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O retorno à tradição diplomática brasileira e a questão palestina

Em primeiro plano, novo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, ao lado da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e do ex-chanceler Celso Amorim, durante cerimônia de posse no Itamaraty, em Brasília (DF), 2 de janeiro de 2023 [Reprodução/Ministério das Relações Exteriores do Brasil]

Após os últimos quatro anos de obscurantismo que empurravam o país para a condição de pária internacional, o Brasil começa a ver expressões do retorno à sua tradição diplomática, que se caracteriza – como já amplamente afirmado por seus representantes –, por pragmatismo, busca de soluções negociadas, equilíbrio e harmonia institucional. Isso começa a ser percebido também em relação à questão palestina.

Bolsonaro e suas ideologias [Latuff]

A despeito do alívio expresso e justificável por parte da comunidade árabe-palestina em ver finalmente alguma condenação à ocupação e se ver livre do abominável alinhamento absoluto com o Estado colonial de Israel no período bolsonarista – permeado por forte propaganda ideológica pró-sionismo –, a posição tradicional precisa avançar e reconhecer de que se trata de um regime institucionalizado de apartheid.

No último dia 3 de janeiro, uma nota oficial à imprensa, disponível na página do Ministério das Relações Exteriores, demonstra a retomada da tradição diplomática. No texto, o Brasil expressa “grande preocupação” com “a incursão do Ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, na Esplanada das Mesquitas (‘Haram-El-Sharif’), em Jerusalém”, na manhã do mesmo dia.

Ben-Gvir, que mora no assentamento ilegal de Kiryat Arba, na cidade palestina de Al-Khalil (Hebron), é a representação explícita do projeto colonial sionista. Não é a primeira incursão à Esplanada das Mesquitas. No ano passado, como denuncia reportagem do Middle East Eye de 2 de novembro de 2022, Bem-Gvir liderou invasões de colonos no complexo de Al-Aqsa, mudou seu escritório parlamentar para um pátio próximo a uma casa palestina – cujos moradores estão ameaçados de expulsão por colonos – e chegou a chamar o jornal israelense Haaretz de “jornal do Hamas”, expressando seu radicalismo da extrema-direita, sem pudores em expor a cara feia do projeto colonial sionista. Figuras como Ben-Gvir são a representação sem máscaras da defesa da absoluta limpeza étnica, que encontra eco na palavra de ordem “Morte aos árabes”.

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A nova incursão à Esplanada das Mesquitas, agora como ministro, levou o Itamaraty a afirmar-se “profundamente alarmado”. Repercutindo em manchetes nos principais meios de comunicação de massa do país, as críticas foram reiteradas pela diplomacia brasileira no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), no último dia 5, em seu primeiro posicionamento após a posse do novo governo Lula.

Sob o Direito Internacional, a manifestação reivindica acordos prévios, sobretudo em relação ao status da Esplanada das Mesquitas, sob “custódia” hashemita. Obviamente não há comparação com o genocida, racista e xenofóbico Bolsonaro. O Brasil volta a se alinhar com o “padrão duplo”, nas palavras da colunista Ramona Wadi, das posições internacionais em relação à questão palestina.

Em linha com a propaganda ideológica pró-sionista que caracterizou os últimos quatro anos, o deputado Eduardo Bolsonaro reivindicou no Twitter, em 4 de janeiro o legado de seu pai de aliança incondicional a Israel e contrainformação, postando imagem de reportagem com a seguinte manchete: “Em primeira mudança, governo Lula critica Israel e rompe política bolsonarista.” Jogando para a claque bolsonarista neopentecostal, comentou: “Parabéns a todos os cristãos que votaram no L.” Como se a questão fosse religiosa, e não política, reproduzindo distorções que enganam o povo brasileiro e que emulam representações bíblicas utilizadas para a Nakba – a catástrofe palestina, desde a formação do Estado racista de Israel, em 15 de maio de 1948, mediante limpeza étnica planejada.

A despeito disso, ao final da nota oficial à imprensa e no pronunciamento no Conselho de Segurança da ONU, o país sob Lula ignora que não são dois lados iguais em disputa – portanto, não é conflito, mas apartheid e colonização: “o governo brasileiro exorta ambas as partes a se absterem de ações que afetem a confiança mútua necessária à retomada urgente do diálogo com vistas a uma solução negociada do conflito.”

Anistia rotula Israel como Estado de apartheid [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

“Dois estados”

O Brasil retoma a posição tradicional de defesa da “solução de dois estados”, segundo a qual o Estado palestino deveria ser criado nas fronteiras ocupadas em 1967 – que representam 22% do território palestino histórico.

Se não fosse injusta desde sempre, por não contemplar a totalidade do povo palestino – cuja metade encontra-se na diáspora/refúgio e outros quase dois milhões sob mais de 60 leis racistas nos territórios ocupados em 1948 (“Israel”) –, essa dita “solução” encontra-se totalmente inviabilizada pela agressiva expansão colonial sionista, que segue a todo vapor. Não são apenas os palestinos e as palestinas que demonstram, mas inclusive especialistas reconhecidos, como o historiador israelense Ilan Pappé: a tal solução de dois estados está morta.

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A necessária solidariedade efetiva e ativa deveria ouvir essas vozes e se fundamentar nos relatórios de organizações internacionais como Anistia Internacional e Human Rights Watch, bem como da ong israelense de direitos humanos B’Tselem. Seria passo importante, portanto, que o Brasil passasse a adotar o tom devido numa situação de apartheid, em que não se exortam “ambas as partes a se absterem de ações”, como se se responsabilizasse também o oprimido pela violência enfrentada todos os dias, há mais de sete décadas no caso. Os palestinos resistem, um direito legítimo nessa situação, e por isso existem. De que ações deveriam se abster? Deixar de existir, na perspectiva sionista.

Essa insistência na “solução de dois estados” e em manter vivos os desastrosos Acordos de Oslo, assinados em 1993, encontra amparo na posição da Autoridade Palestina (AP), que se apresenta como representante oficial do povo que enfrenta o apartheid. A AP, contudo, enquanto gerente da ocupação e com sua cooperação de segurança com Israel, não representa a totalidade dos palestinos. Sua credibilidade é cada dia menor, sob ocupação e na diáspora.

Como escreve Ramona Wadi, colunista do Monitor do Oriente, em artigo no dia 5 de janeiro, “dois estados são agora impossíveis de alcançar, e a AP é completamente dependente de financiamento externo para manter sua posição precária, dado que tem escasso apoio entre o povo palestino que oprime por meio de seus serviços de segurança que trabalham nos melhores interesses de Israel. Quando a AP falou sobre um retorno ao status quo após a eleição presidencial dos EUA em 2020, ignorou completamente o fato de que Israel continua a alterar o status quo a ponto de não se poder falar sobre isso. E ainda, apesar de toda a sua retórica em apontar padrões duplos internacionais, nenhum é tão competente em sustentá-los quanto a Autoridade Palestina”.

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Em face dessa realidade, o novo governo daria passo importante ao levar em conta as reivindicações feitas aos Grupos de Trabalho de Relações Exteriores e de Direitos Humanos da equipe de transição por organizações da comunidade árabe-palestina e movimentos populares e sociais solidários e antirracistas, de que lidere o reconhecimento na América Latina e junto à ONU do regime de apartheid e colonização sionista. Assim, anuncie de imediato embargo militar a Israel e suspensão de todos os acordos comerciais. Esta seria resposta adequada e efetiva à incursão na Esplanada das Mesquitas.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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