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Entre a ruína e a resiliência: Sectarismo no Líbano e caminho para a sobrevivência

4 de março de 2025, às 06h00

Milhares se reúnem no estádio Camille Chamoun para o velório de Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah morto por Israel, em Beirute, no Líbano, em 23 de fevereiro de 2025 [Çagrı Kosak/Agência Anadolu]

O cortejo fúnebre do secretário-geral do movimento Hezbollah, Hassan Nasrallah, e do chefe de seu Conselho Executivo, Hashem Safieddine, reuniu centenas de milhares de pessoas no Líbano e ao redor do mundo. Ao congregar diversas seitas, a multidão pareceu projetar um poderoso retrato de união nacional. A escala do evento emitiu, de fato, uma mensagem clara ao mundo: apesar da recente devastação causada pelos ataques de Israel, a base do Hezbollah permanece profundamente leal a seus ideais. Para muitas comunidades xiitas, especialmente no Vale do Beqaa e no sul do Líbano, Nasrallah não era apenas um líder político, mas um símbolo de resistência à ocupação israelense. Seu funeral tornou-se um marco de união para quem vê o Hezbollah como defensor de sua identidade e dignidade.

No entanto, por trás de tamanha demonstração de unidade, dúvidas persistem sobre o futuro do grupo. A guerra deixou o Líbano em ruínas, com bairros inteiros destruídos e milhares de deslocados à força. Embora o Hezbollah insista que o cessar-fogo representa uma vitória, ao notar que a incapacidade de Israel de ganhar terreno compeliu a interrupção das hostilidades, outros veem as consequências do conflito como um revés para o movimento. Críticos apontam o alto custo da guerra: a perda de líderes proeminentes, a devastação econômica e o crescente ressentimento entre comunidades não-xiitas, que culpam o Hezbollah por supostamente provocar a crise. Tamanhas contradições alimentam debates sobre a eventual queda na influência do grupo, seja no campo de batalha ou no cenário fragmentado da política libanesa.

A unidade vista no funeral, porém, pouco omite as profundas divisões na sociedade do país. O sectarismo é uma característica marcante da política do Líbano, quase como uma doença sem cura. Desde o Pacto Nacional de 1943 até o Acordo de Taif de 1989, o sistema político libanês institucionalizou divisões sectárias, ao garantir que o poder fosse distribuído entre seus grupos religiosos, e não entre seus cidadãos. Esse sistema incentivou o clientelismo, com líderes políticos dependentes da lealdade sectária para manter posições. A crise recente aprofundou essas divisões históricas. Enquanto apoiadores do Hezbollah consideram o grupo como um baluarte necessário contra as sucessivas agressões de Israel, outros o culpam por arrastar o Líbano a um conflito com que o país não poderia arcar. O resultado é uma sociedade cada vez mais polarizada, entre aqueles que apoiam o Hezbollah e suas escolhas e aqueles que ainda o consideram como um obstáculo à estabilidade nacional.

A ideologia do Hezbollah é a força motriz da resiliência na comunidade xiita. Multidões passaram a noite em Beirute para comparecer ao funeral de Nasrallah no dia seguinte. Os números impressionantes, os testemunhos e as emoções expressas por essas comunidades, que perderam familiares e casas para os bombardeios de Israel, projetaram uma noção clara de que a base do Hezbollah ainda existe. Em busca de refúgio em outras áreas do Líbano, porém, tais comunidades sofreram discriminação. Apesar de relatos sobre união perante a crise, vozes nas ruas ainda culpam o Hezbollah pela guerra. Houve aqueles que negassem alugar suas casas a deslocados que porventura apoiassem o grupo, sob supostos receios de que suas propriedades fossem bombardeadas, ou por simples sectarismo e — em termos mais duros — ódio e exclusão.

Para o futuro da coexistência no Líbano, este caldeirão é deveras perigoso. Grande parte da comunidade e da economia do país depende do turismo, e a guerra — cuja responsabilidade se atribuiu, por alguns, ao Hezbollah — impactou enormemente o setor, fonte de sustento para muitos. Além disso, é fato conhecido que o número de libaneses expatriados pelo mundo supera o de cidadãos que residem no país. Isso implica em um ensejo da diáspora libanesa em visitar o país pacificamente — algo impossibilitado pela guerra.

O país permanece dividido entre comunidades guiadas por ideologias aparentemente irreconciliáveis. Nas aldeias do sul — reduto do Hezbollah —, residentes veem a resistência a Israel como um dever sagrado ligado à identidade xiita. Nos bairros cosmopolitas de Beirute, empreendedores de mentalidade secular argumentam que conflitos intermináveis afastam investidores e turistas. Vale notar que esses grupos divergentes vivem a poucos quilômetros de distância, enquanto suas prioridades — sobrevivência versus prosperidade — refletem um país separado por objetivos opostos.

Além disso, a história do Líbano é uma série de crises, cada qual exacerbando divisões sectárias que assolam o país desde sua independência. Todavia, o sectarismo não é apenas uma questão de dimensões políticas, como se infiltrou em todos os aspectos da vida, desde o acesso a empregos e moradia até educação e saúde. A última década foi particularmente brutal: a crise dos refugiados sírios sobrecarregou recursos e aumentou tensões entre comunidades; a pandemia de covid-19 expôs a fragilidade do sistema de saúde; o colapso econômico de 2019 destruiu mergulhou milhões na pobreza; e a explosão no porto de Beirute em 2020 revelou a corrupção e a incompetência da classe política. O recente conflito com Israel — no contexto do genocídio em Gaza — somente aprofundou um sentimento de desespero. A cada crise, o tecido social se desgasta ainda mais, aumentando o temor de que o Líbano possa mergulhar em uma nova guerra civil.

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O dilema é real. As pessoas têm o direito de viver em paz, sobretudo porque sofreram o bastante, e é mais fácil culpar o “outro” — neste caso, apoiadores ou detratores do Hezbollah. No entanto, a definição de paz varia entre as comunidades do país. Há quem acredite que a paz não é possível enquanto o Estado de Israel existir como entidade colonial e expansionista imediatamente ao sul, e há quem prefira não se envolver ativamente no conflito e focar em revitalizar o Líbano e solucionar primeiro seus diversos problemas.

É claro que nenhum grupo pode excluir o outro — tampouco deveria —, mas os recentes desenvolvimentos tornaram a coexistência entre pessoas com ideologias políticas e religiosas distintas mais difícil do que nunca. Tudo isso nos leva a perguntar se podermos estar à beira de uma nova guerra civil. O novo governo e o presidente serão capazes de equilibrar esses objetivos tão diferentes? A unidade social é preferível a uma abordagem de baixo para cima, ou exige vontade e decisões políticas?

Resta também uma questão ainda maior sobre se o destino do Líbano é realmente decidido dentro do país. Superpotências conflitantes, dentre as quais Estados Unidos, Irã e Arábia Saudita, mantém forte presença e influência na esfera política. Embora a integridade do tecido político e social demande esforços de todos os degraus da hierarquia, trata-se de um pré-requisito para a paz interna independentemente do que aconteça a seguir.

O tempo para medidas paliativas e promessas vazias de fato acabou. Os líderes libaneses devem agora transcender interesses estreitos e priorizar a sobrevivência do país. Isso implica em desmantelar o sistema sectário que perpetua a corrupção e a desigualdade, investir em instituições que sirvam a todos igualmente e promover uma cultura de diálogo e reconciliação.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.