol molda identidades nacionais e relações geopolíticas no Oriente Médio e Norte da África; o investimento do Golfo em clubes europeus é crucial para projetar sua influência
Sorteio final da Copa do Mundo da FIFA Qatar 2022 no Centro de Exposições de Doha em 1º de abril de 2022 em Doha, Qatar [Tnani Badreddine/vi/DeFodi Images via Getty Images]

A grande manchete no mundo do futebol do verão deste ano se refere à decisão do fenômeno francês Kylian Mbappé de assinar uma extensão de três anos com o Paris Saint-Germain (PSG), às custas de seu sonho de jogar no gigante espanhol Real Madrid.

O clube francês – pertencente ao Fundo de Investimentos Esportivos do Catar (QSI), financiado pelo estado – ofereceu a Mbappé o maior valor pago a qualquer jogador de futebol do planeta, além de um bônus estimado em US$125 milhões. Não há registro de um time que tenha arcado com tamanho gasto para manter um jogador de sua própria base em seu elenco.

Em outra notícia com repercussão muito menor, no final de maio, a seleção nacional de futebol da Argentina cancelou um amistoso previsto contra Israel, ao acatar os apelos do time palestino Al-Khader, cujo atleta Mohammad Ali Ghoneim, de apenas 19 anos, foi morto a tiros por forças da ocupação israelense no mês anterior.

Nas últimas semanas, a seleção nacional do Egito se encontrou no âmago de uma crise regional de larga escala. Após sua derrota chocante por dois a zero contra a Etiópia, nas eliminatórias da Copa das Nações Africanas do próximo ano, as emoções vieram à tona à medida que torcedores e políticos comparavam a performance dos jogadores em campo com a disputa corrente entre ambos os países sobre a Grande Represa do Renascimento – projeto bilionário da Etiópia, que o Egito considera como ameaça existencial a seu acesso às águas do Nilo.

Miguel Salgado, de 17 anos, filho do ex-zagueiro do Real Madrid e da seleção espanhola Michel Salgado, recentemente foi convocado para representar o elenco sub-20 de sua equipe nacional. Não obstante, o país que o convocou não foi o campeão europeu de 2010, mas sim os Emirados Árabes Unidos, onde Salgado sênior trabalha há dez anos, quando pendurou as chuteiras.

Juntas, essas histórias mostram a onipresença do esporte no Oriente Médio contemporâneo e, em contrapartida, o impacto da região no mercado da bola. No decorrer dos anos, o futebol se tornou particularmente popular no Oriente Médio. Neste entremeio, capturou a imaginação de milhões, mobilizou sonhos e criou uma verdadeira legião de entusiastas.

Fenômeno amplo em ação

Mais do que um jogo, no entanto, o futebol emergiu como um mercado crucial tanto em níveis econômicos quanto geopolíticos, além de um instrumento estratégico nas mãos daqueles que podem desafiar a ordem vigente.

Em 2010, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) chocou o planeta ao conceder ao Catar os direitos de sediar a Copa do Mundo de 2022. Jornalistas, acadêmicos, ativistas, líderes políticos e amantes do esporte buscaram dar sentido à decisão, ao ponderar sobre as implicações de ter um pequeno estado árabe como sede do mais popular evento esportivo internacional.

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Embora questões sobre direitos trabalhistas, influência política e capitalismo no futebol tenham tomado maior parte da conversa sobre a Copa do Mundo no Catar, alguns analistas observaram como o futebol permite enxergar um fenômeno identitário mais amplo que ocorre atualmente na região.

A Copa do Mundo no Catar e seus problemas [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

É neste espírito que compusemos nosso trabalho intitulado Football in the Middle East: State, Society, and the Beautiful Game, um novo livro no qual doze pesquisadores apresentam pontos de vista distintos sobre como o esporte se converteu em uma arena de competição e disputa às mais diversas questões.

Uma das primeiras coisas que nos surgiu é como o legado do futebol no Oriente Médio precede em muitos anos a candidatura do Catar para sediar a Copa do Mundo ou mesmo as vantagens que os países do Golfo desfrutam no mercado de transferência europeu devido ao petróleo.

De fato, agentes coloniais europeus introduziram o futebol na região há mais de cem anos, com intuito de cultivar em seus súditos nativos a “devida obediência”. Em troca, lutas nacionalistas protagonizadas pelas elites locais incorporaram a crença em um esporte disciplinar como marco cultural e civilizacional, por exemplo, ao criar a Liga de Futebol do Egito.

Como demonstram as primeiras interações de clubes históricos – como Al-Ahly e Zamalek –, a criação de uma liga nacional abriu terreno para questões de identidade nacional, classe social, mobilidade econômica e distribuição do poder político na região. Triunfos e derrotas em campo refletiram, portanto, a árdua competição entre instituições esportivas incipientes, em busca de recursos, atletas promissores e carinho dos torcedores em todo o país.

Relações tensas

Sem surpresa alguma, após a chegada ao poder de Gamal Abdel Nasser, no Egito pós-colonial, o futebol passou a servir como arena de disputas políticas em escala nacional – na ocasião, entre a população comum e um regime autoritário emergente, que buscou controlar a vida e mesmo as paixões de milhões de torcedores. À medida que ganhava popularidade, Nasser foi nomeado presidente honorário do Al-Ahly e procedeu ao indicar um general de confiança como chefe da Associação de Futebol do Egito.

Pouco depois, Nasser encabeçou a criação da Confederação Africana de Futebol (CAF) em 1957 e inaugurou assim a Copa das Nações Africanas, em um momento no qual seu país enfrentava o isolamento internacional devido à disputa com suas antigas metrópoles europeias – isto é, Grã-Bretanha e França. O Egito conquistou o troféu do primeiro torneio e, desde então, se tornou o maior campeão, com sete títulos no total.

Vale destacar que é comum que estados-nação projetem suas agendas políticas a suas seleções nacionais de futebol. Em uma partida da fase de grupos da Copa do Mundo da França, em 1998, entre Irã e Estados Unidos, ambos os times aproveitaram a oportunidade para dar vazão a anos de hostilidade geopolítica, que remetiam à Revolução Islâmica de 1979.

Os preparativos para a partida – vencida pela equipe iraniana de modo dramático, pelo placar apertado de dois a um – foram marcados por intensa cobertura da imprensa e carregada paixão política de torcedores de ambos os lados. Os chefes de estado de Washington e Teerã tentaram se apropriar do momento para ofertar gestos conciliatórios em meio a relações tensas.

Por acaso, Estados Unidos e Irã voltaram a se enfrentar em outra partida da fase de grupos no Catar, no estádio al-Thumama, em novembro. Diante da escalada nas rivalidades regionais e de tentativas infrutíferas de restaurar o acordo nuclear iraniano, o jogo de futebol deve obter um significado muito mais amplo do que a mera disputa por saldo de gols.

Mobilização popular

Para além dos esforços de expropriação do sentimento nacional por autocratas e estados rivais, a paixão pelo futebol invocou ou coincidiu com uma nova onda de mobilização popular.

Durante os levantes da Primavera Árabe, em 2011, torcidas organizadas – como o Ultras de Al-Ahlawy, no Cairo – exerceram um papel fundamental nos protestos de massa, que culminaram na queda do longevo ditador Hosni Mubarak, ao oferecer a seus concidadãos um conhecimento oportuno em como enfrentar as forças de segurança e desafiar o poder do estado.

Mais recentemente, no início de 2019, os protestos do movimento popular de Hirak, na Argélia – que impediram o decadente déspota Abdelaziz Bouteflika de concorrer a um quinto mandato presidencial consecutivo – integraram às ruas gritos de torcida, canções tradicionais e imagens habitualmente reservadas aos dias de jogos.

A campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) – protagonizada pela sociedade civil palestina – também incorporou o apelo do futebol ao recorrer a torcedores, clubes, seleções e seus patrocinadores para que respeitem o boicote a Israel, em resposta à ocupação ilegal das terras palestinas e reiterados abusos de direitos humanos contra a população nativa.

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O BDS reuniu ainda lições do boicote esportivo contra o apartheid na África do Sul e conquistou sucesso em dar destaque ao sofrimento dos palestinos por meio de campanhas que resultaram no cancelamento da partida entre Israel e Argentina, entre outras. Além disso, convocou clubes e torcedores a boicotar a Puma até que revogasse contratos de patrocínio a times radicados nos assentamentos ilegais israelenses.

Como indica Football in the Middle East, ao observar o papel do futebol na sociedade podemos ter acesso a um prisma bastante eficaz para analisar questões profundas que afetam populações inteiras – muito além de seus atletas e torcedores.

Refugiados que fugiram ao vizinho Líbano, após a expulsão à força de centenas de milhares de palestinos nativos, em 1948, na ocasião da Nakba – ou “catástrofe”, como é conhecida a criação do Estado de Israel –, vivem até hoje como residentes apátridas, privados de direitos básicos e mesmo acesso a dezenas de profissões. A entidade esportiva libanesa institucionalizou tamanha discriminação ao impor cotas de jogadores palestinos permitidos a cada clube e mesmo proibi-los de jogar como goleiros.

Discriminação de gênero

O esporte pode fornecer meios para expor e contestar também a discriminação de gênero. Na Turquia, por exemplo, o futebol feminino é vítima de tratamento desigual, disparidade salarial, serviços médicos inadequados, acesso restrito a instalações e maior instabilidade empregatícia, em comparação com jogadores homens.

No Irã, a proibição da entrada de torcedoras nos estádios foi rechaçada não apenas pela FIFA e por organizações internacionais de direitos humanos, mas mesmo pelo público local, em meio a uma série de confrontos bastante acalorados com as autoridades.

Os preparativos para a Copa do Mundo do Catar ajudaram a trazer à luz uma série de questões de importância particular à região do Golfo. Os jogadores da seleção catariana, que participarão do evento entre novembro e dezembro, incluem cidadãos nativos, residentes de longa data e imigrantes naturalizados. Entrevistas, postagens nas redes sociais e mesmo comemorações de gol devem, portanto, desafiar noções preconcebidas de identidade nacional e cidadania sobre os países do Golfo.

Uma visão geral da estátua da ‘Copa do Mundo’ em Doha, Catar, em 08 de outubro de 2022 [Mohammed Dabbous/Agência Anadolu]

Sobre a questão dos direitos dos trabalhadores imigrantes, as obras para a Copa do Mundo de fato expuseram a um público global abusos inerentes ao sistema de kafala adotado por regimes locais para administrar os laços empregatícios. Ao passo que autoridades públicas, empreiteiras multinacionais e agências de recrutamento passaram a intervir em projetos de larga escala no Catar – desde estádios e centros de treinamento a hotéis e transporte metropolitano –, uma campanha internacional passou a exigir do país que revisasse suas práticas trabalhistas.

O governo catariano anunciou uma série de reformas em 2017. No ano seguinte, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) abriu um escritório na cidade de Doha, onde reportou supostos avanços nas condições vivenciadas por operários estrangeiros.

Ascensão do Golfo

A Copa do Mundo de 2022 busca retratar o papel central de estados riquíssimos nas mudanças do centro de gravidade político e desportivo global. De fato, as últimas duas décadas passaram por transformações substanciais no esporte, com maior globalização e comoditização dos jogos.

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Em 2008, um grupo de investimento da monarquia emiradense comprou o popular clube inglês Manchester City – seguido pela aquisição catariana do PSG. Os anos seguintes deflagraram uma nova era na qual estados do Golfo assumiram protagonismo nas grandes ligas da Europa. Além dos resultados em campo, tais governos utilizaram marcas estabelecidas para obter poderes de diplomacia e influência geopolítica – isto é, soft power.

Em 2015, por exemplo, o jornal The Guardian reportou que funcionários do escritório central do Manchester City juntaram-se ao lobby para que o governo britânico a investigasse a Irmandade Muçulmana, como extensão da repressão emiradense ao movimento islâmico – até então, restrita a escala regional. A aquisição recente do Newcastle United pelo Fundo de Investimento Saudita – sob controle direto do controverso príncipe herdeiro Mohammed bin Salman – levou a acusações de que a monarquia se engajou de forma intensiva na prática de sportswashing, cujo intuito é encobrir abusos hediondos de direitos humanos tanto em casa quanto no exterior.

Em todo o planeta, a guerra por direitos de transmissão dos principais campeonatos de futebol ganhou os holofotes durante o bloqueio ao Catar imposto por quatro países vizinhos a partir de 2017. Um sinal pirata de satélite, radicado na Arábia Saudita, sob alcunha de “beoutQ”, operou por dois anos, para retransmitir a programação da emissora beIN Sports administrada por Doha, que detém os direitos dos torneios de futebol mais populares do mundo.

No futuro próximo, a prática do futebol e suas atividades adjacentes no Oriente Médio deve se tornar cada vez mais interconectada com acontecimentos políticos, culturais e socioeconômicos na região. À medida que o maravilhoso jogo expande cada vez mais suas fronteiras comunitárias e se entrelaça com interesses de estado e corporativos, decerto novas questões surgirão sobre elementos críticos e contrapostos, como: consumismo e sustentabilidade; objetivos nacionais edireitos trabalhistas; estabilidade e liberdades políticas.

Altos e baixos reverberam para além do campo. O futebol é muito mais do que um jogo.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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