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ONU e Líbia: o hábito de colocar a carroça antes dos bois

Líbia
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, se dirige aos participantes na abertura do Fórum de Diálogo Político da Líbia realizado em Gammarth, nos arredores da capital da Tunísia, em 9 de novembro de 2020. [Fethi Belaid/ AFP via Getty Images]

Como organismo internacional encarregado da paz mundial, segurança e mediação de conflitos em todo o mundo, a Organização das Nações Unidas (ONU) está envolvida no conflito interno da Líbia desde o início.

O envolvimento foi rápido  – um tanto precipitado e imprudente desde o primeiro dia. Com o passar dos anos, a ONU passou a fazer parte do conflito, ao invés de ser a usual mediadora imparcial amplamente aceita por todos os protagonistas locais, como deveria ser.

Apenas onze dias após a erupção da agitação civil contra o governo de Muammar Gaddafi no leste da Líbia em 15 de fevereiro de 2011, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 1970, impondo um embargo de armas e acusando Kadafi, seu filho e seu chefe de inteligência no International Tribunal Criminal (TPI) de crimes contra a humanidade. A ONU ainda não conhece os fatos sobre o que realmente aconteceu.

As principais potências da ONU queriam aplicação das resoluções contra o governo de Kadafi. Foi um grande erro da ONU ficar ao lado do conflito interno do país. Mas a ONU estava avançando, construindo passos sobre seu erro inicial e se envolvendo cada vez mais na bagunça da Líbia, sem nenhuma estratégia de saída clara, muito menos uma solução permanente.

Quando os rebeldes prevaleceram na guerra, graças a uma extensa campanha de bombardeio aéreo da OTAN, com a mesma rapidez, em setembro de 2011, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 2009, criando sua Missão de Apoio na Líbia (UNSMIL, na sigla da ONU) sem muito de estratégia pensada.

Foi uma tentativa fracassada de criar uma Líbia democrática e pacífica.

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Os membros permanentes do Conselho de Segurança concluíram que eleições rápidas seriam a melhor solução para a Líbia e deveriam acontecer o mais rápido possível. As eleições ocorreram em junho de 2012, mas a reconciliação como base para um futuro Líbia foi esquecida. O que a Líbia precisava então era de um governo de transição por pelo menos mais um ano para coletar armas, desmantelar as milícias e lançar um processo de reconciliação nacional antes de quaisquer eleições. Claramente, aqui a carroça está na frente dos bois.

Indiretamente, isso ajudou as milícias a manterem territórios, dificultando qualquer futuro processo democrático pacífico.

No final de 2011, o Conselho de Segurança aprovou meia dúzia de resoluções sobre a Líbia, mas nenhuma delas foi reforçada o suficiente para enfrentar as questões críticas da reconciliação nacional e do desarmamento das milícias. No fundo, os combates no país nunca pararam, mas a guerra foi descentralizada para os níveis municipal e tribal com poucas reportagens da mídia convencional.

Em outubro de 2012, milícias armadas forçaram o parlamento eleito a votar, autorizando a invasão de Bani Walid, a sudoeste de Trípoli. Mais de 60.000 pessoas foram deslocadas, com centenas de vítimas civis.A UNSMIL não podia fazer muito, exceto assistir ao derramamento de sangue.

Nos anos seguintes, o mandato da UNSMIL continuou se expandindo, tocando todos os aspectos da vida e se afastando constantemente de seu objetivo político original de estabilizar o país dilacerado pela guerra e colocá-lo no caminho certo para a democracia.

A Líbia e o caos sem fim [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

A Líbia e o caos sem fim [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Em 2014, a UNSMIL se tornou mais um governo de fato do que uma missão política de assistência. Ele pressionou por mais uma eleição legislativa nacional em um país dividido e sem constituição. As eleições de junho de 2014 não produziram nenhum vencedor decisivo, desencadeando outra guerra.

Entre 2014 e o final de 2015, a Líbia teve duas autoridades concorrentes: o governo eleito e reconhecido pela ONU com base em Al-Byada, no leste, e um governo baseado em Trípoli conhecido como Governo de Salvação Nacional. Foi um disfarce para elementos violentos pertencentes ao ex-proscrito Grupo Combatente Islâmico Líbio.

No fundo, a UNSMIL continuou seus esforços para tirar a Líbia de suas trevas, mas tudo o que o órgão da ONU realmente podia fazer era tentar negociações, enquanto o país estava sendo inundado de armas. As milícias locais ganharam mais recursos, expandindo ainda mais seu controle.

Em dezembro de 2015, a UNSMIL liderou as negociações para a produção do Acordo Político da Líbia e a criação do Governo de Acordo Nacional (GNA, na sigla usual em inglês). O GNA deveria assumir o poder por no máximo dois anos se referendado pelo parlamento. Mas antes que isso acontecesse, o Conselho de Segurança cometeu outro erro ao aprovar a Resolução 2259, reconhecendo o GNA como o único governo legítimo na Líbia e retirando seu reconhecimento do governo eleito baseado em Al-Byada. O Parlamento rejeitou o GNA duas vezes, mas ele ainda está no cargo hoje.

Isso tornou a reconciliação mais difícil, desencadeando outra guerra mais sangrenta e devastadora quando o General rebelde Khalifa Haftar, em abril de 2019, ordenou que seu Exército Nacional da Líbia (LNA, na sigla usual em inglês) atacasse Trípoli na tentativa de depor o GNA.

Naquela época, a UNSMIL já estava profundamente enredada nos assuntos internos da Líbia, tornando-se o “ponto de partida” para todos os tipos de problemas em um país em colapso. Isso levou os Estados Unidos e outros membros do Conselho de Segurança, em 2019, a propor a divisão do UNSMIL em duas entidades: uma para questões humanitárias e outra para questões políticas.

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Isso acrescentou outra camada burocrática desnecessária à UNSMIL, forçando-a a aumentar seus recursos humanos e financeiros com poucos benefícios para a Líbia – o país que deveria ajudar.

Pior ainda, em novembro passado, a UNSMIL criou mais um novo órgão inconstitucional e não eleito chamado Fórum de Diálogo Político da Líbia (FDPL). Com exceção de alguns, o grupo de 75 membros do fórum não consiste de funcionários eleitos – eles não são eleitos nem representativos do país. Além disso, órgão tem o poder de nomear o primeiro-ministro e o conselho presidencial para a Líbia, o que fez em 5 de fevereiro. O novo governo deve passar por um voto de confiança do parlamento.

Surpreendentemente, o Conselho de Segurança emitiu uma declaração em 9 de fevereiro saudando essa “conquista”. Também exortou a nova autoridade executiva interina a concordar com a formação do novo governo. Ninguém, tanto no Conselho de Segurança  quanto no UNSMIL, parece notar que este executivo recém-designado só se tornará um executivo interino depois de ser aprovado pelo parlamento – não antes – como a declaração do UNSC exige. Mais uma vez, a UNSMIL está contornando quaisquer procedimentos democráticos devidos.

Pior ainda, se o parlamento dividido não aprovar o novo governo quando ele for formado, o FDPL tem o poder final para aprová-lo, conforme ditado pelo documento do roteiro da UNSMIL, que é o único quadro de referência. O que não está claro é o que acontecerá se o próprio FDPL rejeitar o governo. O roteiro não diz nada sobre essa possibilidade, exceto que UNSMIL veio para ficar.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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