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‘Meu filho deveria estar com seus amigos, não em uma prisão egípcia’, afirma Um Ibrahim

Ibrahim e seu pai poucos dias antes de ser preso, no Egito, 8 de abril de 2020

Quando Ibrahim foi preso era um dia de verão em Arish, capital do Sinai do Norte. O menino vestia uma camiseta e jeans claros. Após dois invernos de sua prisão, sua mãe se preocupa se Ibrahim passa frio, se há roupas ou cobertores suficientes para aquecer seu filho.

Em 25 de julho de 2018, forças de segurança invadiram a residência de Um Ibrahim (em árabe, “mãe do Ibrahim”) e prenderam seu marido. No dia seguinte, retornaram em busca da esposa e de seu filho, com apenas catorze anos na época. Ibrahim estava no terceiro ano da escola preparatória e era um menino como qualquer outro. “Ele amava brincar, como todas as crianças”, relata a mãe.

Seu marido, Mohammed Shaheen, possuía uma loja de peças sobressalentes para carros. Quando não estava estudando, Ibrahim ajudava seu pai no trabalho. Além de Ibrahim, o casal teve quatro filhos: três meninas e um menino.

A família mudou-se de Arish a Rafah alguns anos antes da cidade de fronteira com Gaza ser completamente devastada por forças do governo. Na ocasião, 70.000 a 100.000 pessoas foram deslocadas à forças como parte das severas medidas repressivas do governo, sob pretexto de “guerra ao terror”. Até então, Um Ibrahim e sua família não receberam qualquer indenização.

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Um Ibrahim nos mostrou uma imagem de seu filho e seu marido tirada poucos dias antes da prisão. Mohammed é um homem magro de óculos e olha diretamente para a câmera, os braços cruzados sobre o peito. Ibrahim está à sua esquerda, vestindo uma camiseta cinza de futebol americano. O menino tem cabelos pretos e sorri – algo bastante distante da última imagem que a mãe possui de seu filho: encarcerado em uma das infames prisões do Egito.

Parentes de presos falam com eles através de pesadas grades, em um tribunal no Cairo, Egito, 9 de agosto de 2015 [Stringer/Apaimages]

“Ele estava doente, assustado, faminto”, recorda a mãe, sobre seu último encontro, cinco dias após a prisão, no dia em que foi libertada sozinha. “Não havia comida nem água na prisão. Só Deus sabe o que aconteceu com ele depois. Não sei nada sobre ele ou o lugar em que está preso. Não sei sequer se está vivo ou morto.”

Em meados de agosto, Um Ibrahim submeteu uma reclamação ao procurador-geral sobre o desaparecimento de seu marido e filho, exigindo que localização de seus parentes fosse revelada pelas autoridades, mas não recebeu resposta. Então, quase dois meses após a prisão de Mohammed e Ibrahim, a mãe estava no Facebook quando viu o nome de seu marido na página oficial do Exército. Um Ibrahim pôde ver o corpo do marido na fotografia, com ferimentos e hematomas nos braços e pernas. Um colega de prisão relatou a ela que Mohammed foi torturado até a morte dentro da prisão.

“Escreveram-me que ele foi morto durante uma operação antiterrorista no Sinai. Soube que foi morto por forças de segurança junto de outros detentos. Disseram que ele era um terrorista!”

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Por um mês, Ibrahim não teve acesso ao corpo. Quando finalmente pode vê-lo, descreveu o odor como avassalador. “Não dava para ver seu rosto, apenas os dentes”, relata. Ela mostrou fotografias de seu marido à equipe e disseram que era ele. “Um amigo muito próximo da família entrou no necrotério e garantiu que era ele”, prosseguiu a esposa.

Dois dos irmãos de Um Ibrahim foram presos e condenados a prisão perpétua. Um deles está detido na célebre Prisão de Tora, no Cairo; o outro está na Prisão de Minya, cerca de 245 km a sul da capital, na margem ocidental do Rio Nilo. Um terceiro irmão é procurado pelo Exército sob acusações de pertencer a uma organização do Sinai filiada ao Daesh (Estado Islâmico). “Não temos notícias dele há muito tempo. Soubemos por algumas pessoas que ele foi morto, mas as autoridades não acreditam em nós porque não viram seu corpo.”

“Meu marido e meus dois irmãos foram presos em seu lugar. Meu marido foi detido e morto por essa razão, simplesmente porque não encontraram seu cunhado”, relata Um Ibrahim.

Um ano e oito meses após a prisão de seu filho, Um Ibrahim tem uma nova preocupação que lhe tira o sono: a pandemia de covid-19, capaz de explodir a qualquer momento nas prisões do Egito. Ativistas pedem às autoridades que libertem prisioneiros políticos por medo de que um surto dentro dos centros de detenção não possa ser contido. “Tenho muito medo de que o coronavírus espalhe-se entre os detidos. Tenho medo de que meu filho seja infectado”, afirmar Um Ibrahim. “Os presos – em particular, os desaparecidos – costumam ser mantidos em condições imundas, sem qualquer ventilação. São lugares insalubres para qualquer ser humano, imagine crianças, é bastante perigoso … Graças a Deus não há nenhum caso registrado de coronavírus no Sinai até então, mas temo pelo meu filho.”

Ibrahim antes de ser preso no Egito, em 8 de abril de 2020

Nossa entrevista com Um Ibrahim ocorreu pouco depois da ampla divulgação de um relatório da organização Human Rights Watch, que reportou detalhadamente abusos contra vinte menores entre 12 e 17 anos, cometidos pelas autoridades nos centros de detenção do Egito. O relatório possui detalhes apavorantes e relata casos de tortura por choques elétricos, afogamento simulado, entre outros métodos.

Este abuso é estimulado e facilitado por promotores e juízes que lavam as mãos diante dos relatos, denuncia a organização de direitos humanos. O documento também define como algo generalizado e sistemático os casos de detenção arbitrária e abuso de menores no país – fato corroborado pela história de Ibrahim.

Embora grupos de direitos humanos reiterem consistentemente que crianças não podem ser indiciadas senão como último recurso e de acordo com padrões internacionais de justiça infanto-juvenil, a situação no Egito é algo particularmente difícil para menores como Ibrahim, dado que o governo encobre informações provenientes do Sinai, por exemplo, ao impedir acesso de ativistas e jornalistas que eventualmente possam denunciar os diversos casos.

Ainda assim, ao longo da campanha militar egípcia na Península do Sinai, evidências em vídeo emergiram com certa frequência, registrando a execução sumária de civis desarmados pelas forças armadas. Após assassinados, os civis são representados como terroristas para encobrir os inúmeros relatos de crimes de guerra, incluindo contra crianças.

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Sem seu marido, Um Ibrahim teme que esteja completamente abandonada. Emigrou da Palestina ao Egito com sua família, em 1984; viveu um ano no Cairo antes de se estabelecer no norte do Sinai. Seu marido também é palestino, mas possui cidadania egípcia. Seus filhos, portanto, também têm direito a nacionalidade egípcia, mas Um Ibrahim ainda é considerada somente palestina.

Esta é apenas mais uma de suas preocupações, dado que o atual governo elevou o tom de animosidade contra palestinos, frequentemente discriminados no que se refere a direitos básicos, como educação, trabalho e residência. “Todas as portas se fecharam a mim porque sou palestina. Não posso pedir residência nem mesmo pensão aos meus filhos. Preciso de ajuda, preciso saber onde está meu filho. Ele é uma criança que deveria estar com seus amigos agora, que deveria estar na escola, e não na prisão.”

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