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O soft power russo: Festival Mundial da Juventude em Sirius e Sochi

Festival Mundial da Juventude de 2024, em Sochi, na Rússia [Divulgação]

De 1° a 7 de março de 2024, a Rússia sediará o Festival Mundial da Juventude, a ser realizado na cidade de Sochi, na costa do Mar Negro. Além de Sochi, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, atividades serão conduzidas também no recém-criado Território Federal de Sirius. Trata-se de localidades vizinhas, destinos aprazíveis e com longa tradição de turismo e lazer.

No debate das relações internacionais, ao receber grandes eventos, um país está reafirmando o que descrevemos como “poder brando” — ou soft power, no termo em inglês. Iniciativas como essa buscam demonstrar a um amplo setor de países próximos as capacidades de diálogo e de influência em termos de valores sociais e realizações. Considerando a hegemonia ocidental (ou ocidentalizada) na penetração cultural global, o evento vai de encontro a antigas manifestações durante a Guerra Fria, quando a Rússia era o país-chave da extinta União Soviética (URSS) — Estado líder do bloco soviético e, em termos europeus, do Pacto de Varsóvia.

Uma das metas do Estado russo sob o comando do presidente Vladimir Putin é amplificar sua capacidade de diálogo e interpenetração. Após o ano 2000, o país se tornou mais conhecido no exterior por seu complexo aparelho de segurança e defesa composto pelo Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB), o Serviço Externo de Inteligência (SVR) e a relevante Agência Militar de Inteligência (GRU). Outro aspecto notável é o retomada pelo Estado de empresas de energia fundamentais para a própria existência do território integrado, como a Gazprom, maior exportadora de gás natural do mundo; a Rosneft, mais dedicada ao setor de petróleo, entre as maiores do planeta; e a Lukoil, segunda maior produtora de petróleo do planeta e segunda mais forte corporação empresarial.

Sem a retomada de controle das três corporações supracitadas — todas com a maior parte de ações subordinadas ao Kremlin — e na ausência de uma expertise em segurança e defesa, a grande probabilidade é que a Rússia sequer continuasse existindo. Um complexo arranjo entre a elite dirigente estatal e os oligarcas do capitalismo pós-soviético foi a saída encontrada pelos herdeiros de Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Catarina II e Joseph Stálin — que mesmo sendo georgiano era um líder “russificado” — para anteparar o saque e a dilapidação ainda maior do patrimônio construído a partir de 1917 e garantir boa parte da extensão territorial consolidada com as campanhas militares dos Romanov em meados do século XIX.

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Com a retomada das capacidades russas no século XXI, o mundo pós-Guerra Fria, até então sob a hegemonia dos Estados Unidos, mudou de maneira vertiginosa. Através do desenvolvimento econômico da China, da Organização de Cooperação Xangai e a aproximação sino-russa através dos acordos de exploração do petróleo no Cazaquistão, o “grande xadrez” eurasiático projetado pelo analista estadunidense (de origem polonesa) Zbigniew Brzezinski (1928-2017) simplesmente não se realizou. Se levarmos em consideração os acontecimentos na região do Sahel e na África Subsaariana, assim como a troca das elites locais, ao rematar lealdades com antigas metrópoles ocidentais e se aproximar da órbita de poder da Rússia e da China, observamos que, de fato, o mundo já mudou.

Para o jogo duro do Sistema Internacional, “equilíbrio” é uma conta complexa que no final da equação está em certa paridade de armas na correlação de forças. O binômio Rússia e China e o multilateralismo econômico promovido por dentro do BRICS e além dele, fazem do Estado comandado por Putin um agente geoestratégico de primeira grandeza no tabuleiro do Poder Mundial. A integração econômica eurasiática, o pragmatismo diplomático e o desenvolvimento de relações econômicas sem o uso do dólar — tal como ocorrem com Rússia e Irã, por exemplo — operam como uma baliza para uma economia global desdolarizada.

 O programa central do Festival

 Para o Festival Mundial da Juventude em Sochi, são esperados 20 mil jovens de toda a Rússia, além de estrangeiros. Os debates e atividades devem girar em torno de diversos temas, entre os quais: esportes, mídia, projetos sociais, ciência, empreendimento, voluntariado, cooperação internacional, educação, cultura e defesa da infância.

O esforço de aproximação de “jovens líderes” é significativo. O Estado russo, por meio de seu governo central — considerando que o festival foi estabelecido por decreto — terá as seguintes atividades de produção de conteúdo e difusão de diplomacia pública:

 CONHECIMENTO: PRIMEIRA MARATONA

 Palestras, workshops, mesas redondas e programas de discussão com os principais palestrantes russos e estrangeiros serão realizados como parte da maratona Knowledge First. A parceria é com a Sociedade Russa do Conhecimento.

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 MEDIA PROFILE: PUBLICAR, COMUNICAR, PROMOVER

 Os convidados do festival participarão de um jogo de negócios. Por um curto período, devem se sentir como verdadeiros produtores de mídia. Durante o evento, aprenderão com especialistas da Universidade de São Petersburgo sobre criação, distribuição e promoção de conteúdo em canais digitais. A parceria é com a instituição de ensino acima citada.

 100 PAÍSES DO MUNDO FALAM SOBRE EDUCAÇÃO NA RÚSSIA

 Os líderes de cinco associações de estudantes da Ásia, África, Oriente Médio, Europa, América Latina e Caribe se dirigirão aos participantes do evento. Cem estudantes da Universidade Russa de Amizade dos Povos (RUDN) — herdeira da tradição de Patrice Lumumba —, incluindo líderes de comunidades acadêmicas, estarão conectados à transmissão e responderão às perguntas dos convidados do festival online promovido por Moscou. A parceria é com a instituição de ensino acima citada.

 7º FÓRUM GLOBAL DE JOVENS DIPLOMATAS

 O festival receberá também uma conferência tradicional de oficiais de ministérios de Relações Exteriores de todo o mundo, que operam de acordo com o conceito de “diplomacia horizontal” desenvolvido na Rússia. O seu principal objetivo é criar e fortalecer as bases de uma amizade mutuamente benéfica e de longo prazo entre diplomatas que irão, a médio prazo, determinar a política externa dos seus países. A parceria é com o Conselho de Jovens Diplomatas do Ministério de Relações Exteriores da Rússia.

 ENCONTRO INTERNACIONAL DE JOVENS FUNCIONÁRIOS DE BANCOS CENTRAIS

 No âmbito do encontro de futuros líderes, estão também jovens funcionários em potencial dos Bancos Centrais, com a realização de três mesas redondas para troca de experiências, discussão de exemplos de cooperação internacional e análise do trabalho dos bancos nacionais da União Econômica Eurasiática (EAEU), como exemplos notáveis de atividades conjuntas bem-sucedidas. A parceria é com o Banco Central da Rússia.

 CRÍTICA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PALESTRA SOBRE NEUROCIÊNCIA, POR TATYANA CHERNIGOVSKAYA

 Uma equipe de pessoas com conhecimento e experiência especiais em filosofia desafiará a inteligência artificial baseada em algoritmos avançados de aprendizado de máquina para discutir as ideias-chave de Immanuel Kant relacionadas a conceitos de ética, cognição e moralidade. O público será convidado a fazer perguntas e participar de discussões. A cientista russa Tatyana Chernigovskaya dará uma palestra sobre neurobiologia. Tatyana deve abordar as mais recentes pesquisas e conquistas neste campo. A parceria é com a Universidade Federal Báltica Immanuel Kant.

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A programação central deve contar ainda com “Slam, Show de Ciência”, o “Triátlon de Engenharia Internacional: Batalha de Robôs” e a “Plataforma Pró-Ciência”. Desta forma, vertentes distintas de conhecimento e realização de poder contemporâneas serão abordadas pela iniciativa posta pelo próprio presidente Putin.

 Conclusão: A Rússia disputa um espaço eurasiático e transnacionalizado

 O esforço do Kremlin em realizar este festival visa também romper o isolamento forçado através dos meios de comunicação ocidentais — assim como da diplomacia pública realizada através do controle do algoritmo das redes sociais coordenadas junto à Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos.

O descrito acima traz uma pequena parte da programação em sua vertente mais significativa, ao tratar dos eixos estratégicos da disputa pelo Poder Mundial no segundo quarto do século XXI.

Na concorrência intracapitalista, entre BRICS e OCDE, a Rússia multifacética — indo além de sua já comprovada capacidade em segurança, defesa, inteligência e recursos energéticos — é um reforço considerável para o bloco econômico que avança junto da desdolarização. O Festival de Sirius e Sochi reflete consideravelmente essa manobra estratégica adotada pela Kremlin para a difusão do “soft power” russo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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