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Porque uma mudança de regime no Irã, sob ingerência ocidental, sairia pela culatra

3 de julho de 2025, às 06h00

Milhares se reúnem nas praças de Teerã, em protesto aos ataques de Israel, em 20 de junho de 2025 [Fatemeh Bahrami/Agência Anadolu]

Os ataques dos Estados Unidos a três instalações nucleares iranianas, em 22 de junho, marcou o começo do que muitos temiam: envolvimento direto da gestão americano na escalada de agressão israelense contra a região.

Apesar de o presidente Donald Trump insistir que as ações seriam limitadas, e que sua gestão não busca uma mudança no regime, a história da região sugere o oposto. 

Israel, mais de uma vez, seduziu Washington a conflitos no Oriente Médio, por meio de informações facciosas de sua inteligência — foi o caso do Iraque, agora o Irã. Dado este precedente e o alerta iraniano de “consequências duradouras”, é pouco provável que a ingerência americana termine por aqui. Ao contrário, arrisca se alinhar com o objetivo de longa data do Estado colonial israelense: o colapso da República Islâmica.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, prometeu que suas ações armadas levariam à remoção do Supremo Líder do Irã, aiatolá Ali Khamenei. E, muito embora a Casa Branca, negue intento, costuma capitular historicamente às ambições estratégicas israelenses.

De fato, os ataques americanos fomentaram maior escalada, com a resposta do Irã em 23 de junho, com o que descreveu como disparos “simbólicos” de mísseis a instalações do exército dos Estados Unidos, incluindo a base aérea de al-Udeid, no Catar, e outros alvos militares no Iraque.

Contudo, caso os confrontos se intensifiquem, Washington pode aproveitar a janela ao que caracterizou abertamente como “solução final”: no caso, a remoção do regime em nome de uma suposta estabilidade regional.

Trump anunciou um frágil cessar-fogo com Teerã na noite da última segunda-feira (23), mas tensões latentes seguem em voga e a estratégia abrangente por trás dos ataques parece permanecer inalterada.

Cá repousa um pressuposto hegemônico, sobretudo entre os legisladores israelenses e americanos: de que uma eventual mudança de regime traria estabilidade. Acadêmicos como Vali Nasr, no entanto, alertam que essa ideia se baseia em uma estratégia de alto risco e, de fato, mal informada.

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Surge também uma questão maior, muitas vezes ignorada pelos círculos políticos: uma mudança no regime conseguiria desmantelar, efetivamente, o sistema ideológico que, por décadas e décadas, sustenta a República Islâmica?

Continuidade ideológica

É um erro grosseiro de compreensão básica assumir que a estrutura político-ideológica do Irã desabaria com a queda de Khamenei.

Os alicerces da revolução iraniana têm raízes profundas no conceito de wilayat al-faqih, um princípio teológico que rege a República. Esta doutrina de séculos confere a juristas um papel de tutela durante a chamada ocultação do 12º imã do Islã xiita, Muhammad al-Mahdi. Sob a liderança do aiatolá Ruhollah Khomeini, a Revolução de 1979 trouxe o conceito de wilayat al-faqih ao centro da esfera política — uma ideia antes confinada à teologia acadêmica.

Embora haja divergências dentre os estudiosos xiitas sobre o escopo do papel político desses juristas — o grão-aiatolá Ali Sistani de Najaf, no Iraque, por exemplo, não apoia sua aplicação política —, prevalece um consenso amplo de que os xiitas devam acatar a seu maior jurista sênior — ou marja al-taqlid — na falta do imã.

Embora haja diversos sucessores prováveis a Khamenei, o próximo líder provavelmente surgirá do Seminário Qom — o principal centro de aprendizado xiita do Irã, que ainda promove a visão de Khamenei, incluindo sua interpretação do wilayat al-faqih.

De fato, a base ideológica do regime no Irã não depende de um líder, mas está imbuída institucionalmente no Islã xiita praticado no país e continuará a reproduzir sua doutrina revolucionária desde o âmago do Estado.

Em outras palavras, depor Khamenei não muda o sistema.

Força transnacional

O soft power global do Irã costuma ser profundamente subestimado. Enquanto a maior parte dos países tem projeção em suas comunidades diaspóricas, o Irã é único em sua habilidade de comandar uma lealdade ideológica transnacional.

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O impacto da Revolução de 1979 se estendeu para muito além das fronteiras iranianas ou sua população xiita. Este foi um momento transformativo em toda política global, especialmente para os muçulmanos e, sobretudo, às comunidades xiitas. A revolução carregou consigo enorme importância teológica e filosófica, em particular sobre a ideia de wilayat al-faqih.

Embora alguns líderes xiitas rejeitem a exegese política de Khomeini, outros reservam um forte compromisso para com as ideias da revolução. Tamanha aliança não se limita ao Irã, mas transcende a Paquistão, Líbano, Índia, Iraque e muito além. Até mesmo nos ambientes diaspóricos, incluindo Europa e América do Norte, o apoio à revolução não se restringe a cidadãos iranianos.

É isso que difere o Irã dos outros países de maioria islâmica.

Por exemplo, embora sunitas sintam uma conexão espiritual com Meca e Medina, não quer dizer que defendam o regime saudita.

Por contraste, a admiração à Revolução Islâmica e suas instituições é encontrada entre as mais diversas etnias das diásporas xiitas, embasadas não na lealdade nacional, mas em uma espécie de solidariedade ideológica e espiritual.

Caso o regime caísse por forças externas, tamanho apoio ideológico provavelmente se aprofundaria. Qualquer substituição imposta pelo estrangeiro vivenciaria uma imensa rejeição das comunidades xiitas — e além — em todo o planeta.

Rede global 

O Irã cultivou também uma vasta rede de patronagem global, que se espalha, hoje, por seis continentes. De Buenos Aires a Jakarta, da África à Europa, de Londres a Nova York — tamanha rede mantém conexões com seguidores de Khamenei.

Oferecem não somente orientação espiritual, mas conselho prático para o cotidiano. Se o regime caísse, essas redes tampouco desapareceriam.

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Comunidades xiitas podem sofrer abalos, mas seus vínculos ideológicos e institucionais permaneceriam intactos e poderiam ajudar a base global de apoio do regime a manter contato, preservar sua solidariedade e potencialmente auxiliar sua futura ressurgência política.

Jaz a questão fundamental: o que uma mudança de regime conseguiria alcançar? Não enfraqueceria de modo algum, ao que parece, a base de apoio ideológico do regime — seja doméstica ou internacionalmente. E, se assim fosse, quais interesses serviria, salvo as ambições expansionistas de Netanyahu e seus acólitos de extrema-direita?

Há fissuras profundas entre a sociedade iraniana, sobretudo entre as vozes seculares e reformistas. Crise econômica, repressão política e restrições às liberdades civis geraram sim frustração quase generalizada. A realidade não pode ser ignorada.

Mas uma mudança de regime imposta de fora jamais funcionou tampouco funcionará no Oriente Médio. Ao contrário, incitaria o caos e consequências de longo alcance.

A verdadeira questão agora não é se o sistema estabelecido no Irã é capaz de suportar pressão externa, mas o quanto Estados Unidos e aliados desejam priorizar a agenda de Israel, mesmo ao arriscar um conflito que poderia afetar, em último caso, seus próprios interesses regionais?

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 27 de junho de 2025.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.