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Por um dia de liberdade da Palestina: o apartheid israelense e o sul-africano

Yasser Arafat, Presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), encontra-se com o Presidente da África do Sul Nelson Mandela, na cúpula da Organização de Unidade Africana, em Túnis, Tunísia, 13 de junho de 1994 [Fethi Belaid/AFP/Getty Images]
Yasser Arafat, Presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), encontra-se com o Presidente da África do Sul Nelson Mandela, na cúpula da Organização de Unidade Africana, em Túnis, Tunísia, 13 de junho de 1994 [Fethi Belaid/AFP/Getty Images]

O dia da liberdade da África do Sul marca o aniversário do fim definitivo do regime de apartheid instaurado em 1948 no país, com as primeiras eleições democráticas e multirraciais. No dia 27 de abril de 1994, os sul-africanos elegeram, Nelson Mandela, o primeiro presidente negro do país e ícone na luta anti-apartheid. Neste ano, no 27º aniversário da liberdade política sul-africana, um importante passo foi dado para que a Palestina também conquiste a liberdade: um maior reconhecimento do crime de apartheid cometido pelos israelenses nos Territórios Palestinos Ocupados.

Ontem (27), a ONG Human Rights Watch (HRW) divulgou seu relatório denunciando os crimes de apartheid cometidos por Israel. A organização, que é uma das referências no campo de direitos humanos, examinou o tratamento dado por Israel aos palestinos, apontando graves abusos cometidos para manter a dominação dos israelenses judeus sobre os palestinos. A conclusão foi a mesma que a da ONG israelense B’Teselem, e de uma infinidade de organizações da sociedade civil, personalidades e estudiosos: o povo palestino sofre com o apartheid, um sistema de discriminação sistemática que defende a supremacia de um grupo, judeus, sobre os outros, os palestinos.

“Originalmente cunhado em relação à África do Sul, o apartheid é hoje um termo jurídico universal. A proibição contra a discriminação e opressão institucional particularmente severa ou o apartheid constitui um princípio central do direito internacional. A Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime do Apartheid de 1973 e o Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional (TPI) de 1998 definem o apartheid como um crime contra a humanidade que consiste em três elementos principais: a intenção de manter a dominação de um grupo racial sobre outro; um contexto de opressão sistemática por parte do grupo dominante sobre o grupo marginalizado; e atos desumanos”, explica a HRW no relatório “Um limiar cruzado”.

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O ícone global do fim do apartheid e liderança do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), Nelson Mandela foi libertado em 1990, após 27 anos no cárcere como preso político. Ele nunca abandonou o sonho de unir o país, com a ideia de “uma pessoa um voto”, não abandonou os príncipios morais da ANC e nunca colaborou com o regime de apartheid.

Como presidente, ele reconheceu a Palestina como estado, formalizou as relações diplomáticas e demonstrou solidariedade à causa. Em um discurso no Dia Internacional da Solidariedade com o Povo Palestino, em 1997, Mandela afirmou: “Sabemos muito bem que nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”.

“Tendo alcançado nossa própria liberdade, é possível cair na armadilha de lavar nossas mãos diante de dificuldades que outros enfrentam. No entanto, seríamos menos que humanos se o fizéssemos”, disse ele. “Cabe a todos os sul-africanos, eles mesmos beneficiários de generoso apoio internacional, levantarem-se e serem contabilizados entre aqueles que contribuem ativamente para a causa da liberdade e da justiça”.

Marwan Barghouti, um importante lider palestino membro do Fatah e preso político desde 2002, escreveu para Mandela em homenagem a morte do sul-africano: “De dentro da minha cela na prisão eu lhe digo que nossa liberdade parece possível depois que você conquistou a sua. O apartheid não venceu na África do Sul e não vencerá na Palestina”. Barghouti é chamado de o “Mandela palestino” pelos seus partidários, considerado uma liderança capaz de unir a Palestina e, assim como Mandela, foi sentenciado a prisão perpétua.

O bispo sul-africano Desmont Tutu visitou a Palestina em 1989, nesse ano ele fez um discurso em Boston intitulado “Ocupação é opressão” onde fez associações entre os dois regimes segregacionistas. “Eu testemunhei a humilhação dos palestinos nos bloqueios rodoviários”. disse, “A exigência áspera e descortês por identificação dos palestinos foi uma lembrança sinistra das infames reides da lei do passe do horrendo regime do apartheid”.

Em 2015 o bispo Tutu, que ganhou o Nobel da Paz em 1984 por sua luta pelo fim do apartheid, escreveu aos músicos brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso para que não se apresentassem em Tel Aviv em solidariedade ao povo palestino.

“Nós, sul-africanos, sofremos décadas de apartheid e podemos reconhecer isso em outros lugares. Eu, pessoalmente, testemunhei a realidade de apartheid que Israel criou dentro de suas fronteiras e nos territórios palestinos ocupados. Eu vi as ruas ocupadas, colonizadas e racialmente segregadas de Hebron, as colônias exclusivamente judaicas, e eu andei ao lado do Muro que divide famílias palestinas em Belém e impede suas crianças de terem acesso normal à escola. Eu vi o sistema racializado de carteiras de identidade, as cores diferentes para placas de carro, e as leis raciais que discriminam contra palestinos”, escreveu.

“Mas eu também conheci a luta não violenta do povo palestino para pôr fim ao regime de opressão que lhes nega seus direitos e dignidade. Eles têm apelado ao mundo para pressionar Israel, assim como foi feito contra a África do Sul do apartheid, para acabar com a ocupação e as violações de direito internacional. Eu tenho apoiado seu movimento não violento de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) em busca da justiça, liberdade e igualdade para todos”, afirmou, completando que “sem o isolamento internacional do regime de apartheid da África do Sul, incluindo o apoio ao boicote cultural, nós não poderíamos ter alcançado a nossa liberdade”.

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O movimento BDS é inspirado no movimento anti-apartheid sul-africano, campanha de boicote internacional que ajudou a derrubar o regime de segregação racial da África do Sul.   Responde a um chamado da sociedade civil palestina de 2005 por liberdade, justiça e igualdade através da resistência não-violenta e solidariedade internacional.

Ronnie Kasrils, um dos principais membros do ANC durante o apartheid sul-africano e ministro de Defesa durante o governo de Nelson Mandela, escreveu em 2019 um artigo para o The Guardian intitulado “Lutei contra o apartheid sul-africano. Vejo as mesmas políticas brutais em Israel”. Ele lembrou que durante a luta sul-africana contra o apartheid, eles eram acusados de seguir uma agenda comunista e hoje, “a propaganda de Israel segue um caminho semelhante”, acusando de antissemitismo qualquer posição contrária a Israel.

“Os paralelos com a África do Sul são muitos”, afirmou Kasrils. Ele lembrou a fala do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em 9 de março de 2019, em que alegou que Israel é o estado nacional do povo judeu – e apenas deles. “Afirmações racistas semelhantes eram comuns na África do Sul do apartheid. Argumentamos que uma paz justa poderia ser alcançada, e que os brancos só encontrariam segurança em uma sociedade unitária, não racista e democrática depois de acabar com a opressão dos sul-africanos negros e proporcionar liberdade e igualdade para todos”.

Ele também reiterou seu apoio ao movimento BDS e frisou a importância que o boicote e as sanções internacionais tiveram na libertação da África do Sul.  “Cada passo é importante – pressionar as instituições e corporações que são cúmplices dos crimes de Israel e apoiar os palestinos em sua luta pela libertação. Não se trata de destruir Israel e seu povo, mas de trabalhar por uma solução justa, como fizemos na África do Sul.

É dever dos defensores da justiça em todo o mundo se mobilizar em solidariedade com os palestinos para ajudar a inaugurar uma era de liberdade”, disse Kasrils.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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