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O papel das deportações e a limpeza étnica na geopolítica do Grande Oriente Médio

Palestinos protestam contra o plano de paz do presidente dos EUA Donald Trump no vale do Jordão, na Cisjordânia, em 29 de janeiro de 2020 [Issam Rimawi /Agência Anadolu]
Palestinos protestam contra o plano de paz do presidente dos EUA Donald Trump no vale do Jordão, na Cisjordânia, em 29 de janeiro de 2020 [Issam Rimawi /Agência Anadolu]

Poucos termos e conceitos mesclados chamam mais atenção e tornaram-se mais polissêmicos do que “geopolítica”. Das várias escolas e linhas teóricas que desenvolvem a ciência aplicada, ou, o fim último do estudo da geografia para a guerra e conflitos, há certo consenso que: apenas com geopolítica, o Sistema Internacional e o planeta não passam de pura crueldade institucional (na mescla de cinismo, moral maquiavélica e um pressuposto realista duro). Por outro lado, pessoas em desacordo com a “naturalização” das formas humanas de existência (onde me filio), se veem obrigadas a compreender a geopolítica e suas derivações sofisticadas (geoestratégia e geoeconomia), como o letramento básico dos jogos de poder internacionais. Tomando como ponto de partida a defesa de povos e territórios e a presença humana anterior a impérios, manipulações e invasores coloniais, nos vemos na obrigação de defender os direitos inalienáveis de habitantes ancestrais, como o povo palestino, sem cair na “tentação totalizante” de condenar povos e sociedades inteiras.

Infelizmente, não podemos tentar evadir dos debates e releituras da geopolítica quando abordamos o Grande Oriente Médio, como o eixo de territórios contínuos em que se materializa o Mundo Árabe e de onde houve a expansão do Mundo Islâmico. A vantagem de constituir uma unidade política autônoma, vindo a ter estas distintas formas estatais (ou não necessariamente estatais) é algo definidor no destino de povos, regimes e relações sociais em que a disputa de poder é quase sempre terminal.

Acordo Sykes-Picot[wikipedia]

Acordo Sykes-Picot[wikipedia]

Na terra de nossos ancestrais, há presença humana organizada tão antiga quanto à própria humanidade, mas a conhecida “modernidade”, oriunda do século XVIII, no período iluminista e posterior à Revolução Francesa, chegou a bordo de navios de guerra ocidentais. Neste sentido, a reprodução do conceito de Estado Nacional, uma fantasia jurídico formal que atesta aos seres humanos vivendo dentro de fronteiras definidas o status de cidadania plena, quase sempre sobrepõe duas dominações: a de controle dos recursos, fluxo de riquezas e poder, e também a de capacidade de exercício da própria cidadania, com status distinto segundo as marcas de origem, das comunidades étnico-culturais, incluindo a clivagem religiosa.

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Durante a Primeira Guerra Mundial (de julho de 1914 a novembro de 1918), a humanidade se destruiu em um conflito inter-imperialista, em que ambos os blocos de alianças usaram como carne de canhão tanto sua força de trabalho, como o recrutamento em massa de populações com territórios ocupados. É da ordem de mais de um milhão a presença de soldados árabes nas fileiras francesas, assim como os “povos transcaucasianos” lutaram pelo decadente Império Russo, que havia ocupado suas terras, promovendo (mais uma vez) genocídios e deportações em massa. A relação do Império Otomano com as populações árabes era menos inamistosa, mas ainda assim, foi duríssimo o controle dos chamados Jovens Turcos, quando ainda estavam como oficiais do igualmente decadente otomanismo, comandado pelo triunvirato dos três pashás. A relação de um Estado em guerra com a população, vista como rival interna, é ainda pior. Como exemplo disso, temos o genocídio armênio (em suas várias etapas, a partir de abril 1915) e antes, a conquista do Cáucaso pelo Império Russo, movimento que durou meio século levando a deportações em massa.

Seguindo a lógica da conquista de um território, este traz consigo a mancha territorial, a população (e sua geografia cultural já instaurada), recursos naturais e subsolo, além da extensão em si, incluindo limites por terra, água (mares e águas interiores) e espaço aéreo. A terra e a permanência sobre ela é motivo de disputa, tal como a legitimidade das formas de exercício de governo, com maior ou menor volume de direitos políticos, jurídicos, sociais, econômicos e de acesso às instituições formais.

A guerra de “independência” que constitui a Turquia moderna (de maio de 1919 a outubro de 1922, com o armistício assinado em apenas em julho de 1923) garantiu a unidade territorial possível da república turca e foi erguida através do pensamento e ação dos oficiais oriundos dos Jovens Turcos. Podemos afirmar que o país fundado por Mustafá Kamal Pasha, o Atatürk, herói comandante da Batalha de Galípoli (na Primeira Guerra Mundial, à frente de três divisões do exército otomano, em que ao menos duas eram compostas por soldados árabes), é a versão possível, no século XX, para a concretização de um Estado “nação”. Se, por um lado, a Turquia conseguiu unificar seu território e expulsar potências invasoras, por outro, sua “unidade nacional” tem consequências duríssimas e passíveis de críticas para importantes setores de sua população.

A outra formação concreta de Estado “nacional” se realiza com a Nakba, a expulsão de cerca de 850 mil pessoas árabe-palestinas da onde viviam desde os tempos da Cananeia, quando o idioma aramaico era língua franca. A formação do Estado de Israel, através de sua “guerra de independência” (onde a unidade política dos colonos eurojudeus substitui ao Mandato Britânico), promoveu uma gigantesca limpeza étnica no território que seria “partilhado”. Podemos afirmar que a limpeza continua, na “normalização” do apartheid com a Naksa, em junho de 1967 e com a Ocupação, ainda mais ilegal, de Gaza e Cisjordânia. Dominar, dividir, tomar os recursos estratégicos, despovoar, destruir marcos da geografia cultural (incluindo implosão de residências e erradicação de oliveiras centenárias) e, por fim, criar o “novo normal”, em que crimes de lesa humanidade seriam toleráveis para “paz e estabilidade” dos setores dominantes, são atos sistemáticos do invasor.

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Não se trata de novidade, mas sim de permanência. Tecnicamente, as deportações em massa, com o objetivo de despovoar um território para substituir a população por outra “leal” ao governo central, é um artifício muito antigo nos dramas de disputas de poder na humanidade. Implica uma manobra “clássica” dos controladores do poder, seja este cristalizado ou se instituindo.

A herança da presença imperialista deixou marcas sectárias e, maquiavelicamente, manipulou líderes de comunidades, decretou a formação de Estados fictícios e encravou uma cabeça de ponte eurocêntrica com a criação de Israel. Aos olhos das potências imperiais do início do século XX, o Grande Oriente Médio era um manancial de recursos e populações “atrasadas”, apesar de ser a fonte de culturas milenares e sentimento pan-arabista (laico e tolerante), assim como pan-islâmico. Promover a boa convivência das distintas identidades comunitárias étnico-culturais e religiosas da região é fundamental para nos livrarmos da herança maldita do acordo Sykes-Picot-Sazanov (o famigerado tratado secreto entre França e Inglaterra que contou com a Rússia no começo) e outros planos macabros. Em última análise, os conflitos regionais só interessam às potências eurocêntricas e a seus aliados de ocasião. Evitar o sectarismo, defender a libertação da Palestina nos termos que a luta permitir e assegurar sociedades democráticas, justas e inclusivas é um caminho que pode superar o cinismo maquiavélico que deforma a região há mais de cem anos.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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