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Sem deixar rastro: Detenções arbitrárias continuam no Egito

Detenções extrajudiciais no Egito [ARIJ]
Detenções extrajudiciais no Egito [ARIJ]

Islam Ahmad Khamis é um jovem egípcio com cerca de 30 anos de idade. Há sete anos, sua mãe aguarda seu retorno após ser preso no inverno de 2015, submetido a desaparecimento forçado – prisão extrajudicial – em quatro ocasiões. Uma e outra vez, Islam sumiu do mapa à espera de investigações para ressurgir algum tempo depois. Então, voltaria a desaparecer, caso uma corte o julgasse inocente ou negasse jurisdição sobre o caso.

Em 2016, Islam estava na penitenciária egípcia de Istiqbal Tora, sob alegações associadas ao caso n° 185. Voltou a desaparecer após ser solto em 2019 – desta vez, sob o caso n° 4584. Outra vez foi preso, naquele mesmo ano, sob acusações vinculadas ao caso n° 76. A vez mais recente que Islam veiou a público foi em abril de 2020; porém, naquela ocasião, a mãe abdicou de contratar um advogado de defesa, possivelmente por receio de que voltasse a perder seu filho.

Islam Ahmad Khamis

Islam Ahmad Khamis

Islam Ahmad Khamis é um entre 15 casos similares identificados por esta investigação, baseada em testemunhos de parentes de prisioneiros desaparecidos em custódia dos serviços policiais e militares do Egito, sem quaisquer acusações específicas tampouco conhecimento público de seu local de detenção. A prática viola a lei egípcia e as convenções internacionais e contradiz a versão das autoridades de que o desaparecimento forçado simplesmente não existe.

Algumas pessoas voltaram para a casa; outros destinos continuam incógnitos. Esta investigação respeita o desejo de alguns de omitir sua identidade, por medo da perseguição a si ou parentes pelo regime militar. A pesquisa recorreu a dados de direitos humanos, junto de uma lista de 175 casos compilada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos.

Desaparecidos

Mohammad Juma'a Yusuf

Mohammad Juma’a Yusuf

Mohammad Juma’a Yusuf é irmão da mãe de Islam Khamis. Ele também sofreu desaparecimento forçado quando seu sobrinho foi abduzido pela primeira vez. Contudo, Yusuf não teve a mesma sorte: continua desaparecido. Um ativista de direitos humanos confirmou à mãe de Islam que o desaparecimento de Yusuf por sete anos consecutivos indica que ele jamais voltará para a casa. Ela, não obstante, recusa-se a crer e conserva sua esperança porque o corpo não foi entregue à família para sepultamento.

Sayyed Hassan Ali Morsi também sofre um destino desconhecido. Sayyed desapareceu há cinco anos após ser judicialmente inocentado em 7 de dezembro de 2017, sob um caso conhecido na mídia como “Soldados da Organização do Egito”. Sua esposa teve de divorciá-lo após sua prisão.

As famílias dos desaparecidos costumam ser deixadas sem alternativa senão orar pela soltura de seus entes queridos, após encaminhar um telegrama ao escritório da promotoria pública para reportar seu sumiço. Algumas famílias relatam que delegacias locais ou diretorias de segurança perto de suas casas entram em contato para inquiri-las sobre as ocorrências registradas e pedir mais detalhes e informações – na vasta maioria das vezes, sem o menor resultado.

Caráter legal

O desaparecimento forçado “é considerado detenção, prisão, abdução ou qualquer outra forma de privação da liberdade por agentes públicos ou pessoas ou grupos que agem com autorização, apoio ou aquiescência do Estado, seguido por recusa em reconhecer a privação da liberdade ou omitir o destino ou paradeiro dos desaparecidos, o que dispõe o indivíduo aquém da proteção da lei”. A definição compõe o artigo n° 2 da Convenção Internacional para Proteção de todas as Pessoas sobre Desaparecimento Forçado, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2010. O artigo n° 26 pede estabelecimento de um comitê de dez especialistas “de alto caráter e notória competência no campo dos direitos humanos, que devem servir em capacidade pessoal, independente e imparcial [ao] executar funções fornecidas” sob diretrizes da convenção.

Estados signatários da convenção “devem cooperar com o comitê e auxiliar seus membros para cumprir seu mandato”. Não obstante, o Egito jamais assinou o acordo.

Sayyed Hassan Ali Morsi

Sayyed Hassan Ali Morsi

A legislação egípcia tampouco reconhece o termo “desaparecimento forçado” e a maior parte das organizações de direitos humanos com foco na matéria teve de abandonar suas atividades no país. Tais entidades permaneceram ativas durante a presidência de Hosni Mubarak; contudo, no presente momento, a missão de reportar desaparecidos foi relegada às redes sociais, através de páginas e campanhas no Facebook como “Stop Enforced Disappearances” e Associação das Famílias dos Desaparecidos. Tais contas buscam publicar fotografias dos desaparecidos junto de alguns detalhes para dar credibilidade à postagem – o objetivo é encontrá-los.

Política sistêmica

Conforme a Comissão Egípcia para Direitos e Liberdades, a última aparição de 49% dos cidadãos desaparecidos ocorreu em espaços públicos. Em 21% dos casos, a prisão ocorreu em casa, sete porcento em centros de segurança e seis porcento em postos de controle militar.

Segundo a comissão, a forma como os desaparecimentos ocorre varia e sua duração vai de um a sete anos. Um indivíduo abduzido emergiu dois anos após seu sumiço no presídio de segurança máxima de Tora (Escorpião), ainda à espera de uma nova análise de seu indiciamento. A pessoa atende pelo pseudônimo “marido de Warda”, segundo nosso investigador. De qualquer forma, o cidadão detido não pôde comunicar-se com sua família ou advogado – algo bastante comum em casos como este.

As famílias jamais desistem de esperar por seus ausentes, apesar do número cada vez maior de desaparecidos, como advertiu Khalaf Bayoumi, chefe do Centro el-Shehab de Direitos Humanos. Sua organização estima que há quase 15 mil pessoas desaparecidas no Egito desde 2013; destas, ao menos 2.272 desapareceram apenas em 2021 – há relatos de 61 óbitos.

O fenômeno do desaparecimento forçado decolou no Egito desde a deposição – por meio de um golpe militar – do governo da Irmandade Muçulmana em meados de 2013. O episódio incorreu em uma onda de protestos abafada pela intervenção armada que derrubou definitivamente o regime democraticamente eleito do falecido presidente Mohamad Morsi.

Muitos concordam que o desaparecimento forçado é uma política sistêmica do Egito. Contudo, o Comitê por Justiça diverge das estimativas do Centro al-Shehab e alega que desaparecimentos forçados equivalem a apenas 14% dos 13 mil casos de violação de direitos humanos reportadas até então.

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O mais jovem desaparecido

Al-Baraa Omar Abdel Hamid desapareceu antes de completar um ano de idade. Ele estava com seus pais quando ambos foram presos em 2019 – o paradeiro dos três permanece desconhecido há dois anos. No início do último ano, os três reapareceram, mas foram novamente separados quando o menino foi entregue a sua família paterna, após sua mãe ser enviada ao presídio de al-Qanatir e seu pai, à infame penitenciária de Tora.

A criança tem hoje quatro anos de idade. Segundo a Anistia Internacional, disse o menino certa vez: “Eu quero voltar pro quarto”. Suas palavras parecem refletir o desejo de reunir-se com sua mãe no único lugar em que conviveram: isto é, a cela onde o menino passou os primeiros meses de sua vida. Os primeiros estágios de seu desenvolvimento – engatinhar, andar, deixar o seio da mãe, seus primeiros rabiscos e frases curtas – foram passados dentre as paredes de uma cela estreita onde o sol mal entrava por uma pequena janela.

Seu avô é agora seu guardião legal. “Al-Baraa está bem”, corroborou o avô em nossa entrevista. “Nós o mimamos com doces, viagens e jogos”. Contudo, a família jamais conseguiu falar com os pais da criança desde que foram presos novamente; todas as visitas estão proibidas.

A Comissão Nacional de Direitos Humanos reporta o desaparecimento forçado de doze crianças, que equivalem a sete porcento do total de pessoas desaparecidas. A faixa etária dos vinte anos de idade encabeça a lista, com 49% das prisões extrajudiciais; entre 30 e 40 anos, estão 24% das vítimas. A compilação demonstra também que a proporção de estudantes universitários dentre os desaparecidos aumentos 35% nos últimos anos. O local de moradia dos desaparecidos varia, com 34% de residentes do Cairo, 18% de Gizé e oito porcento do Sinai.

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A busca por Wesal

O trânsito pesado do Cairo poderia adiar o retorno para a casa de Wesal Mohammad Mahmoud em duas horas, quem sabe três. Seus pais naturalmente se preocuparam quando a mãe de dois filhos não apar

Wesal Mohammad Mahmoud

Wesal Mohammad Mahmoud

eceu por volta da meia noite. Deveria a família procurá-la primeiro nos hospitais, entre vítimas de acidentes de tráfego? Ou deveria reportar seu desaparecimento na delegacia? Era este seu dilema. Wesal jamais pertenceu a qualquer grupo político oposicionista – contudo, tornou-se vítima de desaparecimento forçado.

Mohammad, irmão de Mesal, insistiu em registrar um boletim de ocorrência da delegacia de al-Azbakeya, no centro do Cairo. Diversos policiais lhe disseram: “Wesal está bem. Logo, logo está de volta”. Outros foram mais suscintos, mas corroboraram seu eventual retorno.

O contato entre familiares e as autoridades costuma ser verbal e raramente documentado e/ou verificado. Por vezes, as informações são emitidas via funcionários das agências de segurança, a fim de acalmar os parentes das vítimas. Em alguns casos, outros detentos repassam mensagens daqueles desaparecidos.

Foi assim que a esposa de Moumin Abu Rawash Mohammad soube do paradeiro de seu marido e professor de italiano. Moumin estava em custódia do serviço de segurança pública no quartel-general de Sheikh Zayed. O professor fora preso na estação de ônibus de el-Monieb e torturado por dias antes de ser transferido a uma localidade desconhecida.

Segundo familiares, os presos costumam permanecer em custódia nas repartições de segurança pública – sobretudo el-Abbasiyyah, Sheikh Zayed e Cidade de Nasser –, assim como unidades do Departamento Central de Segurança nas áreas montanhosas na costa do Mar Vermelho. O local representa o destino mais comum dos desaparecidos – ao menos, no primeiro momento –; dali muitas mensagens são encaminhadas. A custódia nessas instalações compreende solitária, celas superlotadas e punição coletiva. As “festas de tortura” – como são chamadas pelos carcereiros – costuma durar tanto quanto os interrogatórios. Conforme familiares, ambos os estágios podem demorar separadamente de duas semanas a até dois meses.

A penitenciária militar de el-Azouly – na cidade de Ismailia – é um dos destinos mais duradouros dos desaparecidos. A tese é corroborada por um depoimento de 2014 carimbado com o selo da Iniciativa Egípcia para Direitos Pessoais e do Centro el-Nadeem para Reabilitação das Vítimas de Violência. Há ainda um relato compilado pela Anistia Internacional. Os documentos em questão confirmam que advogados e ativistas informaram a Anistia da escalada nos desaparecimentos forçados pelas autoridades egípcias desde novembro de 2013.

Para os egípcios, a justiça militar equivale à sentença: “Desaparecer para além do sol”. Trata-se de uma mensagem de intimidação com intuito de dissuadir o povo de toda e qualquer oposição ao regime. A frase é atribuída ao diretor de um presídio militar na década de 1960, que possuía forte reputação por sua crueldade extrema contra os detentos.

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Negação constante

As seguintes manchetes foram publicadas por websites egípcios no segundo semestre de 2016, quando o Conselho Nacional de Direitos Humanos anunciou a conclusão de seu inquérito sobre desaparecimentos forçados em voga desde 2013. “Conselho baixa as cortinas sobre o drama dos desaparecidos” e “Conselho absolve Ministério do Interior de desaparecimento forçado”.

O título do relatório em questão era: “Desaparecimentos forçados no Egito: Alegações e Fatos”. O texto concluiu que o Ministério do Interior facilitou o processo, ao analisar e deferir o pedido de soltura de 238 pessoas entre 266 queixas registradas sobre vítimas de desaparecimento. “As lacunas entre as ocorrências reportadas pelas famílias apreensivas e as datas de sua custódia nos centros de detenção criaram confusão sobre casos decisivos daqueles que excederam os limites legais de prisão”, o que implica no crime de desaparecimento forçado, observou o texto.

Emitido pelo órgão de direitos humanos do próprio governo militar, o relatório não absolve por completo o Ministério do Interior – tampouco o condena expressamente. O processo infecundo, no entanto, desencorajou famílias das vítimas de registrar suas queixas, a despeito da facilidade de fazê-lo. O final de 2016 marcou o encerramento de um diálogo nacional crítico sobre vítimas de desaparecimento forçado no Egito.

Abdel Rahman Ahmad Mahmoud

Abdel Rahman Ahmad Mahmoud

É por essa razão que a esposa do médico Abdel Rahman Ahmad Mahmoud, desaparecido desde 2018, não registrou uma ocorrência junto do Conselho Nacional de Direitos Humanos. “Eles são todos iguais” destacou. Tampouco registrou o sumiço de seu marido em sua delegacia local, ao preferir que sua sogra informasse diretamente os escritórios do Procurador Geral, do Primeiro-Ministro e do Presidente da República sobre seu caso.

A esposa de Abdel Rahman recorda de sua ansiedade ao perceber que marido estava atrasado para voltar do trabalho, em sua clínica na região de Ain Shams. Seu celular foi desligado, apesar do casal passar o dia conversando sobre seus filhos. Sua ausência há quatro anos a fez perceber que o desaparecimento do médico deveria estar associado a opiniões políticas proferidas em sua página do Facebook. O irmão de Abdel Rahman também serve sentença de regime fechado sob a alegação de tentar executar um atentado a bomba contra o Tribunal de Asyut. Abdel Rahman, não obstante, jamais se envolveu em quaisquer atividades políticas.

Após o sumiço do marido, sua esposa – farmacêutica em um hospital público – mudou-se para a província de Asyut com os filhos, protelando tanto quanto possível a explicação sobre a longeva ausência do pai às crianças. Quando enfim lhes contou sobre o que aconteceu, seu filho de sete anos perguntou à mãe: “Mamãe, não tem o telefone de um policial bonzinho? Para que a gente possa ver o papai?”.

Após quatro anos, a família de Abdel Rahman escutou inúmeros rumores sobre seu paradeiro. Houve ainda ofertas fraudulentas de trocar informações do médico desaparecido por enormes somas em dinheiro vivo.

Leis ignoradas

A lei egípcia não providencia nenhuma definição específica sobre a noção de desaparecimentos forçados. O Artigo n° 54 da Constituição de 2014 destaca que “qualquer um cuja liberdade seja restrita deve ser informado imediatamente sobre as razões pela qual foi detido e notificado por escrito sobre seus direitos. [O detento] deve poder contactar sua família e seu advogado e deve ser entregue às autoridades investigativas dentro de 24 horas de sua captura”.

Os Artigos n° 40 e 41 do Código Penal, Lei n° 150/1950, e suas respectivas emendas datadas de 5 de setembro de 2020, adverte que os suspeitos devem permanecer em custódia somente em lugares designados para este propósito. Os Artigos n° 42 e 43 permitem promotores e membros das Cortes de Primeira Instância e Recursos a visitar os centros de detenção para asseverar que não haja quaisquer prisioneiros ilegais.

Quando os desaparecidos ressurgem, eles não podem sequer registrar uma queixa ou processo contra a agência de segurança que os deteve arbitrariamente. O advogado de direitos humanos Mutaz al-Fujairi crê que a eficácia deste procedimento depende da vontade da ouvidoria e seus promotores a fiscalizar a performance dos serviços de segurança. “É improvável que aconteça, dada a ausência de monitoramento em muitos dos casos”, reafirmou al-Fujairi.

O advogado acrescentou que, em escala internacional, os casos litigiosos de desaparecimento forçado podem ser continuados em países que reconhecem a jurisdição universal sobre estados signatários da Convenção para Proteção de todas as Pessoas sobre Desaparecimento Forçado. Contudo, ainda não há casos registrados sobre a matéria em âmbito local ou internacional.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos foi solicitado a responder sobre esta investigação; no entanto, não concedeu sua réplica até o momento da publicação do texto.

Os desaparecimentos forçados continuam a acontecer no Egito impunemente. O destino de dez entre cada quinze pessoas referidas por esta investigação permanece desconhecido. O governo egípcio e suas agências relevantes ainda ignoram a questão de direitos humanos, a despeito da continuidade e das promessas de perdão presidencial e dos comitês de reconciliação.

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