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A Grande Divisão: Pandemia reflete racismo global, não igualdade

Profissional da saúde, com equipamentos de proteção, checa um paciente com coronavírus (covid-19), em Teerã, Irã, 20 de outubro de 2020 [Fatemeh Bahrami/Agência Anadolu]
Profissional da saúde, com equipamentos de proteção, checa um paciente com coronavírus (covid-19), em Teerã, Irã, 20 de outubro de 2020 [Fatemeh Bahrami/Agência Anadolu]

A noção de que a pandemia de covid-19 representa um “grande equalizador” deveria estar morta e enterrada a esta altura da crise. Caso queira classificá-la de algum modo, a doença mortal de fato é mais uma lembrança terrível das profundas divisões e desigualdades em nosso mundo. Dito isso, o tratamento disponível não deveria repetir os mesmos vergonhosos padrões.

Por quase um ano, celebridades abastadas e oficiais do governo tentam nos lembrar que “estamos juntos nessa” e “estamos no mesmo barco”. A cantora americana Madonna, por exemplo, discursou de sua mansão, submersa em um “banho de leite com pétalas de rosas”, e deu coro ao mito de “grande equalizador” sobre a pandemia. “Como eu costumo dizer no fim da canção Human Nature, todas as noites, estamos todos no mesmo barco. Caso o barco naufrague, naufragamos juntos”, declarou Madonna, segundo a rede CNN, neste ano.

Tais comentários de Madonna ou Ellen DeGeneres atraíram grande atenção da mídia, não apenas porque ambas são famosas, com um gigantesco culto de seguidores nas redes sociais, mas também porque deixaram evidente a hipocrisia óbvia em seus discursos vazios. Na verdade, ambas meramente repetiram os chavões utilizados por governos, celebridades e “influencers”, em todo o mundo.

Mas realmente “estamos no mesmo barco”? Com taxas de desemprego disparando mundialmente; centenas de milhões de pessoas lutando para alimentar seus filhos; e inúmeras famílias anônimas sem acesso a serviços de saúde apropriados, subsistindo somente com base na esperança e oração, para que possam sobreviver aos flagelos da miséria – sem contar a pandemia –, não podemos, em plena consciência, enunciar algo tão absurdo.

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Não apenas não “estamos no mesmo barco”, como jamais estivemos. Segundo dados do Banco Mundial, quase metade do planeta vive com menos de US$5.50 por dia. Esta triste estatística é parte de uma trajetória notável de desigualdade, que aflige a humanidade há muito tempo. O sofrimento de muitos dos pobres no mundo é ainda maior no caso dos refugiados de guerra e vítimas de terrorismo de estado, à medida que aqueles que mais possuem recursos se recusam a devolver ao menos uma parcela de sua fortuna, vastamente não merecida.

A metáfora do barco é particularmente interessante no caso dos refugiados, milhões dos quais tentaram desesperadamente fugir da guerra e da miséria em botes improvisados por mares traiçoeiros, em busca de alguma segurança. Tornou-se uma imagem familiar nos últimos anos, não somente no Mar Mediterrâneo, mas em todo o mundo, especialmente Burma, onde centenas de milhares de cidadãos rohingya tentam escapar de um genocídio em curso. Milhares de pessoas se afogaram na Baía de Bengala.

A pandemia de covid-19 acentuou e efetivamente acelerou as profundas desigualdades que existem individualmente em cada sociedade e no mundo como um todo. Segundo pesquisa de junho de 2020, conduzida nos Estados Unidos pelo Instituto Brookings, o número de mortes como resultado do coronavírus reflete uma flagrante lógica racial. Muitos indicadores incluídos no estado não deixam dúvida de que o racismo é um fator central no ciclo de vida do vírus.

Por exemplo, na faixa etária entre 45 e 54 anos, “as taxas de óbito entre negros e latinos/hispânicos são ao menos seis vezes maiores do que entre brancos”. Embora os brancos sejam 62% da população dos Estados Unidos, dado relativo a esta idade específica, apenas 22% do total de vítimas eram brancos. Comunidades negras e latinas são as mais devastadas.

Além disso, comunidades pobres tendem a empregos com baixos salários no setor de serviços, onde o distanciamento social é quase impossível. Com pouco ou nenhum apoio do governo para ajudar as pessoas a sobreviver ao lockdown ou à própria pandemia, fazem tudo que podem para prover a seus filhos, quando então são infectadas pelo vírus e, em números exponenciais, morrem.

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Esta desigualdade deve manter-se conforme as vacinas tornam-se disponíveis. Enquanto muitas nações ocidentais já lançaram ou marcaram suas campanhas de vacinação, os países mais pobres terão de aguardar em uma longa fila antes de ter acesso a um imunizante capaz de salvar milhares de vidas.

Em 67 países pobres ou em desenvolvimento, situados em maioria na África ou Hemisfério Sul, apenas um entre cada dez indivíduos serão vacinados até o fim de 2020, conforme estimativa divulgada pela Fortune Magazine. A preocupante reportagem cita ainda um estudo conduzido por uma coalizão de direitos humanos, a Aliança de Vacina ao Povo (PVA), que inclui a Oxfam e a Anistia Internacional.

Caso haja algo próximo a uma estratégia, nesta altura da crise, é o deplorável “acúmulo” de vacina nas mãos dos estados ricos. A dra. Mohga Kamal-Yanni, membro da PVA, enunciou esta perspectiva trágica, ao destacar: “Países mais ricos têm doses suficientes para vacinar a todos quase três vezes consecutivas, enquanto países pobres não têm o bastante sequer para alcançar a imunização de trabalhadores de saúde e grupos de risco”. Grande coisa as inúmeras conferências com sermões sobre uma “resposta global” à pandemia, certo?

Tem de ser assim? Embora muito provável que as desigualdades de classe, raça e gênero continuarão a assolar as sociedades humanas após a pandemia, como antes fizeram, também seria possível aos governos utilizarem esta tragédia coletiva como oportunidade para construir pontes e superar o abismo da desigualdade, mesmo que pouco a pouco, com um a pequena pedra fundamental, capaz de sugerir um futuro mais justo a todos. Comunidades pobres e minorias étnicas não deveriam ter de morrer aos montes, quando uma vacina, disponível em abundância, poderia salvar suas vidas.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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