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Tristeza: os imensos retrocessos da relação Brasil- Palestina em 2021

Deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro das relações exteriores Ernesto Araújo presenteiam primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em 8 de março de 2021 [Foto: Reprodução / Twitter]

Assim como acontece durante os ciclones, furacões e temporais que costumam destruir milhares de casas e vidas nos Estados Unidos  e no Brasil, os sinais da tragédia que seriam os anos de Jair Bolsonaro no poder estavam todos na “atmosfera”, mas só uma parte dos brasileiros conseguiu lê-los e interpretá-los, mesmo não conseguindo evitar que a destruição quase completa se consumasse.

Além da destruição de programas sociais de combate à fome, da destruição inegável de imensas áreas da Amazônia e da perda de quase 700 mil vidas humanas durante a pandemia de covid, o Brasil vem perdendo algo que levamos décadas construindo e lapidando e que era uma “ marca” admirada pelo mundo todo: nosso legado como uma potência diplomática e como um país acolhedor.

A imagem e a percepção do mundo sobre nós sofre as maiores quedas e os maiores ataques da nossa história. No quesito governança, que mede a percepção sobre a competência de um determinado governo, quando avaliado por estrangeiros, o Brasil agora passou a figurar o 44º lugar em um ranking de 56 países.

A decisão de Bolsonaro de permitir a mineração em áreas da Amazônia e de minimizar as queimadas, o desmatamento e as mortes de centenas de indígenas também teve um impacto fatal na forma como os estrangeiros percebem o Brasil, sobretudo os mais jovens, 18 a 29 anos, segundo vários especialistas em “soft power” , o poder de liderança regional ou global que uma nação pode construir  através de escolhas melhores em questões climáticas, humanitárias ou de conflitos armados, por exemplo.

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 Mas um dos maiores retrocessos do Brasil na área de relações internacionais acontece na nossa relação com um país com o qual sempre fomos solidários e próximos, a Palestina.

Uma das atitudes mais vergonhosas do Itamaraty nesse ano de 2021 ocorreu em maio, durante os bombardeios de Israel a Gaza.

Historicamente, o Brasil sempre se posicionou contra os ataques de Israel ou contra qualquer ataque com vítimas civis na região, fosse do Hamas ou de Israel.

Mas em 2021 demorou vários dias para enviar uma nota sobre os bombardeios que mataram crianças e mulheres em Gaza, e, quando o fez, afirmou que era “inaceitável qualquer ataque a Israel”, ignorando completamente as mortes de centenas de palestinos civis naquele momento. Se, durante anos, a Palestina e Israel estiveram igualmente presentes em comunicados internacionais do Itamaraty, em 2021 ficou vergonhosamente claro que o Brasil passou a se subordinar quase bovinamente aos interesses de Israel.

O país governado até pouco tempo pelo corrupto e violento Netanyahu, o pais que se declara uma teocracia, ou um “ estado judeu”, ignorando os milhões de cristãos e muçulmanos que nasceram e vivem nos territórios ocupados, passou a ter uma das maiores presenças nos comunicados do Itamaraty da história do Brasil.

O Itamaraty já emitiu mais de 15 notas oficiais sobre Israel abordando assuntos variados, tanto emitindo declarações sobre as visitas oficiais de Bolsonaro e de diplomatas brasileiros ao país, quanto protegendo Israel em relação aos crimes de lesa humanidade cometidos por esse país, além de sugerir, em discursos do ex-chanceler Ernesto Araújo e de Bolsonaro, a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, algo ilegal e imoral sob todos os pontos de vista.  As declarações de Bolsonaro subordinando-se a Israel, tanto nas questões relativas à mudança da embaixada, quanto relativas aos bombardeios de Israel contra Gaza em 2021, vão contra qualquer noção de justiça, e contra a história diplomática e solidária do Brasil em relação à Palestina.  Uma prova disso são as inúmeras manifestações do Brasil pedindo o fim dos ataques a Gaza e dos assassinatos de civis palestinos que já provocaram reações de Israel. Em 2014, por exemplo, em meio a uma escalada de violência, às mortes de crianças palestinas, e aos bombardeios israelenses que causaram indignação mundial, o Itamaraty emitiu uma nota criticando veementemente “o uso desproporcional de força por parte de Israel”, o que gerou uma reação extremamente agressiva e grosseira de Israel, quando um porta-voz da chancelaria israelense chamou o Brasil de “gigante econômico e anão diplomático”.

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O episódio causou um imenso mal-estar e uma grande perplexidade em Brasilia na época, e levou o então presidente israelense a telefonar para a então presidente Dilma Rousseff pedindo desculpas.

Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo comungaram em 2021 do imenso desconhecimento ou da mesma miopia sobre a história da região e sobre o Apartheid israelense, hoje reconhecido inclusive por representantes da ONU.

Bolsonaro continuou a destruir em 2021 a relação bonita construída ao longo de décadas entre Brasil e Palestina e a tratar o Itamaraty como um órgão de seu governo e não como o que de fato é, um órgão de Estado, sólido e permanente, muito maior do que um governo subordinado aos interesses de Israel e dos EUA e cuja validade pode expirar em poucos meses.

O cenário dantesco de um Itamaraty comandado pelo sionista e extremamente fascista Ernesto Araújo tornou-se tão grave que chegou a ameaçar as relações comerciais do Brasil com países árabes e foi somente após a queda de Araújo que visitas e acordos com países do Golfo, ainda que muito questionáveis, foram concretizadas.

Apesar de tantas perdas, vivenciamos em 2021 alguns momentos que me emocionaram no que se refere à relação entre brasileiros e palestinos.

Um deles aconteceu logo depois dos ataques de Israel à Gaza em maio, e foi protagonizado pelo deputado federal Rogério Correia, do Partido dos Trabalhadores.

Durante uma audiência pública da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, em Brasília, Correia e vários de seus colegas presentes afirmaram que “ a solução para o conflito no Oriente Médio é o reconhecimento e a viabilização do Estado palestino”. Vários deputados presentes pediram a ajuda do Congresso Nacional para intervir na política do governo brasileiro em relação à região, além de acelerar a oficialização de acordos de cooperação comercial, técnica e cultural entre o Mercosul e a Palestina. A audiência foi motivada pelos ataques israelenses a Gaza e as palavras lidas por Correia em apoio à causa palestina, lembrando que o Brasil já reconheceu o Estado palestino, tocaram o coração de muitos dos que ali estavam. “Denunciamos que essa escalada de violência integra um regime de apartheid, ocupação e colonização, contra o qual sanções são urgentes e necessárias para alcançar uma paz justa e cumprir com a própria responsabilidade dos Estados terceiros frente às violações de direitos humanos e ao direito internacional perpetradas por Israel”, disse o deputado.

O embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben, lembrou naquela tarde que há sete milhões de refugiados palestinos em todo o mundo e sete mil prisioneiros palestinos em Israel, e reafirmou que as agressões não são contra uma facção política específica, mas contra todo o povo palestino. “Pouco importa o quanto Israel e seus aliados tentem. Não haverá solução, paz ou segurança na região e, me atrevo a dizer, no mundo, sem justiça para a Palestina, sem um Estado palestino independente, com Jerusalém como sua capital”, disse ele em Brasilia.Também presente à audiência, o ex-chanceler Celso Amorim afirmou que a resolução do conflito exige paz, boa vontade e liderança.

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Muitos convidados fizeram um histórico da situação no Oriente Médio, incluindo a criação do Estado de Israel, em 1948. Numa tarde histórica de solidariedade, o professor Robson Valdez, pós-doutorando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília, ressaltou que o conflito não é religioso, mas envolve questões históricas, geográficas, de direitos humanos e direito internacional. “É um conflito extremamente assimétrico e cabe ao lado mais forte criar as condições para que essas negociações avancem. E essa questão da assimetria de forças fica mais evidente quando o principal aliado de Israel são os Estados Unidos. Só para se ter uma ideia, desde a Segunda Guerra Mundial até 2018, Israel recebeu em ajuda 134 bilhões de dólares”.

O ano que está chegando ao fim também trouxe depoimentos de parlamentares brasileiros que revelaram desconhecer profundamente a história do Oriente Médio e do Apartheid protagonizado hoje por Israel.

Um deles, que não foi convidado para a audiência pública por já ter proferido discursos de profunda intolerância religiosa e desconhecimento completo, foi o deputado Aroldo Martins, do Paraná, que chegou a afirmar que “o território pequeno de Israel é disputado pelos palestinos, que não querem viver em paz com Israel, querem, na verdade, que seja banido o território de Israel. Então a razão todinha do conflito é por causa do território de Israel, sendo que os palestinos têm também o seu território, porém não se contentam com o território a eles dado”, mostrando seu completo despreparo sobre a história da Palestina, um país que não governa seu próprio território e que luta pela sua independência e pelo fim do Apartheid.

O mesmo deputado Aroldo Martins, não por acaso, foi o relator do triste Acordo de Cooperação entre Brasil e Israel na área da Defesa, proposto pelo deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente cuja necropolítica tem sido condenada pelo mundo todo.

O acordo (MSC 371/19), assinado em Jerusalém, em 31 de março de 2019, foi aprovado no dia 9 de dezembro de 2021  pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

O Acordo representa hoje um imenso retrocesso para a relação entre Brasil e Palestina, uma traição histórica a um Brasil plural, humanitário e acolhedor, e uma imensa ameaça aos brasileiros mais pobres, aos negros, aos indígenas, aos refugiados, em cujos corpos serão testadas as novas armas de Israel.  Como afirmou há poucos dias o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil,  meu querido amigo Ualid Rabah,  “O acordo foi defendido com o uso covarde de `Deus`, mas de um Deus falso e étnico que manda matar, exilar, torturar, roubar, porque sabem que não podem defender Israel frente que é de crime de lesa humanidade desse regime de Apartheid que ocupa ilegalmente a Palestina. Os que defenderam esse acordo são os mesmos que trouxeram ao Brasil uma deputada alemã acusada de ser a continuadora do nazismo e que, casualmente, também defende Israel e seus crimes na Palestina. Isso não é mera coincidência. Este acordo fará do Brasil um cúmplice da máquina de guerra israelense, que assassina o povo palestino e sustenta esse regime de Apartheid”.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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