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Remédios mágicos sem vacina ameaçam tornar o Brasil um criadouro de mutações

Presidente Jair Bolsonaro [Foto Marcos Corrêa]
(Brasília - DF, 09/02/2021) Presidente da República, Jair Bolsonaro durante reunião com Ministros de Estado. Foto: Marcos Corrêa/PR

Quem reparou nas chamadas de imprensa brasileira nos últimos dias deve ter notado que surgiram assuntos mais destacados do que a pandemia.  Ações do presidente da República sobre o comando da Petrobras que mexeram com  o preço nas bombas de gasolina, MP para privatizar a Eletrobras, liberação da compra de armas, medidas e anúncios de fato capazes de desviar os olhos do maior escândalo em termos de gestão pública que o Brasil poderia enfrentar após um ano de avanço da covid-19: o sumiço das vacinas que mal acabavam de ser anunciadas para a ponta mais arriscada dos grupos de risco.

Na última semana, as capitais Salvador, Cuiabá, Campo Grande, Rio, Curitiba, Fortaleza, Florianópolis, Macapá, São Luís e Boa Vista interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a Covid-19 total ou parcialmente. O governo recomendou que as doses reservadas para segunda aplicação fossem utilizadas em outras pessoas. O caos da vacina se instalou no país, deixando na fila pessoas idosas a partir de 85 anos e as demais sem ideia de quando serão vacinadas.  Nem 3% da população de 210 milhões de habitantes receberam a primeira dose. E apenas 0,6% tiveram a segunda.

O estilo de mudar de assunto quando a situação se agrava para outro que pareça mais bombástico, adotado pelo atual presidente, pode retardar uma explosão da consciência pública para o fato de que por 34 dias seguidos, o Brasil tem mantido a média de mais de mil brasileiros e brasileiras mortas a cada 24 horas.  O pico ultrapassa aquele registrado em julho de 2020, o momento mais grave da pandemia.   “A gente vai sofrer por estarmos atrasados na curva de imunização, ainda numa situação sanitária gravíssima”, advertiu o diretor do Hospital Sírio-Libanês Paulo Chap Chap em uma live promovida pelo jornal Valor.  A situação, segundo ele, infelizmente, deve prolongar-se devido ao atraso na vacinação.

As  mortes por coronavírus no Brasil têm dono. Têm responsáveis. E o vírus é apenas um deles.  A pirotecnia com que o governo lida com ela  provavelmente está colaborando neste momento para matar quem nem pegaria o vírus se o comportamento do governo fosse outro.  A memória popular pode parecer curta, mas a história tem o registro do momento em que pessoas desvairadas quiseram invadir os hospitais para provar que a taxa de ocupação era só propaganda e os sintomas da covid-19 os de uma gripezinha.   “Tem hospitais de campanha perto de você, tem um hospital público, né? Arranja uma maneira de entrar e filmar.”, convidou Bolsonaro em uma live quando o Brasil ultrapassava 40 mil mortes por covid-19.

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Talvez o maior crime tenha sido o de desdenhar da vacinação e criar problemas diplomáticos internacionais com quem iria fornecer ao país os imunizantes, especialmente a China.

Não se sabe de outro líder que tenha jogado contra a imunização popular frente a  uma doença fatal e virulenta, nem durante a gripe espanhola, conforme declarou à BBC o historiador francês Laurent-Henri Vignaud, autor do livro Antivax – Resistência às vacinas do século 18 aos dias de hoje. Segundo ele, Bolsonaro talvez seja um caso único na história.

“Nós não nos reponsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um … Jacaré, um super homem, ou homem passar a falar fino” – declarou o presidente, alertando contra o risco representado pela vacina, ao mesmo tempo virando meme e espalhando medo.

Hoje o Brasil tem mais de 240 vítimas fatais da covid. É o segundo país na lista de mortes. Perde apenas para os Estados Unidos que na última semana ultrapassou meio milhão de vidas perdidas.

Ambos os governos, aqui o de Bolsonaro, e lá o do então presidente Donald Trump, preferiram propagar a ideia de que a hidroxicloroquina seria a cura para a covid-19.  Em ambos os países, a negação da pandemia e do uso da máscara ajudaram a abrir as portas à propagação do vírus. No caso brasileiro, muito dinheiro público foi gasto para comprar e fabricar o medicamento e ministros da Saúde foram trocados até que  um deles, Eduardo Pazuello,, aceitasse a imposição para que hidroxicloroquina fosse colocada, ao lado das drogas como ivermectina, nitazoxanida e azitromicina no protocolo de atendimento do SUS para os casos graves de covid-19.

Com certeza, a propaganda e a inclusão em política pública iludem a população desesperada.  “Sempre que uma pesquisa ou declaração em favor de um medicamento, sugerindo que pode ajudar a tratar ou prevenir a covid-19, as pessoas procuram e os estoques nas farmácias acabam” – diz o farmacêutico Mustafa Rashed Abouleinin,  confirmando as prateleiras constantemente esvaziadas para as três drogas que entraram no protocolo hospitalar para covid-19.

Agora, o governo chama a atenção do público para um novo protagonista: o aerossol EXO-CD24 experimentado em Israel em 30 pacientes com sintomas graves ou moderados de covid que conseguiram se curar. Não se trata sequer de pesquisa, que ainda  deverá ser iniciada, segundo anunciou em uma entrevista o presidente israelense Benjamin Netanyahu também em tom propagandístico.  Mas Bolsonaro já ofereceu a população do Brasil para testes de uma futura terceira-fase, além de ter anunciado, nesta terça-feira , “uma comitiva indo para Israel no sábado ou domingo.”. Sua ideia é obter autorização da Anvisa para uso do medicamento. Algo que não tem data ou previsão de como seria possível antes das comprovações.

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“Esse aerossol está sendo experimentado no tratamento de quem já está infectado, nos casos graves” – diz Mustafá.  Não se trata de vacina, embora às vezes seja chamado assim.  Mas pode causar uma boa confusão com outros esforços mundiais em favor de uma futura vacina, de fato imunizante, que seja empregada na forma de spray nasal mais fácil de aplicar e com rápida assimilação pelas vias aéreas. “Pesquisas estão sendo feitas na Índia, na Russia”, diz Mustafá E também no Brasil.

A razão para ter criado problemas com fornecedores de vacinas a ponto de atrasá-las, e correr atrás de uma promessa de tratamento antiinflamatório de Israel,  está em outro padrão de comportamento do atual governo, que além da vacina, desdenha da ciência.  Não fosse isso, estaria preferindo dar ênfase ao enorme esforço que vem sendo feito pela equipe de cientistas coordenada pelo professor e diretor do Laboratório de Imunologia do Incor, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Jorge Kalil.

Nas mãos dessa equipe está em curso o desenvolvimento da vacina 100% brasileira, que tem a vantagem de ser aplicada em spray nasal e deve passar por todos os testes clínicos ainda este ano.

Enquanto a ciência corre contra o tempo e pede apoio e financiamento, o coronavírus também anda rápido, criando cepas capazes de brigar com os atuais imunizantes.  O surgimento das variantes do vírus, de acordo com especialistas, acontece quando há muita contaminação e a vacina demora a proteger determinada população, porque o vírus precisa contaminar organismos para, dentro deles, se replicar com mutações que resistam ao sistema imunológico.

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O problema de querer tratar com medicamentos sem comprovação, por terem sido alardeados por aliados do atual presidente, é que esses doentes graves que poderão ser tratados no futuro não precisariam estar sendo contaminados agora.  Sem a vacinação a tempo de impedir grandes grupos infectados em uma mesma região, já se fala do Brasil como um possível criadouro de mutações virais.

Nosso primeiro caso de vírus mutante, que brotou da hiper contaminada Manaus, infelizmente já demonstra resistência às vacinas em uso, tornando-as menos eficazes. A variante brasileira também aprendeu a se replicar com muito mais velocidade do que o ritmo incerto e caótico da chegada das vacinas ao Brasil.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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