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‘O homem que vendeu sua pele’ – Refugiado sírio torna-se obra de arte para chegar à Europa

De certa forma, 'O homem que vendeu sua pele' requer um pouco de imaginação, na encruzilhada entre romance, drama e sátira, para tratar da crise dos refugiados

Após um jovem sírio escapar de sua cidade natal de Raqqa, tem de chegar à Bélgica para se reunir com o amor de sua vida. Sua primeira parada é no vizinho Líbano, onde por acaso cai em uma exposição para roubar comida e dar um tempo em seu serviço horrível de eletrocutar pintinhos em uma fábrica local.

Em uma vaga coincidência da história, um artista contemporâneo belga, bastante bem sucedido, pede a Sam Ali para tatuá-lo em troca de uma jornada de “tapete mágico” a Bruxelas. O protagonista enfrenta um dilema pelo qual milhares de pessoas que fogem da guerra e da perseguição devem navegar todos os dias: até onde ir para chegar à Europa?

Ele concorda e se torna “o homem que vendeu sua pele” — do título original, “The Man Who Sold His Skin”.

Uma vez na Europa, Sam senta-se numa prestigiosa galeria, em meio a visitantes e diversas obras, incluindo suas costas, que lhe concedeu um visto nos países europeus. Sam efetivamente torna-se uma “mercadoria”, muito mais fácil de viajar pelo mundo do que um ser humano e, por vezes, é tratado dessa forma: como um objeto.

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O longa-metragem de Kaouther Ben Hania relata a diáspora de Sam Ali e comenta sobre a exploração e o tráfico humano, mercados que floreceram em meio à enorme crise migratória da última década.

Trata-se da dimensão — ou mesmo dos limites — da liberdade do personagem e dos sacrifícios que fez em seu nome. Sam é livre agora que está na Europa ou simplesmente está em mãos mais “aprazíveis” que ainda assim lhe tiram vantagem? É possível conciliar tamanho paradoxo?

Ou será possível equilibrar os conflitos internos decorrentes de chegar a um país que há tanto sonhou e não encontrar exatamente aquilo que esperava?

Enquanto isso, sua amada casou-se com um diplomata sírio radicado em Bruxelas, a fim de enfim deixar para trás a guerra civil e viver com algum conforto e dignidade — uma jornada aparentemente mais fácil do que os percalços enfrentados por seu antigo noivo. Mas ela também tem seus problemas, como uma obrigação perene de agradar as pessoas ao seu redor e a tormenta de estar presa a um casamento infeliz.

A justaposição entre ambas as jornadas contrasta o mundo dos refugiados e a elite artística — assim como o que fazer ou não fazer nessas circunstâncias.

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Com o tempo, as costas de Sam passam a valer um milhão de euros. E quem são esses 0.1% de colecionadores abastados que pagam quantias obscenas pela obra de poucos artistas, enquanto o restante da população ganha quase nada como mão de obra? O que tem no mercado de arte que faz os valores serem especulados de maneira estratosférica?

O último filme de Ben Hania foi inspirado por uma retrospectiva sobre a obra de Wim Delvoye, responsável por tatuar as costas de Tim Steiner, realizada no Museu do Louvre em Paris. O desenho elaborado foi vendido ao colecionador alemão Rik Reinking, que receberá a pele de Steiner devidamente emoldurada, após a sua morte, para pendurá-la na parede. Steiner está agora como Sam Ali, sentado nas galerias como tela humana, ao menos três vezes por ano.

De certa forma, “The Man Who Sold His Skin” requer um pouco de imaginação, na encruzilhada entre romance, drama e sátira, para tratar da crise dos refugiados — sobretudo, a tragédia de milhares de pessoas que deixam a Síria, há anos sem o mesmo interesse ou atenção do que recebiam em 2015. É possível ainda que se torne o primeiro longa-metragem tunisiano a ser indicado a Melhor Filme Estrangeiro na premiação do Oscar de 2022.

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