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Onde vai Nagorno-Karabakh?

A imagem compartilhada pelo Ministério da Defesa do Azerbaijão mostra o exército lançando um contra-fogo e uma operação avançada depois que a Armênia violou o cessar-fogo, em 28 de setembro de 2020. [Ministério da Defesa AZE - Agência Anadolu]
A imagem compartilhada pelo Ministério da Defesa do Azerbaijão mostra o exército lançando um contra-fogo e uma operação avançada depois que a Armênia violou o cessar-fogo, em 28 de setembro de 2020. [Ministério da Defesa AZE - Agência Anadolu]

O conflito militar entre a Armênia e o Azerbaijão foi retomado a partir de 27 de setembro. A grande imprensa desinforma como sempre quando se trata de conflitos no “oriente”. O cenário “informado” é sempre o mesmo, de antigas lutas religiosas e étnicas infindáveis. Essa fórmula orientalista, a serviço dos colonizadores, esconde a realidade e a história.

A região do Cáucaso Meridional ou Transcaucásia, onde se localizam atualmente a Armênia, o Azerbaijão e a Geórgia, é uma área estratégica entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Além de constituir um corredor de trânsito entre o oriente europeu e a oeste asiático, ela também se tornou um importante centro de exploração de petróleo e gás a partir do final do século dezenove.

Nesta região povos milenares sempre viveram juntos em paz mas comprimidos por três grandes impérios: o russo, o otomano (atual Turquia) e o persa (atual Irã) cujas presenças exerceram forte influência cultural, linguística e religiosa.

No início do século dezenove o império Russo toma essa região do império persa através de duas guerras (1804-1813 e 1826-1828) encerradas por dois tratados (Gulistão de 1813 e Turcomenchay de 1828) e exerce seu domínio até a revolução russa de 1917.

Apoiar a revolução ou a contra-revolução?

Com a tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques liderados por Lênin em outubro de 1917, os líderes locais do partido menchevique da Geórgia, da Federação Revolucionária Armênia e do Musavat (Azerbaijão), contrários aos ideais internacionalistas e revolucionários dos bolcheviques, decidem formar a breve República Federativa Democrática da Transcaucásia em 22 de abril de 1918, certos de contar com o apoio das potências internacionais, como o Reino Unido, a Alemanha e os Estados Unidos, interessadas em conter o avanço da revolução russa.

No entanto, frente à ofensiva militar do exército otomano, os líderes georgianos rompem com a República Federativa em 26 de maio de 1918, se aliam primeiro com o Império Alemão e depois com o império britânico, e mergulham em um nacionalismo abjeto promovendo pela via militar disputas territoriais com a Armênia e o Azerbaijão. Esse nacionalismo regressivo vai contaminar os líderes nacionalistas armênios e azeris que seguirão o mesmo caminho, disputando áreas entre si. A elite armênia vai buscar o apoio do Reino Unido e dos Estados Unidos para reconstruir a Grande Armênia, e a elite Azeri o apoio otomano e depois britânico.

A guerra com o exército otomano e entre as jovens repúblicas é interrompida pelo ingresso do exército vermelho que toma toda a região em 1920-1921 e, em 1922, é formada a República Federativa Socialista Soviética da Transcaucásia que une as três repúblicas: Armênia, Azerbaijão e Geórgia. Posteriormente a Federação da Transcaucásia  fundará a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) junto com a Federação Russa e as Repúblicas da Ucrânia e BieloRússia.

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A questão das nacionalidades

O direito de autodeterminação dos povos oprimidos sempre foi parte do programa do partido bolchevique sob Lênin, que inclui o direito à secessão. Um exemplo disso foi a Finlândia. Logo após a tomada  do poder pelos bolcheviques, o senado finlandês enviou uma delegação à Petrogrado com uma petição pela independência da Finlândia que foi firmada por Lênin de imediato.

No entanto, alguns anos após a tomada do poder pelos sovietes, Stalin rompe com o programa bolchevique ao se opor ao direito de autodeterminação, propondo uma autonomia formal e tutelada.

Esta questão foi objeto de intensa discussão dentro do partido bolchevique e terminou com a derrota de Stalin e a vitória de Lenin, Trotsky e outros líderes bolcheviques. O resultado foi a inclusão do pleno direito de autodeterminação dos povos oprimidos na primeira constituição soviética.

Após a morte de Lênin, com a derrota das revoluções na Europa e o refluxo da revolução russa, Stalin toma o controle sobre o partido comunista (PCUS) e o Estado Soviético, que se tornam burocráticos. O direito de autodeterminação se tornará letra morta, e a União Soviética o “cárcere dos povos”.

A questão de Nagorno-Karabakh

No Cáucaso Meridional, os diversos povos viviam juntos e misturados. Os territórios com maioria de um povo continham importantes minorias de outros povos e não eram contínuos. Esse é o caso de Nagorno-Karabakh (Alto Karabakh).

Nas terras altas de Karabakh (chamadas de Nagorno-Karabakh) vive uma maioria de armênios, algo ao redor de 80%. Já nas terras baixas de Karabakh há, historicamente, uma maioria azeri. Todos vivem nestas regiões há séculos.

Entre 1921 e 1923 ocorreu um debate dentro do partido bolchevique sobre Nagorno-Karabakh. A posição de toda a delegação transcaucasiana (formada por armênios, azeris e georgianos) foi pela integração de Nagorno-Karabakh à Arménia. Mas Stalin impôs outra solução. Entregou a área de Zangezur para a Armênia e a área de Nakhchivan e Karabakh (terras altas e baixas) para o Azerbaijão.

Para piorar, em 1936 Stalin dissolveu a República Federativa Soviética da Transcaucásia e a dividiu novamente nas Repúblicas Soviéticas da Armênia, Azerbaijão e Geórgia preparando o conflito que vai ressurgir meio século depois em 1988.

Mulher carrega seus pertences para fora de um edifício danificado por recentes bombardeios, em Stepanaker, principal cidade da região disputada de Nagorno-Karabakh, 3 de outubro de 2020 [AFP/Getty Images]

Mulher carrega seus pertences para fora de um edifício danificado por recentes bombardeios, em Stepanaker, principal cidade da região disputada de Nagorno-Karabakh, 3 de outubro de 2020 [AFP/Getty Images]

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O fim do “cárcere dos povos” e o veneno dos antagonismos nacionalistas

Em meados dos anos 80, Mikhail Gorbachev ascende ao poder na União Soviética. Ele proclama as políticas da Perestroika (Reestruturação) e da Glasnost (Transparência) e inicia o caminho de volta ao capitalismo.

São as nacionalidades oprimidas quem iniciam o enfrentamento contra a ditadura do PCUS que agora dirige a mão de ferro um Estado capitalista.

Em 20 de fevereiro de 1988, o soviete de Karabakh vota a independência de Nagorno-Karabakh (chamada de Artsakh pela população local) e sua unificação com a Armênia por 110 votos a favor e 17 votos contrários. Gorbachev se opõe à esta decisão. Começa o conflito militar entre o Azerbaijão e a população de Nagorno-Karabakh apoiada pela Armênia.

Em 1991 as Repúblicas da Armênia e do Azerbaijão se tornam independentes e um referendo massivo em Nagorno-Karabakh vota pela independência.

Este conflito se estenderá com forte influência dos militares russos nos dois lados e já resultou em 30 mil mortos e um milhão de refugiados/deslocados.

Em 1994 um armistício mediado pela Rússia congela as ações militares e Nagorno-Karabakh se torna independente de fato mas não de direito, ou seja, a população local armênia controla a região mas sua independência não é reconhecida nem pelo Azerbaijão nem pela ONU.

Desde então ofensivas militares e processos de opressão contra minorias nacionais ocorrem periodicamente, condenando a região de Nagorno-Karabakh ao sub-desenvolvimento.

A quem interessa o conflito?

O antagonismo regional entre a Armênia e o Azerbaijão interessa diretamente à Rússia e outras potências regionais e internacionais.

A Rússia vende armas e mantém bases militares nos dois países que seguem sob sua esfera de influência o que lhe garante o controle do Cáucaso e de suas riquezas.

A partir de 1991, a Turquia estabeleceu uma relação prioritária com o Azerbaijão, onde se concentram as reservas de petróleo e gás natural da região.

O Azerbaijão é governado desde 1993 pelo ex-integrante da KGB Heydar Aliyev que foi sucedido por seu filho Ilham Aliyev em 2003. Esse regime político autoritário e capitalista fomenta um nacionalismo tóxico contra a minoria armênia enquanto entrega a exploração de petróleo e gás para multinacionais ocidentais e russas. Para a atual ofensiva sobre Nagorno-Karabakh, o regime azeri comprou armas israelenses, além das russas, e aposta no apoio da Turquia, que desde 1993 bloqueia suas fronteiras com a Armênia.

A Armênia tinha um regime autoritário que foi derrubado por uma revolução popular em 2018. No entanto o atual regime democrático-burguês também aposta num nacionalismo tóxico contra o Azerbaijão e numa relação privilegiada com a Rússia, a Europa e os Estados Unidos.

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Voltar à Lênin

A alternativa aplicada pelos regimes políticos da Armênia e do Azerbaijão é a eterna guerra intermitente e a opressão nacionalista contra as minorias em seus países enquanto entregam suas econômicas para o capitalismo internacional e se mantêm sob a esfera política da Rússia.

Essa alternativa não atende aos verdadeiros interesses da população trabalhadora que sofre com o desemprego, a desigualdade social, o conflito nacionalista e o domínio estrangeiro.

A alternativa que interessa à classe trabalhadora armênia e azeri começa pelo direito de autodeterminação das nacionalidades oprimidas e pelo respeito às minorias nacionais, defendido por Lênin. Afinal qual é o sentido do regime azeri dominar Nagorno-Karabakh pela via militar, onde os armênios vivem há séculos? Promover mais opressão e limpeza étnica? A população de Nagorno-Karabakh tem que ter o direito à autodeterminação. Assim como a população azeri das terras baixas de Karabakh, sob controle armenio, tem que ter o direito de autodeterminação. Nenhum povo é livre enquanto oprime a outro povo. O caminho da liberdade passa necessariamente pelo respeito mútuo e o reconhecimento dos direitos das nacionalidades oprimidas.

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Essa alternativa se completa pela formação de uma nova Federação de Repúblicas Socialistas da Transcaucásia entre Armênia, Azerbaijão e Geórgia, com a saída de todas as forças militares estrangeiras, onde todos os povos da região possam viver juntos e misturados em paz, como ocorreu durante séculos, e sem interferência externa nem relações econômicas ou diplomáticas com o Estado racista de Israel, que se dedica a esmagar os direitos nacionais do povo palestino.

Para levar a frente esta alternativa, a classe trabalhadora dos dois países terá que derrubar ambos os regimes e o veneno do nacionalismo tóxico; e caminhar para um poder dos trabalhadores, única saída para garantir justiça social, a paz entre os povos e a independência nacional.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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