Portuguese / English

Middle East Near You

A explosão da violência contra jornalistas palestinos

Entrevista com Musa Alshaer, membro da secretaria geral do sindicato da categoria
Musa Alshaer, membro da Secretaria Geral do Sindicato dos Jornalistas Palestinos (SJP) [Cortesia/Arquivo pessoal]

O ano de 2022 representou números alarmantes no quesito crimes e violações cometidos contra os jornalistas palestinos, com mais de 900 violações registradas pelo Sindicato de Jornalistas Palestinos (SJP) apresentados em sua Conferência de janeiro, em Ramallah.

Sobre essas violações, MEMO entrevista o dirigente sindical Musa Alshaer, membro da secretaria geral da entidade. Ele  começou no jornalismo em 1982, escrevendo para o jornal Al-Farj, em Jerusalém. Em pouco tempo de profissão foi preso pelas Forças de Ocupação Israelense (IOF, na sigla usual em inglês). Foi liberto pouco antes do início da Primeira Intifada (1987 – 1993). Trabalhou em diversas empresas, dentre elas Vice News e Reuters. Em 2010, Musa Alshaer foi eleito como membro executivo do sindicato.

Quando esses crimes contra jornalistas se iniciaram?

Desde a autoproclamação do Estado de Israel, porém, as violações se intensificaram em 1967. Israel começou a violar a liberdade de opinião e expressão com a intenção de manter uma única narrativa para história da ocupação. De 1967 até hoje (2023), 106 jornalistas palestinos foram mortos. Durante a Primeira Intifada, tínhamos que esconder nossa profissão. Os soldados israelenses roubavam nossas imagens e destruíam nossos equipamentos.

Do ano 2000 até agora, já foram 66 mártires, indicando um aumento significativo. Os números de violações contra os jornalistas sobem quantitativa e qualitativamente conforme outras violações cometidas por Israel. Quanto mais os jornalistas tentavam mostrar o que estava acontecendo na Guerra de 1967, Primeira e Segunda Intifada, Grande Marcha do Retorno (2018) e outros marcos, mais os jornalistas eram violados pelas IOF. Só no ano passado, o Sindicato acompanhou mais de 900 violações contra jornalistas, a estimativa é que este número aumente este ano.

Como é feito o trabalho do SJP e como são reportadas as violações contra os jornalistas?

Todas as violações contra os jornalistas palestinos são acompanhadas e investigadas pelo sindicato em parceria com outras organizações de defesa dos Direitos Humanos. Publicamos diversos relatórios sobre o acompanhamento dos casos e anualmente divulgamos outro com as conclusões e os dados do período. Realizamos conferências para apresentação detalhada sobre as violações cometidas pela ocupação israelense e as medidas que devemos seguir. Desta maneira, o SJP reafirma seu compromisso em continuar defendendo e protegendo os direitos dos jornalistas palestinos, mesmo que sob ocupação e da melhor maneira possível.

Conferência do Sindicato dos Jornalistas Palestinos, em Ramallah, Cisjordânia ocupada, 29 de janeiro de 2023 [Lucas Siqueira/MEMO]

Desde 2008, um lobby da mídia pró-israelense denominado “Camera” coordena esforços para reeditar histórias na Wikipédia e outras enciclopédias digitais de maneira que sirvam aos interesses de Israel. Mesmo o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett ajudou a organizar um curso de “edição sionista” da Wikipédia. Qual a relevância de todo esse esforço israelense?  

Israel está reformando sua história nas mídias sociais e enciclopédias on-line como a Wikipedia. O Estado de Israel possui um grande investimento na Wikipédia para acadêmicos reescreverem a história palestina de acordo com uma narrativa que favoreça Israel. Isso é feito com nomes de locais, roupas típicas, na gastronomia, como o homus, falafel e outro. Tudo que é cultura da Palestina, eles se apropriam na tentativa de apagar nossa história.

LEIA: Eu, como palestina, resisto e não podem me colonizar. Jovens israelenses não conseguem ver que estão sendo colonizados” – Entrevista com Janna Jihad, a mais jovem repórter da vida sob ocupação

O que me chamou a atenção nos últimos relatórios do SJP foram as denúncias do que  foi chamado de “A conspiração das plataformas de mídia social com o regime de ocupação israelense contra o conteúdo palestino”. Indica que muitas plataformas digitais, em especial o “Facebook”, propriedade da empresa “Meta”, compactuam das violações e ainda boicotam os jornalistas. Outra denúncia recorrente é que o Estado de Israel financia influenciadores digitais brasileiros para visitar e publicar vídeos e fotos sobre Israel, de modo a dar maior visibilidade à narrativa sionista. Nos anos de 2021 e 2022, quando comecei a reportar as violações na Palestina, mais de uma vez tive meu perfil no Instagram denunciado por “conteúdo inapropriado”, em especial, ao denunciar o assassinato do mártir palestino Ibrahim al-Nabulsi. Até onde vai o alcance na violação dos direitos digitais de profissionais que denunciam os crimes do Estado de Israel?

Nós já identificamos e divulgamos que Israel não só financia influenciadores digitais estrangeiros para enfeitar sua história, como também ataca as redes sociais de jornalistas palestinos. Em várias ocasiões, como na Grande Marcha do Retorno (2018) ou nos ataques em 2021 e 2022 à Faixa de Gaza, Nablus e ao bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, centenas de perfis de jornalistas no Facebook, Instagram, Twitter, TikTok e Zoom foram bloqueadas ou excluídas.

Referente ao ano de 2022, mais de 1.200 violações foram monitoradas no contexto de segmentação de conteúdo palestino. (Relatório do SJP apresentado em 2023).

Nos ataques mais recentes, até mesmo as contas pessoais de jornalistas foram bloqueadas no Whatsapp, para que não fossem transmitidas para o mundo as agressões que os palestinos estavam sofrendo. Nestas mesmas agressões de 2022, mais de cem sites foram fechados para impedir o vazamento das agressões. Mesmo contas de jornalistas estrangeiros foram denunciadas, suspensas ou tiveram seus conteúdos bloqueados, por uma ou duas semanas; tempo necessário para que Israel pudesse concluir os crimes que queria.

O comportamento do Facebook no fechamento de contas palestinas não surpreendeu, pois a empresa abriu sua primeira sede nos territórios ocupados em 2012, quando comprou a empresa israelense “Onavo”, especializada em tecnologia da informação e ciências da comunicação, e fez dela sua sede. Também adquiriu várias startups “israelenses”, incluindo “Snap Two” e “Facecom”, com um valor variando entre $ 120-130 milhões. Especialistas apontaram que há uma razão lucrativa para o site adotar histórias israelenses, já que o Facebook obtém US$ 300 milhões de anúncios israelenses, de acordo com a última contagem, enquanto obtém muito menos do que essa quantia do mercado palestino. (Relatório do SJP apresentado em 2023).

Em junho de 2022, o palestino Nasser Abu Bakr, diretor do Sindicato de Jornalistas Palestinos (SJP), foi eleito vice-presidente da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ). O que essa eleição representa para os palestinos?

O SJP já fazia parte da Federação Internacional de Jornalismo (FIJ). A eleição de Nasser Abu Bakr veio com o culminar dos esforços conjuntos do SJP com a do secretário-geral. A vitória de Bakr é muito positiva para nós profissionais palestinos, pois indica o apoio de jornalistas do mundo inteiro, bem como dá força para as denúncias dos crimes da ocupação. Em abril de 2022, o SJP, com apoio do IFJ, apresentou uma nova documentação sobre os assassinatos sistemáticos dos jornalista Yasser Murtaja, Ahmed Abu Hussein e Shireen Abu Akleh no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. Com o apoio do vice-presidente, que é palestino, participamos de sessões especiais da investigação conduzida pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra; agora acreditamos que teremos mais força na apresentação dessas denúncias.

LEIA: Todos ainda somos Muath! Entrevista com o repórter fotográfico que, em 2019, perdeu um olho por disparo de soldado israelense

Como funciona a violação contra os veículos de imprensa ou organizações de defesa dos direitos humanos que operam na Palestina e nos Territórios Palestinos Ocupados?

Nos últimos anos, o Estado de Israel se tornou mais agressivo contra os jornalistas palestinos. Em 2020, o prédio que sediava os escritórios da  Associated Press e da Al-Jazeera foram bombardeados na Faixa de Gaza. Em 2022, soldados israelenses invadiram outras organizações de defesa dos Direitos Humanos como Defense for Children International Palestine (DCIP), Palestinian Centre for Human Rights (PCHR) e Addameer fechando e selando suas portas, mesmo estando estas em Território (A), ao qual corresponde exclusivamente a Autoridade Palestina. O governo israelense, além de bombardear e fechar algumas dessas instituições, como a PCHR, declaram-nas como organizações terroristas, o que impede que essas organizações e esses profissionais que trabalham para denunciar violações dos Direitos Humanos e Crimes Internacionais recebam apoio financeiro internacional. Depois que Israel soldou as portas das organizações, determinou que seus diretores que voltassem a operar seriam declarados terroristas.

Israel recusa-se a investigar assassinato de jornalistas [Sabaaneh/MEMO]

Durante a pandemia da covid-19, como foi o apoio aos jornalistas palestinos?

Em 2020, durante o pior momento da pandemia, as violações contra os jornalistas pioraram, principalmente aqueles que reportaram as expulsões em Sheikh Jarrah. A pandemia não impediu o Estado de Israel de expulsar pessoas de suas casas, assim como não impediu que os jornalistas que acompanhavam os casos fossem agredidos ou presos com seus equipamentos de trabalho. O que houve durante a pandemia foi uma diminuição das manifestações palestinas, consequentemente, diminuição nas violações contra os jornalistas, mas de qualquer maneira esses profissionais continuaram a ter seus direitos e liberdades violadas.

Quando entrevistei Adham Al-Hajjar, jornalista baleado durante a Grande Marcha do retorno, ele falou sobre a diferença na violação contra jornalistas palestinos e jornalistas estrangeiros. Realmente essa diferenciação existe?

Vários jornalistas estrangeiros foram assassinados por soldados israelenses enquanto reportavam ou registravam os crimes da ocupação. No entanto, quando o soldado israelense encontra um jornalista estrangeiro, ele conta até dez antes de atirar; quando o jornalista é palestino, o soldado nem pensa para puxar o gatilho. De qualquer forma, as violações ocorrem contra ambos, mas os soldados sabem que quando matam um jornalista estrangeiro, seu governo vai querer saber e abrir uma investigação, mas quando um jornalista palestino é assassinado, não existe a mesma pressão internacional.

Musa Alshaer, Lucas Siqueira e Diana Emídio. Bethlehem, janeiro de 2023

Existe repressão contra jornalistas palestinos por parte da Autoridade Palestina, ou mesmo do Hamas na Faixa de Gaza? 

Na Faixa de Gaza, existe um bloqueio um pouco maior devido às aspirações religiosas do partido, o que não quer dizer que seja algo normal no território. Na Cisjordânia, também há alguns bloqueios contra os profissionais, mas nada que se compare às violações cometidas por Israel. Em ambos, Faixa de Gaza e Cisjordânia, quando um jornalista é reprimido de alguma forma, é iniciado uma investigação e o profissional é geralmente liberado em seguida. A diferença entre as violações cometidas pelo Estado de Israel, como Murtaja, Shireen e outros, são violações premeditadas. Se não fossem, o colega que tentou retirar o corpo de Shireen não teria sido ameaçado por balas.

Adham Al-Hajjar, quatro anos de espera – Entrevista com o jornalista palestino baleado com balas expansivas durante a Marcha do Retorno

Após entrevistar vários jornalistas palestinos baleados ou agredidos, uma das perguntas principais foi se se sentiam mais protegidos ou vulneráveis ao usar o colete a prova de balas e o capacete com a inscrição “PRESS”. O que você acha sobre?

Quando um jornalista veste o equipamento de proteção, ele se identifica como profissional. De alguma maneira, ele se sente mais seguro. Porém, os soldados israelenses não estão preocupados se você está vestindo um colete de imprensa ou um colete da Cruz Vermelha. Reportar, filmar, fotografar, de qualquer forma, te torna um alvo das balas israelenses.

Em entrevista, o jornalista Attiya Darwish me disse que quando foi atingido por uma bomba de gás direta no rosto, durante a Grande Marcha de Retorno, usava o equipamento de proteção emprestado de um amigo. Existe alguma restrição de entrada desses equipamentos na Faixa de Gaza e Cisjordânia?

Sim, atualmente. Órgãos das Nações Unidas e outras organizações de defesa dos Direitos Humanos doaram equipamentos de proteção para jornalistas na Faixa de Gaza, mas esses equipamentos estão parados no Egito. O Estado de Israel que controla o que entra e o que saí de Gaza não permite que este equipamento entre, eles alegam serem equipamentos para combatentes.

Além das publicações no MEMO, como nós, jornalistas brasileiros, podemos contribuir com nossos colegas palestinos para denunciar e reportar as violações cometidas pelo Estado de Israel?

Existem muitas fontes locais na Palestina, como as agências Wafa e Jerusalém 24, que noticiam diariamente as denúncias e crimes cometidos. Outra maneira é o que organizações como a FEPAL têm feito, traduzindo de maneira espontânea relatório do sindicato e de outras organizações.

A entrevista com Musa Alshaer, foi realizado em duas etapas, sendo a primeira no último semestre de 2022 e a segunda em janeiro de 2023, durante a semana da Conferência do SJP, em Ramallah. 

Tradução: Jehad Khamis Mohamed Afaghani / Khaled Mohammad Hussein Mohd Abdel Latif

 

Categorias
EntrevistasIsraelOriente MédioPalestina
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments