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Barreiras palestinas à cura de feridas traumáticas

Crianças palestina chora após ser quase atropelada por um colono israelense [maannews]

Pacientes traumatizados que recebo em meu consultório costumam expressar desconfianças negativistas quando eu os pergunto como se sentem: “É humilhante reclamar para alguém senão Deus”; “Não reclamo de meus ferimentos, não machucam ninguém, somente eu mesmo”; “Contenha a dor de seu coração e evite a vergonha de compartilhá-la”. Tais reações não se limitam a indivíduos. Atitudes como essas tornaram-se generalizadas geração após geração na Palestina ocupada, compondo um corpo de máximas e provérbios que comunicam a perda da fé nas relações humanas, um medo penetrante do perigo e uma contínua evasão referente ao ato de se abrir. Tais reações são barreiras à cura.

O trauma que mais prevalece na Palestina é feito pelo homem deliberadamente. O que é mais significativo é o fato de que o autor desses traumas jamais é responsabilizado, o que multiplica os efeitos das feridas. De fato, o autor desfruta de impunidade e impõe culpa à suas vítimas pelo próprio trauma sofrido. Culpa e vergonha dificultam às pessoas que se queixem e demandam reparação. Uma mulher sexualmente abusada em um centro de detenção deu-me esta resposta quando a propus que registrasse uma queixa sobre o caso: “Nada acontecerá se eu reclamar! Ninguém acredita em mim; o criminoso será defendido por todos e sairá vitorioso. Serei publicamente humilhada e me tornarei vítima de fofoca e desprezo.”

O trauma político na Palestina é tanto transgeracional quanto coletivo, e nossa capacidade de tratá-lo hoje é bastante limitada. Faltam-nos recursos financeiros, profissionais e evidências clínicas para embasar a abordagem de modo abrangente. A maior parte das técnicas de terapia contam com o tratamento individual, um por um, e lidam principalmente com o aqui e agora.

Devido ao fato do trauma na Palestina ser tão preponderante, há onda que se sobrepõe de luto traumático. Um jovem é afetado pelo círculos difusivos da ferida: ele vive em um campo de refugiados porque a casa e a terra de seu avô foram tomadas; sua mãe é afetada por depressão crônica por mais de vinte anos após a prisão e tortura do irmão mais velho; a casa de seu vizinho foi recentemente demolida; seu colega de escola foi morto em uma manifestação. Diante de tal histórico, como podemos localizar a fonte da dor em seu peito quando causas médicas já foram descartadas? A enorme profusão de eventos traumáticos no ambiente em que vivem dificulta que se estabeleça a etiologia; a repetição do trauma é um desafio aos esforços de tratamento.

Uma barreira adicional à cura é a falta de conhecimento social do trauma, de modo que sobreviventes isolados são desencorajados a procurar ajuda. Aqueles que lutam por liberdade e são mortos em um contexto violento costumam ser chamados de terroristas pela imprensa israelense; para compensar essa negação, a sociedade palestina costuma glorificar seus prisioneiros políticos e mártires. Neste contexto, entretanto, vítimas de trauma feridas pelo próprio sistema político palestino como membros de grupos opositores têm ainda maiores dificuldades para se recuperar. Escrevi anteriormente sobre uma mulher que descreveu a si mesma como “dançando com uma galinha abatida” após a morte de seu filho. Ela temia que, caso revelasse para mim que ele fora um informante israelense, eu seria incapaz de demonstrar empatia com o seu caso e passaria a ver seus esforços para buscar ajuda como ilegítimos. Embora este fosse um tratamento detalhado, ela evitou profundamente revelar toda a história. Manteve muitas partes de seu trauma ainda ambíguas e confidenciais; assim, construiu uma parede entre ela e o reconhecimento nominal de seu próprio trauma.

Não há lugar seguro na Palestina. Como resultado, a paranoia é disseminada. A falta de confiança nos outros costuma, de fato, ser uma medida de segurança ao invés de um sintoma psicótico. Quando detidos, costuma-se dizer aos prisioneiros que um amigo próximo ou familiar foi quem os delatou; outros veem seus companheiros testemunharem contra eles nos tribunais. O campo médico é particularmente suspeito e meus pacientes suspeitam que seus arquivos psiquiátricos serão usados contra eles. Pacientes em Jerusalém costumam me perguntar se meu computador é conectado ao sistema médico nacional israelense. Pessoas temem que seus celulares e computadores as estejam espiando.

Além disso, a vida cotidiana é cheia de recordações do trauma. Conheço sobreviventes que circunscrevem a vida em esferas bastante reduzidas a fim de evitar gatilhos: mudam-se a bairros pequenos, por exemplo, ou perdem seus empregos para evitar passar por postos de controle, ou deixam de assistir televisão ou utilizar as redes sociais para evitar imagens das agressões dos soldados. Tais reações ainda respondem à condições opressivas ao redor das vítimas, às quais mesmo a expressão simbólica de uma realidade traumática é impeditiva. Há pessoas que foram detidas por assistir uma peça de teatro, escrever poesia ou comentar no Facebook. Essas práticas opressivas ajudam-nos a compreender porque algumas vítimas do trauma são levadas a repetir, por meio de reencenação, o evento traumático.

A culpa por sobreviver é outro elemento agravante à recuperação. Tratei um menino adolescente que tentou o suicídio diversas vezes após o assassinato de seu primo. Mais tarde, descobri que este menino encorajou o primo a participar de manifestações, onde foi baleado e morto. Sentimentos de culpa são um componente importante à reação traumática em nosso contexto político: mulheres detidas sentem culpa por “abandonarem” seus filhos e lar; pais de menores prisioneiros sentem culpa pelo “fracasso” ao protegê-los; os próprios prisioneiros sentem culpa por “obrigar” seus pais a gastar suas economias com advogados, na esperança de receber uma sentença reduzida. Sentimentos de culpa são injetados regularmente nas pessoas sob tortura quando lhes dizem coisas como: “Traremos sua mãe até aqui, sua esposa e suas irmãs também” e “Iremos demolir sua casa”. Em muitas das interações com o sistema administrativo opressivo de Israel, as pessoas são consideradas responsáveis pela punição impostas a elas; por exemplo, casas são demolidas porque as pessoas “falham” em obter a licença apropriada, embora seja tipicamente inalcançável.

A dependência palestina em relação a Israel é outra barreira ao tratamento do trauma, pois promove uma identificação regressiva com o agressor como um grupo superior. Essa dinâmica acrescenta ofensa à ferida. Palestinos que buscam terapias de última geração para o tratamento de condições médicas críticas devem viajar necessariamente a um hospital israelense. Caso um palestino deseje reparação pelas torturas sofridas, deve contar com um advogado israelense. Quando uma história é contada por um jornalista israelense, a narrativa é considerada mais válida e verossímil do que quando relatada pela imprensa palestina. O confisco de autoridade e especialidades por parte de Israel cria ainda maiores confusões nas mentes de muitos palestinos vítimas de trauma.

A falta de confiança nas capacidades palestinas e as narrativas vigentes de nepotismo, traição, desorganização e corrupção dentro das instituições e agências palestinas são parcialmente legados dos efeitos traumáticos da ocupação israelense. O trauma espalha-se por todos os múltiplos aspectos da vida, com um impacto nas tradições sociais e culturais, ao afetar toda a população, prejudicar o pensamento crítico, destruir a autoconfiança e os relacionamentos, sabotar o sentimento de integridade comunitária e obscurecer nossas esperanças em relação ao futuro. O trauma afeta a formação e distorce o processo de desenvolvimento da criança, a personalidade, as relações interpessoais, o conceito sobre si mesmo, os valores sociais e, sobretudo, a perspectiva referente à vida.

É reconfortante ter fé nas forças definitivas da justiça. No entanto, tal crença pode ser perigosa para sociedades traumatizadas porque implica que as pessoas têm o que merecem. Pessoas traumatizadas concluem prontamente que os traumas terríveis que sofrem acontecem devido às suas próprias falhas. São convencidas facilmente de que são essencialmente más e não merecem nada de bom; suas ações e seu comportamento serão correspondentes a tal convicção.

O terapeuta na Palestina não é imune a tais pressões, e por vezes não está preparado emocionalmente para os desafios do procedimento traumático; o clínico sufocado por seu trabalho está continuamente sob risco de juntar-se, contra sua vontade, à evasão de seus pacientes para recuperar a memória e estabelecer a revelação dos fatos. O terapeuta que não esteja pronto para perguntar, ouvir e observar deve trabalhar primeiro suas próprias barreiras internas; ele ou ela podem estar praticando uma evasão pessoal do trauma em conivência inconsciente com a resistência do paciente.

Nosso trabalho em tratar o trauma individual forjado pela violência política é parte de uma longa jornada de cura, enfrentada por toda a comunidade palestina. Devemos nos recuperar do trauma ao retomar nossa normalidade perdida, por meio de sistemas culturais e sociais que permanecem dormentes sob a ocupação por gerações e gerações. Este trabalho não pode ser alcançado plenamente somente em um consultório clínico, mas sim requer uma renovação coletiva ampla da vida psicológica sob condições de autonomia e justiça.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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