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Gaza enfrenta o coronavírus sozinha após catorze anos de isolamento

Palestinos reúnem-se para reivindicar proteção contra o coronavírus (Covid-19) aos prisioneiros palestinos mantidos nas cadeias israelenses, na Cidade de Gaza, em 19 de março de 2020 [Ali Jadallah/Agência Anadolu]

Seres humanos pouco pensam em seus privilégios até que estejam perdidos ou prestes a desaparecer. A liberdade de ir e vir é um direito básico inequívoco tomado como certo em todos os lugares do mundo, exceto zonas de conflito ou áreas sitiadas como a Faixa de Gaza. Pessoas que ali vivem clamam há décadas para que a comunidade internacional as ajude a obter seus devidos direitos universais ou ao menos aliviar seu sofrimento; ainda sim, os apelos são em vão.

Diante da pandemia de coronavírus (Covid-19), pessoas das mais distintas condições de vida começaram a considerar meios e mecanismos para lidar com o isolamento. No entanto, por muitos e muitos anos, a Faixa de Gaza, pequeno território sitiado por Israel e pelo vizinho Egito, sofre com um bloqueio severo e isolamento arbitrário. Ao contrário do isolamento por coronavírus exercido atualmente, os palestinos de Gaza têm sofrido com cortes de energia elétrica insuportáveis, negação dos mais básicos cuidados médicos, carência de bens de subsistência, além de três guerras devastadoras que resultaram em milhares de mortos.

Hoje, unicamente protegidos pelo isolamento compulsório ainda em curso e pela quarentena atual, os palestinos de Gaza são quem melhor compreendem o desafio imposto ao mundo diante da pandemia de coronavírus. Até a última semana, Gaza estava livre do vírus. Orações foram mantidas em toda a Faixa de Gaza com súplicas solidárias pela recuperação de todos os seres humanos, sem exceção. No último domingo (22), os dois primeiros casos de Covid-19 foram confirmados em Gaza.

A maioria da população de Gaza vive em campos de refugiados superlotados; famílias estendidas residem em um mesmo espaço limitado. Devido à limitação severa ao movimento de ir e vir do território sitiado, os palestinos de Gaza já estavam isolados do mundo e a propagação do vírus pôde ser postergada – mas não por muito tempo. Médicos e especialistas alertam reiteradamente que o sufocante cerco israelense, junto da enorme concentração demográfica dos campos de refugiados e de um sistema de saúde extremamente debilitado, pode de fato criar condições perfeitas para a propagação da doença.

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O bloqueio debilitante representa uma punição coletiva e relegou os residentes de Gaza à situação de miséria. Em 2018, a gestão de Donald Trump eliminou todos os recursos enviados à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). A entidade é responsável por fornecer serviços vitais à subsistência – como educação e saúde – aos refugiados palestinos no Oriente Médio, incluindo Faixa de Gaza. Tais recursos costumavam ser destinados à educação de 500.000 meninos e meninas, campanhas de vacinação e clínicas de saúde que ofereciam serviços a mais de três milhões de refugiados – em outras palavras, um nível básico de dignidade a milhões de pessoas que, de outro modo, estariam absolutamente desalentadas.

Devido à rivalidade política, a Autoridade Palestina na Cisjordânia ocupada não apenas desistiu do território litorâneo sitiado, como também impôs sanções e negou o devido salários a funcionários públicos. Este dilema de diversas faces é exacerbado pelo regime egípcio, que fechou sua única travessia de fronteira na última década. A travessia foi então parcialmente reaberta apenas dois anos atrás. Gaza não possui aeroporto, desde que este foi bombardeado por Israel no início dos anos 2000, como represália à Segunda Intifada – levante palestino.

Portanto, o bloqueio israelense, a eliminação dos recursos por Trump, as sanções da Autoridade Palestina e o isolamento em curso por parte do Egito sobre o pequeno território litorâneo transformaram Gaza em uma entidade extremamente vulnerável ao surto do vírus. Os palestinos acompanham cautelosamente os avanços da pandemia, através da incessante cobertura de imprensa, e preparam-se para o pior.

O embargo israelense e as posturas políticas imaturas da Autoridade Palestina infligiram danos tremendos às instalações médicas da Faixa de Gaza, que deterioram-se imensamente no decorrer da última década. É de se imaginar o quão difícil será a Gaza enfrentar a ameaça iminente do coronavírus com apenas sessenta leitos de UTI para dois milhões de pessoas, sendo que nem todos são operacionais devido à carência das equipes de saúde.

Foi a Turquia, firme defensora da causa palestina, quem prometeu apoiar os palestinos em sua luta contra o coronavírus. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, segundo relatos, telefonou à liderança palestina e destacou o apoio de seu governo à Palestina no combate à pandemia.

No domingo (22), o Catar anunciou auxílio humanitário no valor de US$150 milhões à Faixa de Gaza no período de seis meses, a fim de conceder suporte aos programas das Nações Unidas no território palestino e aos esforços para conter o surto do coronavírus.

Com recursos bastante limitados, autoridades do Hamas na Faixa de Gaza começaram a construir 1.000 cabines de isolamento perto da fronteira meridional com o Egito. Empresários e proprietários de hotéis voluntariamente ofereceram suas instalações e recursos para serem utilizados como centros de quarentena.

A atitude de Israel é ironicamente distinta na Cisjordânia ocupada. O surto de coronavírus tem feito o que políticos e ativistas locais e internacionais fracassaram em fazer, pois levou a um nível extraordinário de cooperação e coordenação – além do setor de segurança – entre a Autoridade Palestina e israelenses.

Israel possui até então 1.442 casos documentados de Covid-19, entre uma população de 8.6 milhões de pessoas – das quais 1.9 milhões são árabes. Há 59 casos registrados nos territórios palestinos ocupados. Em 18 de março, o Presidente de Israel Reuven Rivlin convocou o Presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas a dizer que a cooperação mútua era inevitável. Entretanto, embora os governos globais tenham assumido medidas urgentes para enfrentar a ameaça sem precedentes da doença, autoridades israelenses efetivamente destruíram centenas de hectares de terras agrárias em duas comunidades beduínas na região palestina ocupada do deserto do Negev.

Tal atitude indica que as autoridades israelenses estão dispostas a cooperar por uma única razão: a segurança de seus próprios cidadãos. As chances de que o perigo iminente apresentado pela doença mude a postura israelense em relação aos palestinos é quase nula. Não obstante, a postura de Israel em relação ao território litorâneo sitiado permanece intacta: com ou sem pandemia, os palestinos de Gaza devem morrer em silêncio.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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