Internet for Trust, regulamentação ou censura

Na semana de 21-23 de fevereiro, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, Unesco, realizou a Primeira Conferência Global “Internet for Trust”, ou “Por uma Internet Confiável”. Realizado em Paris, o evento contou com mais de 4 mil representantes de governos, órgãos regulatórios, empresas digitais, universidades e membros da sociedade civil, para discutir um “conjunto de rascunhos de diretrizes globais para a regulamentação de plataformas digitais” no intuito de “melhorar a confiabilidade da informação e proteger a liberdade de expressão e os direitos humanos”. O evento causou polêmica no Brasil, gerando a mesma desinformação, discurso de ódio e teorias da conspiração que a Conferência pretende combater.

Uma das pautas da Conferência diz respeito ao direito à intimidade e privacidade (art.12 Declaração Universal dos Direitos Humanos) na internet. É fato que milhões de dados pessoais de usuários da internet são coletados por empresas privadas e vendidas para quem pagar mais. A desculpa para essa prática de espionagem é sempre a mesma, a segurança. Por incrível que pareça, ainda existe quem se sinta seguro por estar sendo vigiado; o clássico “quem não deve, não teme”. No entanto, esta prática está longe de ser usada contra “terroristas” ou a propósito de segurança.

Em 2018, o jornalista Jamal Khashoggi, entrou no consulado da Arábia Saudita na Turquia e nunca mais saiu. Como um dos mais famosos correspondentes árabes, ficou conhecido por críticas às políticas dos governos do Reino da Arábia Saudita, EUA e Israel. O jornalista foi assassinado e teve o corpo esquartejado. Após investigação, foi descoberto que o celular da esposa de Jamal Khashoggi havia sido alvo do software espião PEGASUS; produzido pela empresa israelense NSO Group e vendido para o Reino da Arábia Saudita.

Cerimônia em memória do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no terceiro aniversário de seu assassinato – dentro do consulado da monarquia em Istambul –, em frente ao Congresso dos Estados Unidos, na cidade de Washington, em 2 de outubro de 2021 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]

A organização Forbidden Stories em parceria com o Laboratório de Segurança do Anistia Internacional e ainda outras 17 organizações de mídia (em dez países), montaram uma força tarefa para descobrir as consequências causadas pelo spyware israelense. A investigação levou a uma lista de países que compraram o Pegasus, dentre eles, Bahrein, Togo, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Hungria, México, Índia, Ruanda, Azerbaijão e Cazaquistão, alguns dos quais, com longos históricos de violação dos direitos humanos. A NSO respondeu que o Pegasus só era vendido para agências de segurança governamentais que passassem por avaliação primaria do governo de Israel, e que o software foi criado para ajudar agências governamentais a prevenir e investigar crimes como tráfico de drogas e pessoas, redes de pedofilia e principalmente, salvar milhares de vidas contra atentados terroristas.

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A investigação identificou mais de 50 mil smartphones  “terroristas” infectados, em 45 países diferentes. Dentre os nomes mais conhecidos estavam Imran Khan, Cyril Ramaphosa, Pedro Sánchez e Emmanuel Macron, respectivos chefes de estado do Paquistão, África do Sul, Espanha e França. Entre outros na mira, estavam executivos financeiros, líderes religiosos, acadêmicos, ativistas pelos direitos humanos, sindicalistas, funcionários públicos, advogados e parentes de chefes de Estado.

Spyware israelense Pegasus é utilizado para silenciar críticos? [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Também chamou a atenção da investigação, o fato de mais de 180 “terroristas” operando em células da CNN, The New York Times, Bloomberg, Le Monde, El País, Wall Street Journal, CNN, New York Times, Al Jazeera, France 24, Radio Free Europe, Mediapart, Associated Press, Agence France-Presse, The Economist, Reuters, The Wire e Voice of America. Dentre os espionados, Jamal Khashoggi, o jornalista assassinado no consulado saudita na Turquia, que infelizmente não foi a única vítima da “segurança da espionagem”.

Diferente de violação de privacidade, as diretrizes de regulamentação abordados na Conferência da Unesco buscam um diálogo global para desenvolver as primeiras medidas internacionais para evitar o uso criminoso de coleta e distribuição de dados pessoais. Impossibilitando que mais jornalistas, ou verdadeiros defensores dos direitos humanos sejam perseguidos e assassinados. Também evita que campanhas de ódio e desinformação sejam propagadas por empresas privadas com interesses financeiros em resultados eleitorais.

Guilherme Canela, chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco, explicou à ONU News, de Paris, os objetivos do evento, o tamanho do desafio, e como enfrentá-los.

“A gente tem um desafio enorme, que é o seguinte: tem um certo consenso em relação ao problema, nós precisamos enfrentá-lo. Mas não há consenso em relação a como enfrentar. Por isso, a Unesco chamou esse debate global com todos esses atores para apresentar uma proposta rascunho, uma proposta em elaboração. Comentem como é que efetivamente a gente pode fazer isso. Continuar desenvolvendo as oportunidades, mitigar os riscos e fazer procuração de justiça para esses danos ao mesmo tempo em que a gente protege a liberdade de expressão” Guilherme Canela

Infelizmente, o imaginário popular para a palavra “regulamentação”, já foi deturpado por agentes causadores de má-fé, ao qual conhecem bem o termo. Muitos usaram de seus próprios canais para criticar a possível regulamentação “internacional” da internet e das redes sociais, alegando violação da liberdade de opinião e expressão (art.19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

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“A extrema direita está tentando criar um tom pejorativo para o termo regulamentação. Eles acham que regulamentar significa proibir, significa censurar. Não é nada disso. A Constituição é uma espécie de regulamentação. Você cria uma série de regras que vão ter suas responsabilidades, seus direitos, seus deveres.” Felipe Neto

[Latuff]

A liberdade de expressão já está em jogo, a pergunta é: — A mando de quem? Em 2023 o Sindicato de Jornalistas Palestinos denunciou que empresas e redes sociais estavam fechando contas de jornalistas palestinos que as usam para denunciar os crimes do apartheid sionista. As investigações constataram que as restrições impostas pela empresa que gerencia o Facebook e o Instagram, a “META”, tiveram um impacto negativo e significativo nos direitos dos palestinos de se expressarem livremente, bem como em seus direitos à assembleia, à participação política e ao seu direito de partilhar informações e ideias.

A regulamentação da internet não é um assunto novo no Brasil. Em 2021, houve uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados para discutir o assunto. Deputados brasileiros da direita golpista se manifestaram contra a possibilidade de o Ministério do Turismo editar decreto regulando a moderação de conteúdo em plataformas digitais. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) — aquela conhecida por disseminação de “desinformação” sobre o processo eleitoral brasileiro, medicamento ineficaz contra covid-19, dentre outros — foi a primeira a se manifestar contra uma regulamentação de postagens em mídias sociais. Segundo a deputada, 19 de seus vídeos foram retirados do Facebook, “Não tinha nenhum tipo de crime, era só uma opinião” disse ela. É compreensível porque Carla Zambelli teme uma regulamentação, pois seu conceito de liberdade de opinião e expressão não considera os direitos humanos de terceiros. — Também, o que esperar de alguém que sem nenhum motivo, corre apontando uma arma para um homem negro?

No discurso de abertura do evento, Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, disse que a fronteira entre o verdadeiro e o falso está cada vez mais imperceptível, com a negação dos fatos científicos, a amplificação da desinformação e das conspirações. Afirmou que embora a desinformação não tenha começado nas redes-sociais, a ausência de regulamentação faz com que ela ganhe mais espaço que a verdade. A conferência realizada foi uma resposta a um pedido global de ação do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para abordar a disseminação da desinformação e a negação de fatos estabelecidos cientificamente, que representam “um risco existencial para a humanidade”; como os propagados pelo conhecido “gabinete do ódio” do clã Bolsonaro, Zambelli e outros apoiadores.

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No mundo todo, a desinformação e o discurso de ódio, se tornaram cada vez mais comuns nos últimos anos. A jornalista filipino-americana Maria Ressa, também palestrante durante a Conferência, destacou que“as mentiras se espalham mais rápido que os fatos” e que com adição de medo, raiva, ódio e tribalismo elas se espalham “como jogar um fósforo aceso em gravetos”. Ressa advertiu que não podemos mais tolerar algoritmos de mídias sociais que recompensam mentiras. Maria Ressa foi vencedora do prêmio Nobel da Paz de 2021, na qual foi elogiada “por seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, que é uma pré-condição para a democracia e uma paz duradoura”.

O presidente Luiz Inácio Lula, embora não tenha participado da Conferência, enviou uma carta, lida em inglês por João Brant, secretário de Políticas Digitais do governo.

“Precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação.” presidente Lula

O presidente Lula exortou a comunidade internacional a agir “agora” contra as campanhas de ódio on-line. Ele fez alusão ao violento ataque ocorrido em 8 de janeiro em Brasília, quando milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. “O que ocorreu naquele dia foi o ápice de uma campanha, iniciada muito antes, que usava, como munição, a mentira e a desinformação” e que tinha como alvos “a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras”.

Bolsonaristas invadem e vandalizam a Sede dos Três Poderes, em Brasília, Distrito Federal, 8 de janeiro de 2023 [Reprodução/MEMO]

De fato, a internet revolucionou os meios de comunicação, além de ter se tornado a maior fonte de difusão de conhecimento. Porém, também é fato que ela também serviu como agente nocivo; capaz de modelar a opinião pública de acordo com interesses financeiros. Neste momento, muitos países estão trabalhando em leis para regulamentação da internet e das redes sociais, nem todas com o intuito de conter os agentes nocivos, desta maneira, é preciso que órgãos de responsabilidade, como a agência da ONU para comunicação e informação, guiem essa discussão e definam diretrizes comuns, afim de que os direitos humanos, como à liberdade de opinião e expressão sejam garantidos sem que se tornem ferramentas de censura.

Talvez a regulamentação da internet e redes sociais seja o verdadeiro “quem não deve, não teme”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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