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O Talibã venceu sua luta armada, agora deve conquistar legitimidade via diplomacia

Pessoas se reúnem em torno de uma bandeira do Talibã perto do ponto de passagem da fronteira Paquistão-Afeganistão, em Chaman, em 17 de agosto de 2021 [AFP via Getty Images]

Quando as capitais de província caíram uma após a outra na última semana, em marcante rendição ao grupo Talibã e abandono das mansões dos comandantes militares que fugiram do país, tornou-se claro que a batalha pelo Afeganistão chegaria logo ao fim. Ao contrário das previsões de que a entrada do grupo em Cabul seria brutal e sangrenta, como em 1992, uma equipe de negociação foi enviada ao palácio presidencial, enquanto os combatentes aguardavam ao redor da cidade. O presidente Ashraf Ghani renunciou e deixou o país escoltado por forças dos Estados Unidos. Em lugar de uma tomada violenta, uma aparente transição pacífica transcorre no poder.

Além disso, o Talibã anunciou uma “anistia geral”, incluindo ex-funcionários do governo e oficiais que trabalharam com as forças de ocupação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), lideradas pelos Estados Unidos.

O Talibã lutou por duas décadas para chegar a este momento. Seus combatentes têm as mais diversas origens na sociedade afegã — embora sobretudo rural — e conquistaram sua vitória no campo de batalha, apesar de algumas áreas, como o Vale do Panjshir, permanecerem como bastião de resistência. Agora, não obstante, há uma nova batalha diante do grupo em termos de diplomacia e governabilidade.

O fato de que armas foram exibidas entre os líderes do grupo, filmados no palácio presidencial, em 15 de agosto, causou apreensão em muitos observadores. No novo Afeganistão, no entanto, as forças do Talibã terão de ter comedimento e prudência para baixar suas armas e assumir uma imagem de governo responsável.

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Trata-se da mais árdua tarefa aos longevos insurgentes. Comandantes e combatentes — tanto jovens quanto veteranos — costumam representar o maior obstáculo a aspirações de uma liderança política por uma transição tranquila e ordenada a uma nova gestão. Ao longo da história, alguns líderes vitoriosos, cientes de tais contratempos, sentiram-se tentados a remover à força ou mesmo executar antigos companheiros de luta.

O Talibã, porém, não desconhece o ofício. O movimento sentiu o gosto de instituir seu próprio governo no final da década de 1990, quando tomou controle da maior parte do país. Agora, tem de provar à comunidade internacional que o momento é notavelmente distinto.

O fechamento de escolas às meninas e restrições empregatícias às mulheres; a resposta brutal a qualquer indício de dissidência; a discriminação contra minorias, como os xiitas hazaras — tudo isso está entre as práticas que não devem retornar, caso o novo regime do Talibã realmente queira reconhecimento por parte da comunidade internacional.

De fato, há ainda esperanças de mudança. Suhail Shaheen, porta-voz do Talibã, assegurou que as mulheres terão todo o direito à educação e trabalho — todavia, conforme suas interpretações da lei sharia. Além disso, o movimento sunita alega ter melhorado relações com os hazaras e outras minorias, como os tadjiques, ao longo dos anos, ao ponto de mesmo recrutá-los às suas tropas, aparentemente não mais restritas à etnia pashtun.

O Talibã insiste ainda que os diversos relatos da mídia ocidental de que meninas são forçadas a casar-se com militantes e proibidas de concluir sua formação universitária ou procurar emprego não tem qualquer fundamento na realidade. Tais rumores, alegam os correligionários do movimento, são baseados em casos individuais ao invés de imposições dogmáticas.

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O processo de reconhecimento internacional já começou. A China, por exemplo, propôs reconhecer o governo do Talibã caso se materialize o controle de Cabul e a Rússia está em processo de decisão. O Paquistão declarou sua disposição em trabalhar com qualquer governo estabelecido no país e há relatos de que o Irã considera fazê-lo em âmbito provisório, devido à melhora de suas relações com o grupo. Os estados ocidentais, é claro, ainda declinam. O premiê britânico Boris Johnson chegou a exortar outros países a não reconhecê-lo.

A liderança do Talibã também terá de distanciar-se do “jihadismo global”. Previsões de que a conquista do grupo no Afeganistão possa levar a uma vitória do al-Shabaab na Somália ou mesmo do Estado Islâmico (Daesh), em sua ressurgência no Levante, despontaram nos últimos dias de modo provavelmente excessivo. Tal discurso recorre mais ao alarmismo ou pânico do que evidências factuais.

Há também previsões de que o governo do Talibã possa outra vez conceder um porto seguro à Al-Qaeda como respiro sob a guerra ao terror. Todavia, parece improvável que o Talibã faça apostas neste sentido dado suas aspirações governistas e o fato de que a Al-Qaeda é somente uma sombra do que já foi. Alega-se que a organização sequer existe mais e que apenas alguns grupos isolados, com vínculos distantes, preservam vivos seu nome e sua memória.

O Talibã, perante tal conjuntura, terá de assegurar à comunidade internacional que representa efetivamente um movimento nacional afegão dentro das fronteiras reconhecidas do país, de modo a afastar-se de um caráter jihadista transnacional marcado por intervenções na ordem exterior. Se a guerra ao terror liderada por Washington de fato fracassou em muitos aspectos, contudo, obteve um êxito: compelir movimentos ideológicos a adotar este modelo. De qualquer forma, como disse Yvonne Ridley: “O Talibã é formado por afegãos com apoio popular em muitas partes do país … Tais pessoas lutam dentro e por seu próprio país, não em nome de intrusos”. Temos de reconhecer, insistiu Ridley, “que o Talibã jamais exportou o terrorismo ou executou ataques militares para além de suas fronteiras”.

Àqueles que afirmam que o Talibã é um movimento insurgente incapaz de cooperar com a comunidade internacional, uma breve olhada na história demonstra que milícias e movimentos fortemente ideológicos têm a tendência de tornarem-se mais moderados com o tempo, através de uma experiência de governo e diplomacia. Por exemplo, China, Arábia Saudita e Israel — regimes com raízes em ideologias brutais que asseveraram domínio sobre a vida política nacional. Apesar de seu péssimo histórico em direitos humanos, todos se moderaram de algum modo — embora os palestinos discordam deste aspecto — e mantêm governos reconhecidos internacionalmente.

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Há ainda o caso de nações que conquistaram sua independência após combater a colonização. Mesmo os Estados Unidos tiveram de travar uma guerra revolucionária contra a Grã Bretanha para conquistar sua própria soberania. Seja este é o caso, não é difícil imaginar um Emirado Islâmico do Afeganistão com um governo viável nos próximas dias, meses e anos. A única questão pendente é se será um regime isolado e marginalizado como o Irã ou abraçado como parte da comunidade internacional.

Farhan Hotak, vlogger e jornalista que acompanha os eventos no Afeganistão, reiterou que os militantes do Talibã são basicamente um retrato das comunidades rurais afegãs, cuja população representa a maioria do país. “As pessoas que vivem nas periferias dos distritos rurais vivem a vida do Talibã”, relatou Hotak. “Sem qualquer acesso a nada desde seu nascimento, sempre estiveram praticamente isolados”.

Segundo Hotak, o mais urgente é que o país tenha alguma paz, após quase meio século de guerras. O repórter recordou tempos — não muito distantes — nos quais “caso, por acaso, tivesse uma lâmpada ou tocha acesa em casa, seríamos atacados dos céus … o lado bom é que as pessoas podem trabalhar e caminhar à noite como antes não podiam”.

O Talibã tem um legado trágico sobre sua cabeça, mas a formação de um novo governo após sua recente vitória pode apresentar-se como uma segunda chance ao movimento, em particular, no que concerne suas relações com o mundo. O Talibã venceu sua luta armada, agora deve conquistar legitimidade via diplomacia.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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