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Na África do Sul como na Palestina: por que devemos proteger o legado de Desmond Tutu

Uma foto do ativista antiapartheid da África do Sul, o arcebispo emérito Desmond Tutu, é vista durante uma cerimônia fúnebre na Catedral de St Georges, na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1º de janeiro de 2022 [Jaco Marais/Pool/Agência Anadolu]

Muito antes de a interseccionalidade se tornar um conceito predominante que ajudou a delinear a relação entre vários grupos marginalizados e oprimidos, o falecido arcebispo da África do Sul Desmond Tutu disse tudo em poucas palavras e no estilo mais inimitável. “Minha humanidade está ligada à sua, pois só podemos ser humanos juntos”, disse ele.

Como outros ícones de liberdade e justiça, Tutu não apenas cunhou o tipo de linguagem que ajudou muitos ao redor do mundo a se solidarizar com o povo oprimido da África do Sul, que travou uma guerra inspiradora e custosa contra o colonialismo, o racismo e o apartheid. Foi um líder, um lutador e um verdadeiro intelectual engajado.

É bastante conveniente para muitos na mídia corporativa esquecer tudo isso sobre Tutu, da mesma forma que reescreveram deliberadamente a história de Nelson Mandela, como se o líder do movimento antiapartheid da África do Sul fosse um pacifista, não um verdadeiro guerreiro, em palavra e ação. Tutu também é retratado por alguns na mídia como se fosse apenas um homem citável que ajudou na ‘cura’ da nação após o fim formal do apartheid.

Não adianta pregar aos sul-africanos, e àqueles que conheciam bem Tutu, para entender a centralidade do grande homem na luta antiapartheid e na formação de uma narrativa poderosa, que expôs e, eventualmente, demoliu o apartheid.

Como palestino, no entanto, penso que é muito importante enfatizar o papel crucial desempenhado por Tutu ao vincular a experiência do apartheid em seu país com o apartheid israelense e a ocupação militar na Palestina, e em influenciar uma geração de intelectuais palestinos que, com sagacidade, exploraram a experiência coletiva antiapartheid sul-africana e aplicaram muitas de suas valiosas lições também à experiência palestina.

“Quando você vai à Terra Santa e vê o que está sendo feito com os palestinos nos postos de controle, para nós, é o tipo de coisa que experimentamos na África do Sul”, disse Tutu ao The Washington Post em uma entrevista em 2013.

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Para serem aceitos nos mais importantes círculos, ativistas de alto calibre costumam ser cuidadosos na linguagem que usam e nas referências que fazem. Com coragem intelectual fraca e indecisa, vacilam ao primeiro desafio ou diante de abusos e ataques de seus detratores. Não Tutu. Quando o homem começou a fazer referências a um apartheid israelense na Palestina, os sionistas e seus amigos foram impiedosos em suas acusações de que o amado líder espiritual, nas palavras do infame advogado sionista americano Alan Dershowitz, era “mau”.

Dershowitz, pouco conhecido por sua força moral e conhecido por seu amor eterno por Israel, foi um dos que aproveitou a oportunidade para atacar covardemente o grande líder espiritual sul-africano quase imediatamente após a notícia de sua morte.

“O mundo está de luto pelo bispo Tutu, que morreu no outro dia”, disse Dershowitz durante uma entrevista à Fox News em 28 de dezembro, acrescentando: “Posso lembrar ao mundo que, embora ele tenha feito algumas coisas boas, muitas coisas boas no apartheid, o homem era um antissemita desenfreado e fanático?”.

Dershowitz também descreveu Tutu como “mau”. De fato, Tutu também era ‘mau’ aos olhos do governo racista do apartheid da África do Sul, assim como era ‘mau’ aos olhos de Israel. Mandela, Che Guevara, Yasser Arafat, Malcolm X e Martin Luther King também eram “maus” aos olhos dos racistas, dos colonialistas, dos sionistas e dos imperialistas.

Como era de se esperar, Tutu não recuou, apesar de anos de pressão e abuso. “Sei, em primeira mão, que Israel criou uma realidade de apartheid dentro de suas fronteiras e por meio de sua ocupação. Os paralelos com minha amada África do Sul são dolorosamente gritantes, de fato”, escreveu Tutu em 2014, pedindo aos presbiterianos dos EUA que impusessem sanções a Israel.

Nesse mesmo ano, em entrevista ao jornal sul-africano News 24, Tutu disse:

“Testemunhei a humilhação sistêmica de homens, mulheres e crianças palestinos por membros das forças de segurança israelenses. Sua humilhação é familiar a todos os sul-africanos negros que foram encurralados, perseguidos, insultados e agredidos pelas forças de segurança do governo do apartheid.”

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É esse apoio de grandes homens e mulheres como Tutu que deu ao Movimento Palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) o impulso necessário para construir a base de seu sucesso atual em todo o mundo.

Tutu foi além. Em vez de apelar para a consciência das pessoas, ele também as lembrou de que fazer a escolha moral errada também é uma acusação moral a elas. “Aqueles que fecham os olhos para a injustiça na verdade perpetuam a injustiça. Se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o lado do opressor”, disse ele.

Na África do Sul, na Palestina e em todo o mundo, lamentamos a morte do Arcebispo Tutu, mas também celebramos sua vida. Particularmente, celebramos o legado que esse formidável líder intelectual e espiritual deixou para trás.

Palestinos de todo o mundo prestaram homenagens a Tutu. O arcebispo palestino Atallah Hanna, ele próprio um grande guerreiro da justiça, disse que Tutu “sempre será lembrado por sua rejeição ao racismo e ao apartheid, inclusive na Palestina”.

Por causa de Tutu e seus companheiros, temos um roteiro sobre como lutar e acabar com o apartheid, como enfrentar os racistas e como derrotar o racismo; como abraçar nossa responsabilidade moral e como lutar por um mundo melhor e mais justo. E, por causa de Tutu, somos constantemente lembrados de que o apartheid israelense na Palestina deve ser combatido com a mesma ferocidade, vontade e força moral que a África do Sul.

Tutu nunca morrerá, porque suas palavras continuam a mostrar o caminho na Palestina, assim como na África do Sul. Igualmente importante, nunca devemos permitir que o honroso legado de Desmond Tutu seja explorado, demonizado ou reescrito por seus detratores ou por aqueles cuja sensibilidade não pode acomodar a coragem desse lutador negro, que continuará a liderar o caminho, muito depois de sua morte.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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