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O lamentável papel do Brasil na partilha da Palestina

Edifício das Nações Unidas em Manhattan, Nova Iorque, no primeiro dia oficial da 75ª Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020 [Spencer Platt/Getty Images]
Edifício das Nações Unidas em Manhattan, Nova Iorque, no primeiro dia oficial da 75ª Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020 [Spencer Platt/Getty Images]

Em 29 de novembro de1947 foi votada a partilha da Palestina pela ONU (Organização das Nações Unidas). Alguns meses depois é formado o Estado de Israel. Apesar de contar com apenas 30% da população local, as milícias sionistas tomam 78% do território palestino, expulsam cerca de 800 mil palestinos e destroem 531 vilas.

Essa votação atendeu a objetivos de longo prazo das potências colonialistas de criar um estado aliado e totalmente dependente do apoio dos países imperialistas. Foi realizada em meio a manobras regimentais levadas a cabo pelo representante do Brasil, o diplomata Oswaldo Aranha, e à pressão econômica e suborno efetuados pelos Estados Unidos e pela Agência Judaica. Competindo com os Estados Unidos, a União Soviética não só apoiou a partilha e a formação do Estado de Israel, como foi a principal provedora de armamentos que possibilitaram ao recém-formado exército de Israel a vitória militar contra os palestinos e os árabes.

O imperialismo e a dominação do mundo árabe

Ao final da I Guerra Mundial, a derrota do império otomano criou as condições para o Reino Unido e a França, principais potências europeias que venceram a guerra, imporem seu domínio sobre uma região estratégica.

O Oriente Médio sempre foi uma área de trânsito entre a Europa, a Ásia e a África, por onde circulam mercadorias e exércitos. A isso se uniu a existência abundante de petróleo de ótima qualidade e de fácil prospecção. Para impor seu domínio na região, os colonialistas definiram várias estratégias, entre as quais a formação de “estados” aliados e dependentes do apoio ocidental.

Os franceses tentaram formar um estado cristão no Líbano. No entanto o fato de que a população cristã libanesa se identificava como árabe levou ao fracasso a estratégia francesa. Já os ingleses utilizam o sionismo, um movimento europeu apoiado por alguns magnatas, como os Rothschilds, para promover a colonização da Palestina, visando a formação de um estado judeu em contraposição à população árabe, amplamente majoritária. A partir de então o Reino Unido será o principal apoiador da imigração de judeus europeus e da colonização da Palestina.

Às vésperas da II Grande Guerra, os ingleses mudam de política. Para fazer frente à Alemanha era necessário atrair o apoio dos árabes. Por isso, lançam o Livro Branco de 1939, que desencorajava a partilha da Palestina e limitava a imigração de judeus de forma a impedir que a população judia excedesse 1/3 da população total. Sem a partilha da Palestina e em minoria, seria impossível para o movimento sionista formar seu estado. Nos anos seguintes, os sionistas vão se enfrentar com os ingleses e vão encontrar um novo apoio entre as potências vencedoras da II Guerra: os Estados Unidos e a União Soviética.

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A partilha da Palestina

O Reino Unido saiu da II Guerra fragilizado e não tinha condições de manter suas tropas na Palestina, onde era alvo de milícias judias. Então, em fevereiro de 1947, os ingleses entregam para a ONU a definição sobre o futuro da Palestina.

“Desde a sua fundação, a ONU encontrava-se paralisada pela política da guerra-fria. No esquema básico para a Palestina, contudo, a Rússia e os Estados Unidos, as duas superpotências, estavam de acordo: a Palestina deveria ser dividida entre o movimento sionista e os palestinos” (Ilan Pappé em História da Palestina Moderna, capítulo 4).

Em abril de 1947 ocorre a primeira sessão da Assembleia Geral da ONU para discutir a questão palestina, presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, então forte aliado dos Estados Unidos. Os países árabes defenderam a declaração de independência da Palestina e não aceitavam a definição da Palestina como única solução para a dramática situação dos refugiados judeus que estavam na Europa.

O representante da Síria declarou: “A organização criada para ocupar-se dos refugiados já está estabelecida e desempenha seu trabalho. Esta é a organização que deve ocupar-se do restabelecimento ou repatriação dos refugiados da Europa(…). Os árabes da Palestina não são responsáveis de forma alguma pela perseguição aos judeus na Europa. Essa perseguição é condenada por todo o mundo e os árabes figuram entre os que simpatizam com os judeus perseguidos.

Não obstante, não se pode dizer que a solução desse problema é incumbência da Palestina, país pequeno que já recebeu um número suficiente de refugiados desde 1920. Qualquer delegação que deseje demonstrar simpatia possui em seu país mais espaço do que o que existe na Palestina e dispõe de maiores facilidades para receber esses refugiados e prestar ajuda.”

No entanto, a Assembleia Geral decidiu formar a Unscop (Comissão Especial da Nações Unidas para a Palestina), excluindo de seus debates a proposta de independência da Palestina. A Unscop foi formada por 11 países: Canadá, Tchecoslováquia, Guatemala, Países Baixos, Peru, Suécia, Uruguai, Índia, Irã, Yugoslávia e Austrália.

A Unscop visitou a Palestina em junho e, em seguida, os campos de refugiados judeus na Europa. Escreveu que a maioria dos refugiados judeus queria ir para a Palestina por temor do antissemitismo, ainda que fosse notória a preferência da ampla maioria dos refugiados pelos Estados Unidos, que limitava então o ingresso dos imigrantes.

Em agosto, a Unscop definiu suas recomendações: a maioria de sete países (Canadá, Tchecoslováquia, Guatemala, Países Baixos, Peru, Suécia e Uruguai) propôs a partilha da Palestina, com a formação de dois estados independentes em associação econômica, a internacionalização de Jerusalém, bem como a imigração sem restrições da população judia europeia.

A minoria (Índia, Irã e Iugoslávia) defendeu a independência imediata da Palestina, reivindicando o direito natural da maioria árabe que conformava 70% da população de permanecer com a posse de seu país, onde já vivia há séculos. Defendia ainda a formação de um estado federal entre árabes e judeus, mas uma única cidadania palestina concedida a árabes, judeus e outros. Jerusalém seria a capital.

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A Austrália não aprovou nenhuma das propostas

Os Estados Unidos e a União Soviética avalizam a partilha e a imigração europeia

Em 11 de outubro, o representante americano, H. Johnson, informou que apoiaria a proposta da maioria da Unscop: partilha e imigração. Dois dias depois, a União Soviética informou ter a mesma posição. Com o apoio das duas superpotências, o plano de partilha estava pronto para a votação.

Nos dias 24 e 25 de novembro foi feita a primeira votação. A minoria da Unscop apresentou três propostas que foram derrotadas uma a uma mas contaram com o apoio da Argentina, Grécia, Haiti e Libéria. As três propostas foram:  envio da questão para a Corte Internacional de Justiça; recepção de refugiados judeus europeus pelos estados membros em seus territórios; e estabelecimento de uma Palestina unificada e independente.

Já a proposta da maioria da Unscop (partilha da Palestina, imigração irrestrita de judeus europeus e internacionalização de Jerusalém) contou com 25 votos a favor, 13 contrários, 17 abstenções e duas ausências.

No entanto para ser aceita como deliberação da Assembleia Geral da ONU, era necessária uma maioria de 2/3. Se fosse à votação e nenhuma proposta tivesse 2/3, não haveria uma resolução da ONU sobre o tema, dificultando enormemente os planos de constituir um estado judeu na Palestina. No dia 26 de novembro a proposta de partilha não contava com os 2/3 de votos necessários. Por isso o brasileiro Oswaldo Aranha, que presidia a sessão, suspendeu os trabalhos sob protestos dos países árabes.

Nos dias seguintes, 27 e 28 de novembro, as sessões foram adiadas pelo presidente Oswaldo Aranha. No período, vários países foram submetidos a negociatas e chantagem pelos Estados Unidos. Em 29 de novembro, um sábado, com a maioria de 2/3 assegurada, Oswaldo Aranha convoca a sessão para votação.

Os países árabes apresentam nova proposta: uma Palestina unitária com autonomia local para a minoria judia. Os representantes dos Estados Unidos, Johnson, e da União Soviética, Gromyko, se opuseram a discutir a proposta dos árabes e exigiram que a votação fosse iniciada. Foram 33 votos a favor da partilha, 13 contra, dez abstenções e o impedimento de voto pelo Sião. Além do abuso do poder econômico contra países como Haiti, Libéria e Filipinas, o representante do Sião, que se opusera à partilha na primeira votação, teve suas credenciais retiradas sob a alegação de um golpe de estado em seu país, que já ocorrera antes mesmo da primeira votação.

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Após a partilha, às armas

Os dirigentes sionistas entendiam que a partilha da Palestina teria que ser materializada na expulsão da população local. Para isso elaboraram o plano Dalet o qual preconizava a utilização de milícias armadas para aterrorizar e expulsar os palestinos. Este processo foi acelerado devido ao risco de intervenção internacional. A própria delegação americana sugeriu à ONU em março de 1948 que a administração da Palestina fosse assumida pela ONU por um prazo de 5 anos.

Foto da 'Nakba' palestina em 1948

Foto da ‘Nakba’ palestina em 1948

Apesar do embargo de armas determinado pela ONU, a União Soviética e seus países aliados se transformam nos principais provedores de armamentos para Israel.

Escreve Ilan Pappé: “Até maio de 1948 os dois lados estavam mal equipados. Então o recém- formado exército de Israel, com a ajuda do partido comunista local, recebeu um grande carregamento de armas pesadas da Tchecoslováquia e da União Soviética. Isso incluía um acordo de armamentos no valor de US$ 12,28 milhões fechado entre a Haganá e a Tchecoslováquia referente à aquisição de 24.500 rifles, 5.200 metralhadoras automáticas e 54 milhões de cartuchos de munição.” (Ilan Pappé, A Limpeza Étnica da Palestina, capítulo 4).

Pappé continua: “Durante a trégua nos combates, os exércitos árabes não se reabasteceram de armamentos porque a Grã-Bretanha estava decidida a observar o embargo de armas imposto pela ONU às facções em guerra. As forças judaicas, por seu lado, continuaram a eludir a proibição importando quantidades consideráveis de armamento pesado dos países do bloco do leste, que desobedeceram à medida da ONU. A paridade da primeira semana foi substituída por uma superioridade dos judeus quando os combates foram retomados em meados de junho de 1948.” (Ilan Pappé, História da Palestina moderna, capítulo 4).

Sem o apoio das superpotências não haveria a formação do Estado de Israel. A União Soviética e os Estados Unidos competiam entre si para formar áreas de influência, e apoiaram a nakba (catástrofe palestina).

“Em 14 de maio de 1948 foi declarado o Estado de Israel. Às 1h da madrugada do dia seguinte, o presidente americano Harry Truman anunciou o reconhecimento de facto do novo estado pelo seu país. Uma hora antes, sir Alan Cunningham, o último alto comissário britânico, abandonara o país. Dois dias mais tarde, a União Soviética acrescentou seu reconhecimento, mas foi mais longe que a superpotência rival e concedeu o reconhecimento de jure (NT: de direito).” (Ilan Pappé, História da Palestina moderna, capítulo 4).

Conclusão

A nakba palestina foi fruto da determinação dos países imperialistas de dominarem o mundo árabe. Também foi fruto da decisão de Stálin, o ditador soviético, de ter o Estado de Israel como seu aliado na região. Lamentável foi o papel do embaixador brasileiro que, subserviente aos interesses estadunidenses, fez manobras regimentais de toda ordem, rejeitando todas as solicitações dos países árabes e dirigindo os trabalhos com o único objetivo de aprovar a partilha. Essa dívida do Brasil para com o povo palestino tem que ser saldada.

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 Quadro de votações na ONU – 25 de novembro

Votos a favor da partilha:

Austrália, Bolívia, Brasil, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Chile, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Islândia, Nicaragua, Noruega, Panamá, Perú, Polônia, República Dominicana, BieloRússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

 Votos contra:

Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Sião, Síria, Turquia e Iêmen.

 Abstenções:

Argentina, Bélgica, Colômbia, China, El Salvador, Etiópia, França, Grécia, Haiti, Honduras, Libéria, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Países Baixos, Reino Unido e Iugoslávia.

Ausências: Filipinas e Paraguai.

29 de novembro

 Votos a favor da partilha:

Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Haiti, Guatemala, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicaragua, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Panamá, Paraguai, Perú, Polônia, República Dominicana, BieloRússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

Votos contra:

Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Sião, Síria, Turquia e Iêmen.

 Abstenções:

Argentina, Colômbia, Chile, China, El Salvador, Etiópia, Grécia, Honduras, México, Reino Unido e Iugoslávia.

Ausências: Sião

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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