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Entre os EUA e Israel, de quem é a palavra final?

Em ordem, o então vice-presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu,em declarações conjuntas à imprensa em Jerusalém, em 9 de março de 2016. [Debiie Hill/AFP via Getty Images]
Em ordem, o então vice-presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu,em declarações conjuntas à imprensa em Jerusalém, em 9 de março de 2016. [Debiie Hill/AFP via Getty Images]

A ajuda militar dos Estados Unidos a Israel, de US$ 38 bilhões em dez anos, continua intocável, como parte da ordem natural das coisas, ainda que seu uso devesse ser minimamente questionado em se tratando de uso contra alvos civis em terras palestinas. Esse aporte não é tudo, como demonstra o acordo aprovado em 5 de maio deste ano, quando as tensões cresciam no bairro de Sheikh Jarrah e Jerusalém ocupada, de venda de armas no valor de US$ 735 milhões a Israel, incluindo Munições de Ataque Direto Conjunto (JDAM), que são aparatos para converter bombas não-guiadas em armas “inteligentes”, além de bombas para penetrar subterrâneos. A venda passou naturalmente despercebida, até ser revelada treze dias depois pelo Washington Post, quando as mortes de palestinos já passavam de duas centenas, e vários escritórios de mídia tinham ido abaixo, soterrados por bombas israelenses, igualmente financiadas pelos Estados Unidos, levando um comitê do Congresso a pedir revisão do contrato, mesmo a posteriori.

Para mensurar os padrões duplos nos Estados Unidos quando se trata de acalmar as coisas no Oriente Mèdio, basta observar que a ajuda que Joe Biden pretende aprovar para reconstrução de Gaza, destruída pelas bombas israelenses, é de US$ 75 milhões, ou apenas 10% do valor do mais recente contrato de armas para Israel.

A jornalista independente Sonali Kolhatkar, ao questionar o financiamento dos massacres de palestinos pelos Estados Unidos, faz uma comparação interessante: Em 1995, Israel passou a garantir seguro de saúde a todos os seus cidadãos, enquanto os Estados Unidos deixam os seus por conta própria. Ela cita a frase de um analista, C.J. Werleman, ao afirmar que “Israel pode dar aos seus cidadãos cuidados de saúde universais por causa do que os contribuintes dos EUA pagam aos seus militares”.  Essa ajuda, lembra a articulista, também poderia livrar os estudantes americanos das dívidas asfixiantes cobradas do governo por sua educação.

Mas há algo mais forte do que a vigilância dos cidadãos americanos sobre os gastos de seu governo às custas do que falta dentro de casa: o controle que os sionistas no país fazem sobre seus políticos.

É elucidativo ler passagens do livro de Barak Obama, A Terra Prometida, sobre seus anos na presidência dos Estados Unidos, para entender que, não importa o que tenha planejado para o conflito Israel-Palestina, a história termina nas pressões do  Comitê de Assuntos Públicos de Israel (Aipac), importante financiador de integrantes dos dois partidos que regem a política americana.  Obama descreve o Aipac como “uma poderosa organização de lobby bipartidária dedicada a garantir o apoio inabalável dos EUA a Israel”  Seu alcance permeia toda a política americana. Obama constatou: “O poder do AIPAC poderia ser exercido em praticamente todos os distritos eleitorais do país. E quase todos os políticos de Washington – incluindo eu – contavam com membros do Aipac entre seus principais partidários e doadores”.

Obama viu a radicalização para a direita em Israel ser acompanhada pela Aipac nos EUA, e uma nova concepção de ajuda imposta pelo lobby sionista: “não deveria haver nenhuma distância entre os governos dos EUA e de Israel, mesmo quando Israel adotasse medidas contrárias à política americana”, relata o ex-presidente.

A Terra Prometida, livro de Barak Obama

LEIA: Barack Obama e as esperanças destruídas de um novo Oriente Médio

Quando as primeiras bombas caíram sobre Gaza, em uma resposta descomunal aos foguetes do Hamas, derrubando casas com as famílias dentro, a atenção mundial se voltou para Joe Biden.

Desde que o atual presidente assumiu o comando dos Estados Unidos, uma série de políticas armadas por seu antecessor, Donald Trump, entraram na linha de um prometido desmonte. Entre elas, as políticas para imigrantes, a retirada do Acordo de Paris e do Acordo Nuclear com o Irã.

O documento de Orientação Estratégica de Segurança Nacional provisória de seu governo, publicado em março, também afirmava que, sob a liderança de Biden, os EUA “defenderão e protegerão os direitos humanos e enfrentarão a discriminação, a desigualdade e a marginalização em todas as suas formas”.

Era de se esperar uma mudança em relação ao alinhamento automático com os avanços de Israel sobre as terras palestinas ocupadas.

A oportunidade de fazê-lo chegou, e ele foi cobrado, interna e internacionalmente, a dar o ultimato para o cessar-fogo aos ataques a Gaza. Não haveria contradição com outro trecho de seu documento, um evidente “jabuti” introduzido no texto por pressões sionistas, o “compromisso inflexível dos EUA com a segurança de Israel”. Claramente, não era a segurança de Israel que estava em jogo quando o Estado de ocupação decidiu despejar moradores do bairro de Sheikh Jarrah ou quando suas forças policiais permitiram que colonos extremistas tentassem se apoderar da islâmica Mesquita de Al-Aqsa, fatos que desencadearam as reações e os foguetes de Gaza.

No domingo de 9 de maio, o conselheiro de Segurança Nacional do EUA, Jake Sullivan, ligou para seu homólogo israelense, Meir Ben Shabbat, para transmitir suas preocupações, mas ouviu o seguinte recado: o governo Biden e o resto da comunidade internacional deveriam ficar fora da crise em Jerusalém e evitar pressionar Israel.

LEIA: Israel diz aos EUA para ficarem fora da crise de Jerusalém

Um “chega pra lá” parecido ocorreu uma semana depois, já com mais de duas centenas de mortes sob o bombardeio,  quando o secretário de Estado Antony Blinken, pediu explicações para a derrubada de um prédio em Gaza que abrigava os escritórios de agências de mídia, como a americana Associated Press. O porta-voz israelense deu de ombros e alegou apenas: “Estamos no meio de uma luta. Isso está em andamento e tenho certeza que no devido tempo essa informação será apresentada.” Os EUA ainda devem estar aguardando qualquer coisa digna de ser tornada pública.

O que se viu desde a primeira ligação dos EUA a Israel foi, literalmente, Biden de joelhos,  incapaz de cessar o morticínio, recorrendo a uma narrativa surrada e já não mais convincente do direito de defesa de Israel contra os palestinos. O presidente dos EUA  declarou não ter visto exageros no bombardeio à Gaza e apontou que o problema eram os foguetes do Hamas  “disparados indiscriminadamente contra centros populacionais”.

Por três reuniões seguidas e emergenciais do Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos, com seu poder de veto, impediram uma declaração do órgão, que significaria uma advertência – e um sinal de providências cabíveis – da comunidade internacional. Em vez disso, Biden mandou um representante para dialogar e fez ligações, inclusive a Mahmoud Abbas, cobrando o cessar dos foguetes do Hamas e prometendo ajuda para a AP reconstruir Gaza – desde que sem envolver o Hamas.

A esta altura, a resistência palestina contabilizava 212 mortes, incluindo 61 crianças e 36 mulheres, e 1.400 pessoas feridas. Fortemente pressionado, e com a movimentação do Egito em busca de um cessar-fogo, Biden ligou para Netanyahu na terça (18), e depois na quarta-feira (19), propondo o fim negociado dos ataques. De acordo com Barak Rafid, correspondente da CNN, Israel respondeu que levaria mais dois dias para completar a operação em Gaza. De acordo com o Washington Post, o acordo de cessar-fogo só veio depois de mais de 80 ligações entre autoridades americanas, israelenses e árabes, incluindo seis conversas entre Biden e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu.

LEIA: Primeiro-ministro de Israel pede aos EUA mais dois dias para encerrar a ofensiva em Gaza

Durante boa  parte do tempo, Biden teria ficado em silêncio para evitar ser desautorizado por Netanyahu, em qualquer proposta que fizesse. Após aceitar os dois dias para o cessar fogo, uma nota oficial dos EUA voltou a reiterar  seu “firme apoio ao direito de Israel de se defender contra ataques indiscriminados de foguetes”

Na sexta-feira (20) de madrugada, um cessar-fogo entrou em vigor, após 11 dias de bombardeios que resultaram, em Gaza, na morte de 243 pessoas, incluindo 69 crianças, 39 mulheres e 17 idosos, e mais de 1900 feridos.

As capas do israelense Haaretz e do americano New York Times estamparam as imagens das crianças mortas pelas bombas de Israel, também reproduzidas pelo Resumen Latinoamericano. Há limites da desumanidade estatal que obrigam ao reconhecimento: “Eram apenas crianças” – diz a publicação.

Com todas as perdas, a resistência palestina declarou-se vitoriosa contra inimigos  tecnologicamente  invencíveis: Israel e o apoio dos EUA. Recolocou a questão palestina de volta à atenção internacional, cobrando uma solução justa.

Sem poder recuar de seu papel de financiador das ações israelenses,  os EUA trabalham agora, incessantemente, para restaurar uma narrativa pró-Israel que justifique o bombardeio a Gaza, contra evidências que só fazem aumentar a lista de crimes de guerra em julgamento do Tribunal Penal Internacional. Tentam também transmitir alguma humanidade ao discutir a reconstrução de Gaza.

Está difícil para o governo dos EUA recuperar a imagem de autoridade capaz de, pelo menos, evitar uma carnificina pública com uso do dinheiro de seus contribuintes, mas Israel também parece decidido a medir forças e expor  ascendência sobre qualquer situação que o governo dos EUA busque liderar.

Contra os US$ 10 milhões prometidos para a reconstrução de Gaza,  Israel pretende solicitar US$ 1 bilhão pelos gastos no bombardeio, conforme informação do site de notícias Axios.

Um grande desafio de Joe Biden no Oriente Médio é retomar o acordo anti-nuclear com o Irã, após a saída abrupta dos EUA durante o governo Trump.  Mesmo em fim de mandato e sob risco de ser condenado por corrupção, Netanyahu declarou que Israel está disposto a sacrificar os laços de amizade com os EUA para frustrar o programa nuclear iraniano.

Cerca de 500 integrantes do Partido Democrata se manifestaram por carta exigindo a resṕmsabilização de Israel. Tentam correr contra o tempo para restabelecer alguma distância, que vai desaparecendo rapidamente, entre o que Israel faz e o que os EUA fazem para apoiar.

LEIA: Mais de 500 membros do Partido Democrata pressionam Washington para responsabilizar Israel

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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