Para Sama (إلى سما) é um documentário comovente sobre a guerra civil na Síria, produzido e narrado por Waad al-Khateab e codirigido por Edward Watts. Focando na vida de al-Kateab, seu marido, Hamzah, e sua filha, Sama, o filme oferece uma perspectiva íntima e angustiante da guerra no país. Este filme de 96 minutos é elaborado a partir de 500 horas de filmagens brutas e implacáveis da linha de frente, gravadas com a câmera amadora de al-Kateab, ativista e jornalista.
Filmado em vários locais no leste de Aleppo, o documentário reflete a dura realidade da Batalha de Aleppo, de 2012 a 2016, um impasse brutal de quatro anos que culminou na queda da cidade, controlada pelos rebeldes, para o regime de Bashar al-Assad. É também um relato em primeira mão da experiência feminina da guerra, encapsulando perfeitamente uma mistura de horror e esperança com uma narrativa poderosa.
Para Sama evita notavelmente narrativas políticas e ideológicas, optando por uma lente humanitária para retratar a crise. O documentário narra a luta de pessoas resilientes durante a guerra civil, dedicado à filha, ainda bebê, de al-Kateab, Sama, que nasceu em meio às ruínas da Aleppo devastada pela guerra. A história de Sama, que se tornou o farol de esperança de seus pais para suportar o conflito, é representativa das histórias das crianças da guerra síria.
No início do filme, em 2011, Waad é uma estudante do último ano de economia na Universidade de Aleppo, durante os primeiros estágios da revolução na Síria, parte da Primavera Árabe. A palavra “liberdade”, escrita em uma das paredes da universidade, em árabe, curdo e inglês, reflete os motivos pelos quais os protestos pacíficos começaram e o que buscavam alcançar. Manifestantes foram às ruas exigindo justiça, liberdade, dignidade e honra. Tamanha “revolução pacífica”, como diziam os cantos dos estudantes em Aleppo, foi um levante, a princípio não-violento, contra a corrupção, injustiça e opressão da ditadura de Assad.
À medida que o filme avança, acompanhamos a jornada de Waad: quando se apaixona por Hamzah, o casamento de ambos e o nascimento de Sama; então, a maneira como lida com a maternidade em meio a um conflito crescente.
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Seu marido, Hamzah, era ativista e médico, atuando nas equipes de primeiros socorros que ajudavam os feridos durante as manifestações, em um dos últimos hospitais ainda em funcionamento na cidade. O casal enfrenta o dilema angustiante de fugir para a sua segurança ou permanecer no caos para ajudar as vítimas da guerra e continuar lutando pela liberdade. Por fim, a família al-Kateab toma a corajosa decisão de permanecer em sua terra.
Horror
O filme alterna cronologicamente entre diferentes momentos, mas seu tema mais consistente é a violência e o medo, emoções que se destacam nas cenas ambientadas dentro do hospital, particularmente evidentes nos olhos das crianças que choram e gritam nos pisos ensanguentados. As cenas no hospital oferecem uma oportunidade de observar o coração do caos, onde vida e morte se entrelaçam a cada instante.
A religião surge a seguir como uma fonte significativa de resiliência e força, ajudando as pessoas a suportarem o conflito através de frequentes invocações a Deus, ou Allah.
A dor e o trauma vividos por pais e crianças na zona de conflito se mostram especialmente dilacerantes, como exemplificado por dois irmãos pequenos que, em meio ao pânico e ao desespero, levaram o corpo sem vida de seu irmão ao hospital improvisado de Hamzah. O momento em que uma mãe, em profunda angústia, abraça e carrega o corpo sem vida de seu filho remete àquele pai palestino que carregou seus filhos falecidos em uma sacola, quando eclodiu o genocídio israelense, ainda em andamento, na Faixa de Gaza.
Esperança
O caminho para a liberdade sempre foi repleto de perigos, como é dolorosamente evidente no filme. Essa realidade se demonstra pelas vivências da família al-Kateab e de outros manifestantes que, inicialmente, nutriam aspirações otimistas de derrubar o regime de Assad para alcançar a liberdade.
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A esperança, tema central do documentário, concede às pessoas a resiliência necessária para suportar circunstâncias horríveis. O casamento de Waad e Hamzah, sua decisão de ter um bebê e criá-lo em meio ao caos, plantar árvores no jardim, reconstruir o hospital destruído por um ataque aéreo russo e, acima de tudo, continuar sonhando com um futuro melhor para sua filha refletem sua esperança e seu otimismo duradouros.
Sama simboliza sua esperança de sobrevivência em meio à guerra e o profundo medo de perdê-la. Esse sentimento de otimismo também se observa na vida de amigos e vizinhos da família, como Afraa e seu marido, Salem, junto com seus três filhos, que mantêm uma visão positiva mesmo sob o cerco. Além disso, a determinação do filho mais velho de Afraa em permanecer em Aleppo, apesar dos bombardeios, juntamente com seu sonho de se tornar arquiteto para reconstruir a cidade, demonstra que essa esperança se estende até mesmo aos membros mais jovens da oposição.
Contudo, essa história, marcada por esperança e resiliência, culmina tragicamente com Aleppo — o último grande reduto rebelde — sucumbindo a Assad.
Uma cena em particular se destaca por seu profundo impacto emocional: uma mulher grávida de nove meses, ferida por um estilhaço em seu abdômen, passa por uma cesariana de emergência. A princípio, parecia que o bebê não havia sobrevivido, sem sinais de vida. No entanto, graças à persistência da equipe médica, e seus esforços de ressuscitação cardiopulmonar, o bebê começa a chorar e respirar. Esse momento súbito de transição, do desespero à alegria, leva o espectador a lágrimas de alegria — mãe e filho sobrevivem. O episódio serve como poderoso testemunho da dedicação de Hamzah e de seus 32 colegas médicos que optaram por permanecer no leste de Aleppo.
Violações
Para Sama se destaca como um documentário esclarecedor sobre a guerra civil na Síria, lançando luz sobre as violações generalizadas dos direitos humanos, a brutalidade do regime de Assad e o fracasso evidente da comunidade internacional em enfrentar as crises humanitárias resultantes.
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O regime de Assad, em sua tentativa desesperada de manter o poder, intensificou sua violência, sobretudo durante a queda do leste de Aleppo, que marcou um ponto de virada na guerra civil e resultou em abusos gravíssimos de direitos humanos voltados a quebrar a resiliência da população civil.
A descoberta de corpos civis massacrados em rios, com exames forenses revelando sinais claros de tortura, execuções com tiros na cabeça e uso de gás cloro, que fazia as crianças tossirem sem conseguir respirar, é uma das evidências das violações documentadas no filme. Táticas como ataques aéreos indiscriminados, o uso de bombas de barril para alvejar paramédicos e hospitais, a obstrução da ajuda humanitária e a imposição de cercos, junto com o deslocamento forçado de milhões de pessoas, a destruição em larga escala e o uso de armas químicas — tudo isso constitui crime de guerra.
Apesar das violações claras dos direitos humanos e da lei internacional, a comunidade internacional falhou, em grande parte, em prevenir a catástrofe que se seguiu. A Síria, sob o domínio brutal e despótico de Assad e de sua ditadura de partido único, exemplifica as medidas extremas que tais regimes estão dispostos a tomar para manter o poder, às custas de seu próprio povo.
Fracassos
Apesar do otimismo inicial e da ampla participação popular, a resistência síria — à época do filme — não conseguiu derrubar Assad. A repressão do regime e seus aliados esmagou os protestos, resultando em imensa tragédia a milhões de pessoas. Além disso, a falta de unidade entre as forças de oposição e o surgimento de várias facções extremistas enfraqueceram significativamente o movimento oposicionista, ao reforçar a ideia de que não há vitória sem união e solidariedade.
A diminuição do controle governamental criou, contudo, um vácuo de poder, preenchido por grupos adeptos a táticas terroristas, deixando civis presos no fogo cruzado. Por fim, o apoio aéreo da Rússia e o apoio terrestre do Irã a Assad, especialmente por meio de milícias xiitas, junto com a mudança dos Estados Unidos em apoiar certos grupos ao norte, em detrimento de outros, culminaram no colapso da oposição.
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Para Sama é um documentário comovente que expõe a contínua crise humanitária resultante da guerra civil na Síria — um dos conflitos mais significativos e duradouros no Oriente Médio no século XXI.
Como residente de Mardin, na Turquia, vivendo perto da fronteira com a Síria e observando indiretamente os efeitos devastadores da guerra, o documentário me impactou profundamente. Lamentavelmente, continuamos a testemunhar tragédias semelhantes se desenrolando no Oriente Médio, especialmente em Gaza, onde muitas outras crianças, como Sama, nascem em meio ao conflito.
Para Sama tem potencial de ampliar a consciência global sobre a crise humanitária na Síria, combater o aumento do racismo contra os sírios nos países vizinhos e fornecer uma explicação convincente sobre por que os sírios se viram forçados a fugir de sua terra natal.