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A Palestina sangra – Execução de cidadão autista não é exceção à regra

Fotografia do palestino Eyad Hallaq, de 32 anos, que foi morto pela polícia israelense a despeito ser autista, no chamado Portão do Leão da Cidade Velha de Jerusalém, em 30 de maio de 2020 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]
Fotografia do palestino Eyad Hallaq, de 32 anos, que foi morto pela polícia israelense a despeito ser autista, no chamado Portão do Leão da Cidade Velha de Jerusalém, em 30 de maio de 2020 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]

Um homem de 32 anos com graves transtornos mentais, com a sensibilidade de um a criança de oito anos, foi executado por soldados israelenses no dia 30 de maio, agachado em pânico atrás de sua professora, perto de sua escola especial, na Cidade Velha de Jerusalém.

O assassinato a sangue frio de Eyad Hallaq poderia não atrair tamanha atenção se não fosse por ocorrer somente cinco dias depois do assassinato igualmente comovente de George Floyd, cidadão negro de 46 anos, morto pela polícia dos Estados Unidos, na cidade de Minneapolis.

Os dois crimes convergem, não apenas em sua repugnância e na decadência moral de seus autores, como também pelo fato de que inúmeros policiais americanos recebem treinamento específico em Israel, conduzido pelas próprias “forças de segurança” israelenses, precisamente responsáveis pela morte de Hallaq. A prática de matar civis, com eficiência e insensibilidade, representa hoje um mercado florescente. Israel é o maior fornecedor deste mercado global; Estados Unidos são o maior cliente.

Milhares de pessoas tomaram as ruas da Palestina, incluindo centenas de ativistas palestinos e israelenses, muçulmanos e judeus, na cidade ocupada de Jerusalém, e entoaram palavras de ordem, como “Justiça a Eyad, justiça a George”, em apelo que mostrou-se reação espontânea e sincera a crimes tão severos e tão flagrantes.

A história de Hallaq pode parecer única: então “suspeito de terrorismo”, o palestino foi morto ao atravessar a Rua Rei Faisal, em Jerusalém, apenas para ajudar a retirar o lixo.

O cidadão autista tinha pânico de soldados e morria de medo de sangue.

“[Eyad Hallaq] também tinha medo dos policiais armados posicionados no caminho para o centro de necessidades especiais que frequentava, onde participava de um programa de treinamento profissional”, relatou o jornal israelense Haaretz.

Os muitos temores de Hallaq, que podem parecer exagerados, mostraram-se verdadeiros. Mesmo uma pessoa autista na Palestina não está a salvo da sentença de morte dos soldados israelenses.

Hallaq, porém, não precisava morrer para Israel exibir novamente seu senso patológico de “segurança”. O fato de já estar baleado, ferido, sangrando abandonado em um pequeno depósito de lixo na Cidade Velha de Jerusalém não foi suficiente para poupá-lo daquele horrível destino final. O fato de gritar em agonia, esconder-se atrás de sua cuidadora, implorar para que parassem de perfurar seu corpo a tiros tampouco foi suficiente.

Ainda assim, os soldados avançaram e, de uma distância bastante próxima, dispararam três tiros fatais no tórax de Hallaq, caído sobre as próprias costas. Então, o jovem cidadão, a “maçã nos olhos de seus pais”, deixou de respirar.

“Era o amor de nossa mãe, era sua vida”, declarou Diana Hallaq, irmã da vítima, em entrevista à revista +972. Prosseguiu:

Ela segurava sua mão como se fosse um bebê e caminhavam juntos até o mercado ou à mesquita ou à loja de roupas. Ele era como sua sombra. Ela se preocupava com ele, preocupava-se se as outras crianças poderiam perturbá-lo ou machucá-lo.

Pegos com a guarda baixa pela natureza hedionda do assassinato e pelo estado mental da vítima, peritos médicos israelenses rapidamente voltaram-se a conter os danos. A princípio, espalharam mentiras sobre Hallaq, ao alegar que o palestino carregava uma arma de brinquedo no momento da execução. Então recuaram, prometendo investigação.

Mas o que há ainda a investigar? Nos últimos anos, o Exército de Israel atualizou seu código de conduta, ao adotar uma política de atirar para matar, contra qualquer palestino suspeito de tentar ferir soldados da ocupação israelense, mesmo quando o suposto “agressor” não imponha qualquer ameaça real.

LEIA: Israel matou palestino autists que “não sabia o que são soldado

No caso de Gaza, onde manifestantes são dispersados de franco-atiradores israelenses por arame farpado e quase uma milha de espaço ermo, o exército israelense emitiu ordens expressas, em junho de 2019, para atirar e matar “instigadores” nos protestos de massa, mesmo em “posição de repouso”. Centenas de pessoas foram assassinadas durante a Grande Marcha do Retorno em Gaza, desta maneira; “instigadores” incluíram médicos, jornalistas e menores de idade, meninos e meninas.

De fato, o assassinato de civis palestinos é absolutamente recorrente. É a rotina devastadora com a qual palestinos são forçados a coexistir por anos e anos, e pela qual Israel jamais é devidamente responsabilizado.

Apenas um dia antes da execução de Hallaq, Fadi Samara Qaad, 37 anos, foi morto por soldados da ocupação israelense enquanto dirigia seu carro perto da aldeia palestina de Nabi Saleh, a oeste de Ramallah, Cisjordânia ocupada.

O exército israelense imediatamente alegou que Qaad “tentou avançar com o carro contra um grupo de soldados”, quando então atiraram e o mataram no local.

Esta é a desculpa costumeira apresentada pelos militares de Israel, quando um motorista palestino é executado a tiros por soldados da ocupação. Em outros casos, a vítima – seja homem, mulher ou criança – é logo acusada de carregar um “objeto afiado”.

A deficiência mental de Hallaq poderia tê-lo poupado, aos olhos de alguns, de representar o estereótipo marcante de “terrorista”, embora o exército israelense tenha imediatamente invadido sua casa, em busca de “evidências” para incriminá-lo, de algum modo úteis à sua sinistra propaganda.

No caso de Qaad, o trabalhador palestino morto perto de Ramallah, a caminho de sua casa para encontrar-se com a esposa e celebrar o Eid (feriado islâmico do fim do Ramadã), bastou a declaração do exército israelense, sem qualquer evidência, em versão tratada como consenso.

Trata-se da mesma lógica sufocante que prevalece na Palestina há décadas, ainda em curso. Crianças são mortas por atirar pedras contra homens pesadamente armados, que invadiram suas casas e aldeias; mulheres grávidas são executadas a tiros nos checkpoints israelenses; deficientes físicos, com membros amputados ou em cadeira de rodas, são baleados com precisão por franco-atiradores durante protestos cuja única reivindicação é obter liberdade.

Tudo isso ocorre na ausência completa de qualquer horizonte político viável. Mesmo o tão postergado “processo de paz”, reiteradamente fútil, foi suspenso em favor de um maior apoio dos Estados Unidos a Israel e à ensandecida pressa do governo israelense para expandir seus assentamentos ilegais discriminatórios nos territórios ocupados.

Para assegurar suas conquistas coloniais – leia-se: roubo de terras – o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu está prestes a revelar a joia da coroa de seu legado, à medida que prepara expandir as fronteiras de Israel por meio da anexação e expropriação de mais e mais terras palestinas.

Inspirados pela luta comum que os conecta a seus irmãos afro-americanos, os palestinos compartilham agora ao menos seus gritos por justiça: Vidas Palestinas Importam! Ao menos uma vez, possuem esperanças de que o mundo possa ouví-los e responder a seus gritos e, quem sabe, fazer alguma coisa.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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