Somente um dia antes da chamada Fundação Humanitária de Gaza (GHF) começar a operar oficialmente dentro da Faixa de Gaza, seu diretor executivo, Jake Wood, renunciou ao cargo.
O texto de sua demissão destacou o que muitos já suspeitavam: a GHF não é uma iniciativa humanitário, mas o golpe mais recente do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, na tentativa de controlar Gaza, após 600 dias de genocídio.
“Está claro que não é possível implementar este plano e, ao mesmo tempo, aderir rigorosamente aos princípios humanitários de neutralidade, imparcialidade e independência”, disse Wood no comunicado, citado pela CNN e outros veículos.
Fica a questão: por que essa conclusão ficou “clara” a Wood, mesmo que a operação ainda sequer estivesse em vigor? O restante do comunicado oferece alguma explicação, sugerindo que o prestador americano pode não ter reconhecido a extensão do plano israelense em um primeiro momento, mas percebeu o desastre que estava porvir — bem como sua investigação e, possivelmente, responsabilização.
De fato, autoridades suíças já haviam deflagrado uma investigação. A rede americana CBS apurou o caso, notando que, em 31 de janeiro, a GHF requereu registro em Genebra, obtido então em 12 de fevereiro. No entanto, em pouco tempo, as autoridades suíças passar a notar violações reiteradas, incluindo o fato de que a filial suíça “deixa de cumprir diversas obrigações legais”.
Na sua solicitação original, a GHF afirmava “perseguir exclusivamente objetivos filantrópicos e caritativos em benefício da população”. Estranhamente, a entidade que prometeu fornecer serviços “materiais, psicológicos ou de saúde” aos palestinos famintos considerou necessário empregar 300 mercenários americanos “fortemente armados”, com “tanta munição quanto pudessem carregar”, confirmou a CBS.
O “apoio psicológico”, em particular, foi o mais irônico, já que palestinos desesperados foram encurralados, em 27 de maio, em gaiolas sob temperaturas altíssimas, para receber quantidades ínfimas de comida que, conforme denúncia de Rami Abdu, diretor do Monitor Euromediterrâneo — sediado em Genebra — haviam sido roubadas de uma instituição beneficente americana chamada Rahma Worldwide.
Após a reportagem da CBS, dentre muitas outras, e após dias de caos e violência em Gaza — onde pelo menos 49 palestinos foram mortos e mais de 300 feridos por aqueles que prometeram ajuda e alívio —, o jornal israelense Haaretz revelou que o financiamento da operação vinha diretamente de Israel.
O proeminente deputado israelense Avigdor Lieberman foi ainda mais longe, ao admitir que o dinheiro, estimado pelo jornal The Washington Post em US$100 milhões, “vinha do Mossad e do Ministério da Defesa”.
Mas por que Israel passaria por todo esse trabalho, quando poderia, sem custo financeiro, simplesmente permitir que os enormes carregamentos de ajuda humanitária — que, segundo relatos, estão apodrecendo do lado egípcio da fronteira — entrassem em Gaza e evitassem a fome?
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Na mente deturpada do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o mecanismo de assistência faz parte da guerra. Em mensagem em vídeo, reportada pelo The Jerusalem Post em 19 de maio, Netanyahu descreveu os novos pontos de distribuição de ajuda, operados conjuntamente pela GHF e pelo exército israelense, como “paralelos à enorme pressão” que seu regime impõe aos palestinos — exemplificada pela “entrada maciça [militar] em Gaza” — a fim de “assumir o controle de toda a faixa”.
Nas próprias palavras de Netanyahu, tudo isso — a ajuda organizada pelo exército e o genocídio em curso — faz parte do “plano de guerra e vitória”.
Naturalmente, palestinos e grupos de ajuda internacional atuantes em Gaza — incluindo organizações vinculadas às Nações Unidas — estavam plenamente cientes de que o esquema secreto entre Israel e Estados Unidos abundava em más intenções. Certamente por isso, não quiseram ter qualquer envolvimento com ele.
Na lógica de Israel, qualquer mecanismo assistencial que mantivesse o status quo existente antes do genocídio, deflagrado em 7 de outubro de 2023, seria equivalente a uma confissão de derrota. É por isso que Israel se esforçou para associar a Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestinas (UNRWA) ao movimento Hamas — incluindo ao criminalizar suas atividades.
Tais esforços incluíram o lançamento de uma campanha virulenta contra o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, bem como outros oficiais de alto escalão e relatores de direitos humanos do órgão internacional. Em 22 de julho, o parlamento israelense (Knesset) chegou ao extremo de classificar a UNRWA como uma “organização terrorista”.
Ainda assim, pode parecer contradição que figuras como o ministro das Finanças de Israel e militante colonial, Bezalel Smotrich, tenham concordado com esse esquema de “assistência” poucos dias depois de declarar que a intenção de Israel é “destruir completamente” a Faixa de Gaza.
Não há, contudo, contradição alguma. Após falhar em conquistar Gaza pela força brutal, Israel recorre agora a um recente mecanismo assistencial, para se aproveitar da fome que ele mesmo provocou deliberadamente no curso de meses.
Ao atrair pessoas para “pontos de distribuição”, o exército israelense busca concentrar a população de Gaza em áreas facilmente controladas por meio do alimento como moeda de manipulação. Seu objetivo final é ainda expulsar os palestinos, nas palavras de Smotrich, “em grande número para países terceiros”.
É provável que o mais recente plano fracasse, assim como outras manobras similares dos últimos 600 dias. Todavia, tamanho tratamento desumano e degradante perpetrado aos palestinos ressalta ainda mais a obstinação de Israel em ignorar a crescente pressão internacional para pôr fim a seu genocídio.
Para que Israel pare de tramar esquemas, a comunidade internacional precisa transformar palavras duras em ações concretas — e responsabilizar não apenas Israel, como também seus próprios cidadãos envolvidos na GHF e em outras artimanhas, por fazerem parte dos crimes de guerra e lesa-humanidade em curso em Gaza.
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