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A Guerra da Ucrânia e a Hipocrisia Ocidental

Famílias carregam seus pertences na fronteira de Zosin, na Polônia, depois de fugir da Ucrânia.[Chris Melzer/ACNUR]

Mal passou pior da catástrofe da pandemia pelo coronavírus, que assola o mundo há mais de dois longos anos, e o mundo viu-se palco de um conflito armado de grandes proporções. É a primeira guerra que tem lugar em solo europeu neste século XXI da era cristã. O tirano e candidato a czar russo Vladimir Putin declara guerra à Ucrânia e inicia uma invasão terrestre do país vizinho e ex membro da extinta União Soviética. Trata-se de uma agressão clara do estado russo contra o povo ucraniano e a soberania do seu estado nacional. Apesar dos prenúncios e ameaças, muitos observadores apostaram na não-eclosão da guerra, e acreditaram na solução diplomática e pacífica do conflito. Ledo engano. O déspota russo surpreendeu o mundo com a invasão da Ucrânia precedida pela declaração de guerra. O Ocidente, com a sua mídia hegemônica sobre o mundo como um todo, ficou estarrecido e chocado. Condenações e críticas veementes ao Putin e ao regime russo varreram e varrem a mídia ocidental. Há uma quase unanimidade ocidental em condenar a Rússia e o seu ditador lunático.

O que causa estranheza e perplexidade, é que esta onda de indignação que varre o mundo ocidental não foi observada quando o mesmo genocida Putin invadiu a Síria em meados da década passada. Em solo sírio, e pelo ar, as forças armadas russas cometeram verdadeiros massacres nas cidades sírias, e perpetraram atrocidades das mais horripilantes, com uma extensa lista de crimes de guerra e abusos. As forças armadas russas mataram cidadãos sírios inocentes, destruíram cidades e obrigaram milhares de civis, constituídos por cidadãos comuns e famílias sírias a tornarem-se refugiados de guerra. Acordos internacionais foram violados. Os direitos humanos foram desprezados. O czar russo mostrou a sua face genocida e sanguinária de uma forma bem clara e patente na Síria.

A Síria foi abandonada ao próprio destino pela comunidade internacional como um todo. Ninguém falou em fazer sanções a Putin e à Rússia. Nenhum líder de nenhuma potência global ergueu a voz em defesa do povo sírio vítima do carrasco russo. A mídia internacional calou-se. Um silêncio criminoso tomou conta do mundo. O cinismo ditou as regras do jogo. Afinal, os sírios não são loiros, não têm olhos azuis, não falam nenhuma língua europeia, professam em sua maioria a religião islâmica sunita e tem uma renda per capita das piores do mundo, já que o país é espoliado há décadas pelo clã criminoso dos Assad. Se os sírios tivessem os traços mais europeizados, falassem uma língua latina, germânica e escandinava, se fossem cristãos ou judeus, e se tivessem uma renda per capita mais alta, eles seriam merecedores da indignação ocidental coletiva. Mas os sírios são árabes, muçulmanos e têm os traços mais morenos. Portanto, sob a ótica ocidental, não passam de párias do mundo e não são dignos de nenhuma solidariedade.

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 A cobertura midiático-jornalística ocidental da Guerra da Ucrânia revela uma tendenciosidade gritante e infame. Não se trata de gafes ou atos falhos cometidos aqui ou acolá. Não se trata de falas ou textos infelizes deste ou daquele político ou jornalista. A questão patente e inegável é que a mídia e o jornalismo ocidentais revelaram a sua parcialidade e falta de integridade ao dar uma atenção muito maior ao sofrimento do povo ucraniano quando comparado com povos não-ocidentais que foram vítimas de atrocidades e horrores. A Síria, o Iraque, o Iêmen, o Líbano, o Afeganistão, a Líbia, o Sudão, a Somália, e outros tantos países do mundo chamado periférico não tiveram nem sequer uma ínfima parcela da atenção que a mídia e jornalismo ocidentais estão dando à Ucrânia.

Post diz: Se isso fosse feito por palestinos, Afeganistão ou outras nações resistindo à ocupação, seria terrorismo. E durante a era anti-apartheid de Mandela, também foi apelidado de terrorismo. Para os europeus que enfrentam situações semelhantes, é resistência!. A duplicidade ocidental não conhece limites. [Tweeter]

Racismo, cinismo, hipocrisia, supremacia branca, preconceito, islamofobia são termos que descrevem a atitude ocidental perante guerras e catástrofes no mundo. Deixemos bem claro que quando falamos de Ocidente estamos nos referindo à América do Norte, Europa Ocidental e Austrália. Para efeitos geopolíticos e estratégicos, consideramos o estado sionista de Israel como pertencente ao Ocidente, uma vez que, apesar de localizado no Oriente Médio, ele atende aos interesses de hegemonia global das potências ocidentais, as quais dão proteção, suporte e auxílio a este estado de apartheid e terrorismo estatal. Ficaram bem claros a soberba, a arrogância, a bazófia e a presunção com as quais o Ocidente trata povos de sangue não-europeu e de religiões que não sejam cristianismo ou judaísmo.

Com a invasão russa, criou-se uma crise de refugiados ucranianos. O interessante e louvável é que muitos países ocidentais demonstraram prontidão e boa vontade para receber e dar acolhida a refugiados ucranianos. No entanto, estas prontidão e boa vontade desaparecem quando os refugiados são do Oriente Médio, África ou outras regiões ditas periféricas. Por aí, depreende-se um racismo claro, uma parcialidade gritante e um desprezo pelas populações das nações não-ocidentais. Enquanto manifestações de islamofobia e xenofobia contra árabes tomam conta da Europa, mesmo em países do leste europeu como Hungria, a simpatia e carinho para com os refugiados ucranianos – de tez branca, cabelos louros e olhos azuis-  chama a atenção. Cinismo descarado. Hipocrisia manifesta. Duplicidade de critérios e valores.

Post diz: Eu amo como as pessoas estão literalmente fazendo crowdfunding dos equipamentos militares da Ucrânia online. Meus assinantes têm suas doações do PayPal retiradas por usar a palavra “Palestina” ou “Síria”. Se você fizesse um financiamento coletivo para a resistência palestina, seria preso. Ah, os padrões duplos. [Twitter]

Enquanto o Ocidente usa as suas diversas mídias, como emissoras de televisão, jornais e redes sociais, para dar alento e estímulo à resistência popular ucraniana contra as tropas invasoras russas, observamos que esta mesma mídia ocidental tem sistematicamente difamado e caluniado forças de resistência legítimas em países como Palestina, Síria, Iraque, Líbano e Afeganistão. Líderes e mídias ocidentais negam aos povos de países islâmicos e árabes o direito de resistir contra invasores. As forças de resistência ucranianas são tidas como heróis e mártires pelo Ocidente; as forças de resitência árabes e islâmicas são consideradas como “terroristas” pelo Ocidente hipócrita.

E a hipocrisia não pára por aí. Os Estados Unidos e o Reino Unido que invadiram o Iraque no início deste século, mataram cerca de um milhão iraquianos, cometeram crimes de guerra, perpetraram horrores e atrocidades, criaram farsas e mentiras para apoderar-se do Iraque e destruíram a infra-estrutura desta potência árabe, estes mesmos Estados Unidos e Reino Unido agora querem condenar a Rússia por invadir a Ucrânia? Que moral estas duas nações anglo-saxões têm para condenar ou criticar alguém? Que legitimidade moral, humana ou jurídica eles têm para dizer aos outros o que eles têm que fazer ou deixar de fazer? Se as forças armadas russas são invasoras e assassinas na Síria e Ucrânia, as forças armadas norte-americanas e britânicas são invasoras e assassinas no Iraque e Afeganistão tanto quanto as russas. Infâmia une russos e americanos. Vergonha une eslavos e anglo-saxões.

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 Num conflito não há como ser neutro. Quem mantém a neutralidade, apoia o agressor contra o agredido e dá legitimidade moral aos invasores. Nunca é demais afirmar e deixar claro que qualquer agressão bélica a qualquer povo livre é condenável. Nunca é demais lembrar que a invasão de qualquer país soberano é execrável. No entanto, esta régua moral e de Direito Internacional tem que ser igual para todos, independentemente se for em relação a um estado do centro ou da periferia, independentemente se for em relação a muçulmanos, cristãos ou ateus, independentemente se for em relação a brancos, negros ou amarelos. O Ocidente, ao ter o descaramento de ter esta atitude hipócrita, racista e preconceituosa, mostra a sua falência moral e a sua ilegimitidade para arbitrar conflitos.

A solidariedade é ótima, mas tudo o que o apoio à Ucrânia está mostrando é que os migrantes só importam se forem brancos. O resto de nós pode jogar na loteria da intervenção ocidental. [Twitter]

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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