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Renúncia do premiê do Sudão deixa perigoso vácuo político

Manifestantes protestam contra o golpe no Sudão, ao exibir retrato do premiê Abdalla Hamdok, deposto pelas Forças Armadas, na cidade de Omdurman, 30 de outubro de 2021 [AFP via Getty Images]

A decisão do Primeiro-Ministro do Sudão Abdalla Hamdok de renunciar, apenas seis semanas após ser restaurado ao cargo, deixa um perigoso vácuo político no país norte-africano, que parece extremamente difícil de ser superado. Mesmo caso um sucessor seja encontrado sem demora, a população sudanesa não aceitará alguém que pareça alinhado com os militares.

Em pronunciamento transmitido pela televisão, o então chefe de governo insistiu que o país encara uma “perigosa encruzilhada que ameaça sua sobrevivência”. Hamdok destacou ter feito seu melhor para impedir que o Sudão “decaísse ao desastre”, mas que “apesar de tudo que fizemos para chegar a um consenso … isso não aconteceu”.

Sudão protesta; premiê renuncia [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

O retorno do primeiro-ministro ao cargo não surpreendeu os generais do exército, pois o verdadeiro objetivo por trás de sua deposição era marginalizar as Forças por Liberdade e Mudanças, proeminente iniciativa da sociedade civil. Segundo alguns, sobretudo na região do Golfo, elementos de esquerda integrantes da organização seriam um obstáculo a uma “gestão tranquila” no Sudão. Contudo, o golpe militar de 25 de outubro deflagrou dois efeitos inesperados: Hamdok perdeu toda e qualquer confiança do povo, logo descrito como “traidor”; os signatários de Juba evidenciaram sua indisposição contundente em deixar o poder.

Os esforços concentrados de manifestantes jovens — entre 15 e 30 anos de idade — mobilizou as ruas e convenceu a opinião pública a repudiar o exército. Ao recusar o apoio formal de qualquer partido político, a juventude sudanesa organizou-se bem e foi capaz de maximizar o comparecimento e minimizar as baixas durante os protestos. Ainda assim, ao menos 57 pessoas foram mortas desde a retomada das manifestações populares, em 25 de outubro.

Os militares projetaram esperanças no enfraquecimento dos atos, ao designar um governo supostamente independente e tecnocrata, de modo que a comunidade internacional poderia reaver sua assistência caso o premiê ao menos parecesse estar no controle. Não obstante, a pressão consistente e os protestos cada vez mais frequentes, resultando em vítimas fatais e preocupações de segurança, comprometeram o pretexto fundamental para a restituição do premiê — “interromper o derramamento de sangue”.

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Da mesma maneira, as milícias signatárias de Juba deixaram absolutamente claro que estão determinadas a não abdicar das nomeações políticas angariadas após o suposto acordo de paz. Em entrevista televisionada, Mina Arko Minawi, governador de Darfur, afirmou em novembro: “Caso acabe nossa parceria com os componentes militares, será uma guerra aberta”.

A tamanha divergência agrega-se a falta de aprovação popular conferida aos generais — sobretudo ao vice-presidente do Conselho Soberano, Mohamed Hamdan Dagalo. De sua parte, Abdul Fatah al-Burhan, presidente do conselho, tornou-se um espectador nas negociações, incapaz de tornar público seu apoio à posição do premiê, que reivindicava a instauração de um governo tecnocrata. Al-Burhan sentia que seu aval a Hamdok prejudicaria o acordo de paz.

Após a renúncia do primeiro-ministro, não obstante, foram feitos novos apelos para restituição do acordo constitucional e para indicação de um mediador internacional, propostas que aludiram de algum modo ao próprio discurso de abdicação.

“É hora de empregar um mediador internacional capaz de fazer o trabalho que Hamdok não pôde fazer — encontrar um meio-termo político entre os militares, as ruas e as Forças por Liberdade e Mudança, para reescrever um caminho adiante”, declarou Cameron Hudson, ex-oficial do Departamento de Estado dos Estados Unidos, membro do Centro de Assuntos Africanos do think-tank internacional Atlantic Council.

Analistas observam que um acordo seria um “estágio intermediário para evitar os piores efeitos do golpe”. Segundo Suliman Baldo, pesquisador sudanês em áreas de conflito, radicado nos Estados Unidos, durante entrevista à rádio Dabanga, em dezembro último, tais efeitos incluem “massacres, isolamento e retorno do país ao status de pária na comunidade internacional”.

Baldo crê que o controverso acordo entre Burhan e Hamdok possuía uma missão bastante específica condicionada a poderes executivos assegurados ao Conselho de Ministros, órgão civil do governo. Qualquer chance de restaurar o apoio internacional à conjuntura sudanesa dependeria de Hamdok preservar sua legitimidade e seu gabinete tecnocrata.

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A aceitação formal da renúncia do premiê acabará de vez com especulações de uma eventual intervenção da comunidade internacional para restaurá-lo mais outra vez. Parece provável, contudo, que o Ministro das Finanças seja indicado interinamente, a fim de supervisionar o orçamento público de 2022, ainda não acordado pelas forças políticas.

Analistas sugerem que Buthaina Ibrahim Dinar, membro do Movimento por Libertação Popular do Sudão, possa ser designado primeiro-ministro. Dentre outros nomes mencionados, está Kamil Eltayeb Idris, estadista, acadêmico e funcionário público sudanês, que presidiu a Organização Mundial de Propriedade Intelectual, entre novembro de 1997 e 2008, bastante conhecido nos círculos internacionais.

Até o momento, há também rumores de que estadistas africanos, como o Presidente de Ruanda Paul Kagami, possam ser chamados para mediar as negociações. Sem um progresso considerável na indicação de um gabinete independente, todavia, parece óbvio que nenhum premiê comprometido com a democracia no Sudão, devidamente aceito pela comunidade internacional, será encontrado tão breve.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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