O medo e ódio do “outro” não são novidades nos Estados Unidos. Por décadas, essa dinâmica definiu as relações da população branca no país com minorias e imigrantes. As leis de Jim Crow, que legalizaram a segregação racial nos estados do sul por mais de cem anos, tornaram o sonho americano um pesadelo a seus cidadãos com raízes africanas.
Hoje, legislações islamofóbicas conferem carta branca à demonização e perseguição dos muçulmanos na “terra dos homens livres”.
Neste documentário de 2018, intitulado Islamophobia Inc. — ou, em tradução livre, Islamofobia S.A. —, a unidade de reportagem investigativa da rede internacional Al Jazeera expõe a velocidade atordoante com que se espalhou a discriminação contra os muçulmanos, ao longo dos anos, na sociedade americana.
De fato, alcançou proporções industriais.
Os realizadores passaram meses e meses trabalhando por trás das cenas no objetivo de identificar os indivíduos com maiores interesses velados no negócio do racismo e da islamofobia. Longe de ser uma conduta de poucos marginalizados, revelou-se que os patronos dessa indústria abarcam uma ampla rede de políticos, magnatas, líderes religiosos e figuras do establishment de segurança.
Embora o ódio aos muçulmanos certamente não tenha sido inaugurado com o então presidente Donald Trump, o documentário demonstra que, sob sua administração, o racismo anti-islâmico decolou. Questionados por que não há lugar para muçulmanos nos Estados Unidos, muitos dos entrevistados foram diretos: “Porque assim pensa o nosso presidente”
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O elo entre as injúrias raciais de Trump, de maneira geral, e a islamofobia é tão nítido quanto perturbador. No início de 2018, durante uma reunião com parlamentares que propunham pautas de proteção a imigrantes de El Salvador, Haiti e países africanos, Trump retrucou: “Porque é que ainda recebemos todas essas pessoas desses países de merda?”
Ainda hoje, seus apoiadores e admiradores vomitam a mesma retórica asquerosa, ao alegar que os muçulmanos têm de voltar à “caixinha de areia” de onde saíram.
A consequência inevitável desse ódio inspirado pela oficialidade no país é uma onda de ataques hediondos contra muçulmanos, mesquitas e negócios. A recusa de Trump em condenar um ataque a uma mesquita de Bloomington, no estado de Minnesota, por exemplo, em agosto de 2017, já sugeria a perigosa trajetória traçada pela nação. De maneira bizarra, um porta-voz da Casa Branca, sob a gestão de Trump, chegou a afirmar que o ataque poderia ter sido encenado para ganhar simpatia.
Para aqueles com memória curta, o documentário recorda o tratamento revoltante estendido aos pais do capitão muçulmano americano Humayun Khan, que faleceu no Iraque em 2004. Khizr Khan, imigrante paquistanês e pai do soldado abatido, viu-se forçado a reagir a Trump quando este propôs proibir os muçulmanos de entrarem no país, em dezembro de 2015.
Ao falar na Convenção do Partido Democrata realizada em julho de 2016, quando foi nomeada Hillary Clinton como candidata à presidência, Khan retirou do bolso de sua jaqueta uma cópia da Constituição americana, ao sugerir a leitura a Donald Trump. O pai do soldado instou o então presidenciável a visitar o cemitério de Arlington, onde veteranos de “todas as fés, gêneros e etnias” estão sepultados.
Trump retrucou com sua costumeira condescendência, ao atacar Ghazala, esposa de Khan e mãe do soldado morto: “Olha para ela … ela não tem nada a dizer. Ou talvez não recebeu permissão para falar alguma coisa”. A insinuação remete ao racismo de pensar que todas as mulheres muçulmanas sejam oprimidas.
Islamofobia S.A. explora muito mais do que o ódio grosseiro, ao ponderar ao máximo sobre os medos infundados e a ignorância; sobre a política do pânico e conspirações de que os muçulmanos planejam tomar a América e impor sua shariah à população. Não surpreende que nenhum dos entrevistados tenha qualquer evidência ou fonte para os seus receios
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Um dos aspectos mais surpreendentes desta produção gira em torno da Irmandade Muçulmana. Uma e outra vez, os entrevistados apelam à teoria conspiratória de que a Irmandade Muçulmana seja o cérebro por trás de um plano sinistro para subjugar os Estados Unidos, desde dentro de suas escolas, igrejas e instituições civis.
Lamentavelmente, essa orquestrada campanha de difamação pode ser rastreada até o Egito e outros países do Oriente Médio, onde ditaduras financiadas pelos Estados Unidos perseguem a Irmandade e lhes negam os direitos políticos.
Contudo, a verdadeira e maior vítima do ódio americano contra os muçulmanos é a própria democracia. Assim como o pânico criado pelo macartismo nos anos de 1950, sobre supostos comunistas “infiltrados” na vida política, a retórica se repete hoje em torno dos muçulmanos, difamados, vigiados e perseguidos dia após dia.
Diferente dos porta-vozes da islamofobia, o documentário da Al Jazeera não apela a generalizações ou indivíduos ficcionais, mas sim identifica nomes e instituições que financiam a indústria do ódio. Os rastros chegam a influentes políticos do Capitólio e da Casa Branca, como o próprio Trump e seu então assessor de Segurança Nacional, John Bolton. Outra figura exposta é Frank Gaffney, então presidente do Centro para Segurança Política e ex-assessor da gestão de Ronald Reagan, um dos mais influentes e longínquos islamofóbicos de Washington.
Há também o chamado ACT for America, liderado por Brigitte Gabriel, como uma das maiores organizações de ódio aos muçulmanos ativa no país. Ao se disfarçar de ente patriota, voltado à segurança nacional, a organização se expõe, mediante evidências compiladas nesta produção da Al Jazeera, como responsável por encorajar ações de vigilantismo e táticas de linchamento contra populações-alvo.
A Al Jazeera confirmou ainda o envolvimento de organizações judaicas — religiosas e seculares, de caráter colonial sionista — envolvidas no financiamento da milionária indústria da islamofobia. Sua prerrogativa é manter árabes e muçulmanos bem longe da política mainstream, para impedir qualquer mudança de abordagem dos Estados Unidos na questão palestina.
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Vale notar que nenhum dos líderes dessas organizações teve coragem intelectual ou moral de serem entrevistados pela Al Jazeera.
A investigação histórica expôs os principais proponentes da Islamofobia nos Estados Unidos, assim como seu modus operandi e seu impacto tóxico em toda a sociedade americana.
A conclusão, de um modo deveras abrangente, é que islamofóbicos e racistas traem os próprios valores de liberdade, igualdade e justiça que dizem louvar por meio dos supostos princípios fundadores dos Estados Unidos. Motivados por ódio, preconceito e falta de visão, escolheram, em seu lugar, investir novamente na discriminação.
Quando a história alcançar seu juízo e, por fim, veredito sobre os danos deflagrados pela indústria da islamofobia na América, este documentário será testemunha.