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Um ensaio sobre a cegueira cúmplice dos crimes contra palestinos e indígenas brasileiros

Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva visita Terra Indígena Yanomami junto de ministros, incluindo Sônia Guajajara, da pasta dos Povos Originários, em Roraima, 21 de janeiro de 2023 [Ricardo Stuckert/PR]

“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” A frase extraída do belíssimo livro “Ensaio sobre a cegueira”, do escritor português José Saramago, não poderia definir melhor a cumplicidade internacional perante os crimes contra a humanidade que vieram à tona nesta semana: mais um massacre de palestinos em Jenin pelas forças de ocupação israelenses e o genocídio de indígenas no Brasil – seja pela fome, como mostram as cenas dramáticas de yanomamis, seja pelo assassinato em invasões de suas terras por garimpeiros, milicianos e latifundiários.

Embora só tenham ganho visibilidade agora – com a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado da ministra dos Povos Originários, Sônia Guajajara, e outros oficiais à Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, no último dia 21 de janeiro –, as denúncias da grave situação por que passam os indígenas não são de hoje. Segundo a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a resistência à invasão de garimpeiros remete à criação da TI em 1991, com respostas intermitentes e ineficazes do Estado brasileiro ao longo dos anos, embora tenha sido intensificada sob o genocida Jair Bolsonaro.

Brasil terra indígena [Latuff]

Denúncias recentes incluíam, conforme a entidade, esses ataques, bem como “a contaminação por mercúrio, a desestruturação dos serviços de saúde, o aumento de violência nas comunidades, as violações sexuais, a fome e a desnutrição, o aumento exponencial dos casos de malária, situações nas quais mulheres, idosos, idosas e crianças são as mais vulnerabilizadas”. Nos últimos anos, tais denúncias foram encaminhadas diversas vezes a organismos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Comissão Interamericana de Direitos e a Organização das Nações Unidas (ONU). Bolsonaro e seus asseclas aprofundaram a agenda anti-indígena, desmontaram órgãos de proteção e fiscalização e garantiram que se cumprisse o que seu ministro Ricardo Salles propunha: “passar a boiada”, às custas de vidas indígenas e destruição do meio ambiente.

Cegos, que “vendo, não veem”, agora expressam sua hipócrita solidariedade. Caso do governo dos Estados Unidos de Joe Biden, que afirmou estar muito preocupado com a situação humanitária dos yanomamis e pronto para ajudar. Trata-se do mesmo imperialismo que quer manter o Brasil subserviente e que destina bilhões de dólares anualmente a “Israel” para o desenvolvimento de suas tecnologias militares, de modo a seguir com seus crimes contra a humanidade.

Fome e insegurança alimentar que atingem mais da metade da população de 2 milhões de habitantes de Gaza, degradação do meio ambiente, destruição da infraestrutura, inclusive de saúde, e ausência de qualquer direito são também parte da realidade palestina, em meio à contínua Nakba – catástrofe desde a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948, mediante limpeza étnica planejada.

A matança na Palestina

Enquanto isso, nove palestinos foram assassinados neste 26 de janeiro no campo de refugiados de Jenin, incluindo uma mulher de 60 anos, e 20 ficaram feridos, pelo menos quatro gravemente, durante uma invasão brutal das forças de ocupação sionista. Ambulâncias e paramédicos não conseguiram garantir os primeiros-socorros devido à restrição de acesso pelos mesmos que promoveram a matança, que disparavam tiros de advertência e impediam a aproximação. O Hospital Público de Jenin foi invadido pelas forças de ocupação, que, segundo relatos, atiraram bombas de gás lacrimogêneo na ala pediátrica.

Ao portal Middle East Eye, Anas Huwaisheh, correspondente palestina de um canal local em Jenin, afirmou que as cenas que assistiu o lembraram do massacre de Jenin em 2002, durante a Segunda Intifada – levante popular palestino iniciado em 28 de setembro de 2000, após provocação do carniceiro sionista Ariel Sharon ao invadir a Esplanada das Mesquitas, o qual durou até fevereiro de 2005. “Os sons de balas e tiroteios eram intensos e nuvens de fumaça cobriam o céu. A ocupação israelense cortou a eletricidade, a internet e a rede de telefonia celular durante o ataque. Isso mostra que foi planejado”, destacou Huwaisheh.

Na noite anterior, outro palestino foi assassinado na aldeia de al-Ram, próxima a Jerusalém. A matança é diária, mas os cegos, “vendo, não veem”. Somente em 2022 foram mais de 220 assassinados na Palestina ocupada, entre os quais 53 crianças. Apenas neste mês de janeiro, notícias informam que já são 29, incluindo cinco crianças.

O atual governo brasileiro assume, obviamente, postura distinta do genocida Bolsonaro, aliado explícito do sionismo na cadeira do Planalto. De pária e apoiador declarado da barbárie colonial durante os últimos tenebrosos quatro anos, retoma agora a postura tradicional de sua diplomacia – a qual, no entanto, deveria evoluir. Nessa linha, demonstra estar longe de expressar, em ações e mesmo posicionamento, a solidariedade necessária – o que a cada dia se apresenta como questão de vida ou morte.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou nota à imprensa expressando “condolências aos familiares das vítimas” e manifestando “sua solidariedade ao povo e ao governo da Palestina”. Parte, contudo, de uma visão que carece de conhecimento histórico e compreensão, portanto, da realidade da brutal colonização e limpeza étnica israelenses em curso há mais de 75 anos.

LEIA: Terror em Gaza é face explícita da contínua limpeza étnica na Palestina

A primeira demonstração disso, a se indignar, é denominar as forças de ocupação como “de segurança” ou “defesa”. Isso alimenta a representação sionista de que estão se defendendo ou que se trata de confronto, como os meios de comunicação de massa se apressaram em noticiar sobre Jenin. Israel ocupa violentamente as terras palestinas, é o agressor. Os palestinos são o povo oprimido.

A outra observação é que o governo brasileiro insiste na injusta desde sempre e já morta “solução de dois estados”, responsabilizando “ambas as partes a se absterem de ações que afetem a confiança mútua necessária à retomada urgente do diálogo com vistas a uma solução negociada do conflito”.

Trata-se de massacre, não conflito. É preciso usar as palavras devidas em uma nota que pretende expressar solidariedade, a qual teria que se desdobrar em iniciativas efetivas, quais sejam: reconhecer o apartheid e a colonização sionistas – e, ao encontro disso, suspender os acordos com Israel. De imediato, anunciar embargo militar, algo vital, inclusive para garantir que não mais as armas que matam palestinos e palestinas sejam utilizadas também ao extermínio indígena. A proteção às etnias passa também por essa ação internacional.

Já é a segunda nota do governo brasileiro, sob a liderança de Lula, expressando preocupação com a situação na Palestina ocupada. Quantos mais terão que morrer para que essa preocupação se materialize em finalmente colocar à mesa as demandas apresentadas ainda durante os trabalhos dos grupos de transição por organizações da comunidade palestina no Brasil e solidárias? Essa é a pergunta que não quer calar.

A resposta deve ser mobilização e pressão, via unidade da classe trabalhadora, explorados e oprimidos. Pelo fim do genocídio e em defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil e dos palestinos as suas terras históricas, povos que existem porque resistem.

LEIA: Do golpismo no Brasil aos crimes contra a humanidade na Palestina ocupada

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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