Portuguese / English

Middle East Near You

Guerra em Gaza: Política externa dos EUA precisa de botão de reset em 2024

Presidente dos EUA, Joe Biden, na Casa Branca, em Washington D.C., 28 de agosto de 2023 [Celal Günes/Agência Anadolu]

Em um ensaio de política externa publicado em outubro, o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca. Jake Sullivan, escreveu com extraordinária confiança que a região do Oriente Médio estava “mais quieta do que havia estado em décadas”. A sentença, pouco depois, foi removida da versão online da publicação.

Sullivan creditou Washington pela desescalada do conflito entre Israel e Palestina, afirmação que nada tem a ver com a realidade lúgubre imposta a Gaza desde então. A discrepância de sua análise frente aos eventos ainda em curso levanta dúvidas sobre como um oficial de tão alto escalão nos Estados Unidos poderia estar tão equivocado em caracterizar, avaliar e, em particular, antecipar o futuro próximo do Oriente Médio.

O padrão de erros grosseiros no julgamento político, no entanto, não se restringe a Sullivan ou à atual gestão do presidente democrata Joe Biden. Muito pelo contrário, reflete crenças delirantes de administrações prévias, incluindo a gestão do republicano Donald Trump, cujos pressupostos pareciam dizer que ignorar a questão palestina não teria consequências — ou ainda, que desprezar abertamente os direitos fundamentais do povo palestino não levaria a uma resposta substancial de palestinos, árabes e muçulmanos.

O impacto de tamanha miopia é evidente, ao refletir políticas adotadas por gabinetes ainda mais longínquos em Washington, como aqueles que recorreram aos equívocos e às mentiras sobre o Iraque e o Afeganistão, sobre o período de Primavera Árabe, sobre o acordo nuclear iraniano, sobre a guerra civil na Síria, entre muitos outros exemplos.

LEIA: EUA e Israel na areia movediça

Nos disseram que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 pretendiam acabar com a democracia e a própria noção de liberdade da civilização ocidental; que o ex-presidente do Iraque, Saddam Hussein, guardava armas de destruição em massa; que o presidente da Síria, Bashar al-Assad, era um reformista; que a tomada do poder no Egito, pelas forças do general Abdel Fattah el-Sisi, não era um golpe de Estado; que o acordo com Teerã seria respeitado, a fim de tornar a região um pouco mais segura; que Israel era uma democracia plena; e assim por diante.

Uma análise crítica da política americana sobre a região, não obstante, revela um padrão de avaliações e decisões fatalmente incorretas, que não somente fracassaram em salvaguardar os interesses de Washington, como diversas vezes recaíram em uma certa auto-sabotagem, ao desestabilizar toda a região e mergulhá-la em guerras sem fim.

No coração de tamanho fracasso, repousam três fatores fundamentais: o papel de lobistas nas instituições americanas; a orientação ideológica das elites; e a influência das diferentes  mídias e dos think tanks emergentes no país.

Ganhos a curto prazo

Quem sabe, o impacto mais direto provém de grupos de lobby, que exercem uma influência considerável nas decisões do Congresso, ao pressionar pela adoção de políticas alinhadas a interesses particulares em vez de pautas públicas mais abrangentes.

Os acadêmicos Stephen Walt e John Mearsheimer apontam como o lobby sionista impõe um efeito bastante pejorativo aos interesses nacionais dos Estados Unidos, ao incorrer em uma paisagem política que costuma refletir com mais frequência demandas de lobistas do que as necessidades do público — incluindo ao ignorar as realidades complexas do Oriente Médio. Tamanha influência é particularmente notável em políticas relacionadas a assistência militar, sanções econômicas e diplomacia — onde a voz de lobistas tem peso considerável.

LEIA: A crise de Israel é a crise dos EUA

Além disso, a crescente polarização ideológica nos Estados Unidos levou a uma política para o Oriente Médio que muitas vezes reflete mais as agendas domésticas dos grupos de poder do que qualquer realidade em campo. Tudo isso distorce o processo de tomada de decisões, ao favorecer ganhos de curto prazo em detrimento de estratégias duradouras. Como se não bastasse, políticas centradas no interminável ciclo eleitoral, ao interpretar a política externa, sobretudo no que diz respeito ao Oriente Médio, através de lentes partidárias, leva a ações e posicionamentos cada vez mais incoerentes e contraditórios.

Somando-se a todos esses problemas, está o papel das plataformas de rede social e de think tanks na política americana. Estes costumam promover e disseminar narrativas enviesadas e até mesmo retóricas racistas e intolerantes sobre as questões complexas do Oriente Médio. Tais instituições buscam manipular a bel-prazer a opinião pública e a pauta política, muitas vezes ao priorizar o sensacionalismo e os interesses de núcleos ideológicos radicalizados no lugar de análises detalhadas e equilibradas.

A representação imposta sobre o Oriente Médio por grande parte da imprensa corporativa dos Estados Unidos transborda de estereótipos e simplificações grosseiras, ao contribuir a um discurso público que carece de contexto, profundidade e mesmo compreensão. Os think tanks — ou laboratório de ideias, no jargão do empreendedorismo de baixo conteúdo — são também repletos de inclinações ideológicas e financeiras, ao manipular pesquisas, estudos e recomendações como lhes convêm.

Essa aliança trilateral no ambiente americano levou a uma série de disparates políticos, ao culminar em alianças e parcerias inconsistentes e prejudicar a confiança e credibilidade dos Estados Unidos não apenas no Oriente Médio, mas em todo o planeta. Nos últimos anos, o establishment americano se viu cada vez mais pego com a guarda baixa nos eventos que se impõem ao Oriente Médio, sobretudo porque as políticas adotadas carecem de uma análise profunda ou compreensão factual sobre a região.

Tamanhas gafes não apenas tornam a região e todo o mundo cada vez mais perigosos, como colaboram para o franco declínio da posição de poder e do status internacional dos Estados Unidos da América. Mesmo as elites no país proferem declarações cada vez mais delirantes e díspares sobre o que fazer e para onde ir.

Janela de oportunidades

Para retificar tais equívocos, a Casa Branca precisa mudar drasticamente sua abordagem em relação ao Oriente Médio. Esforços neste sentido envolvem libertar-se de figuras parasitárias que sequestram suas políticas, ao cultivar um posicionamento menos ideológico na tomada de decisões e garantir que os passos adotados se baseiem em análises estratégicas sobre os vários desafios que circundam a matéria, em vez de considerações eleitoreiras de evidente miopia doméstica.

LEIA: Guerra a Gaza: Ocidente no banco dos réus junto de Israel

Redes de comunicação — seja a imprensa convencional ou as mídias sociais — deveriam se comprometer com uma representação mais balanceada dos assuntos do Oriente Médio, ao respeitar suas nuances e alimentar um debate público que seja bem informado, equilibrado, respeitoso e isento de estereótipos e preconceitos.

Sobretudo, seria preciso regular a influência dos grupos de lobby no Capitólio, ao assegurar que as decisões políticas sejam tomadas no melhor dos interesses da maioria dos cidadãos americanos, para além dos povos afetados no exterior, em vez de um punhado de empresas, investidores e corporações.

Diante dos impactos de longo alcance do genocídio israelense contra a Faixa de Gaza, no que diz respeito à posição geopolítica, aos interesses estratégicos e mesmo à credibilidade dos Estados Unidos, seria sensato à Casa Branca começar daqui e então reavaliar, passo a passo, sua política ampla para o Oriente Médio. Comunidades inteiras na região e além, incluindo em países do Sul Global, veem os Estados Unidos como inimigo, seja por sua ingerência no passado, seja por seu apoio imoral e injustificável às ações de Israel.

Para sobreviver às implicações da guerra em curso e evitar ceder terreno a adversários como China e Rússia, os Estados Unidos têm de aproveitar a janela de oportunidade ainda aberta, embora bastante frágil, para obter da crise uma paz abrangente, justa e sustentável — isto é, uma paz que permita ao povo palestino obter plenamente seus direitos legítimos e instituir, portanto, um Estado livre, soberano e independente. Menos do que isso, no entanto, será como condenar os Estados Unidos — quem sabe, o mundo — a consequências pejorativas de longo prazo.

Washington deveria condicionar qualquer apoio futuro ao Estado de Israel à conquista dessa paz supracitada. É crucial ao país garantir que os dólares do contribuinte não sejam usados para dar suporte ao regime de apartheid israelense, assim como suas operações de limpeza étnica e colonização através da força das armas. Além disso, os Estados Unidos devem deixar de encorajar autocracias regionais com intuito de proteger Israel e priorizar, no entanto, uma estabilidade genuína com verdadeira participação popular — que leve em consideração os anseios e a vontade dos povos.

LEIA: Como a guerra israelense em Gaza expôs o sionismo como uma seita genocida

É fundamental à Casa Branca reconhecer que os acordos com governos sem representação não são sustentáveis, tampouco servem a seus interesses e muito menos legitimam de fato a presença e o envolvimento de Israel em toda a região. O enfoque deveria inclinar-se a ações que estimulem uma estabilidade genuína, mediante instauração de governos responsáveis e verdadeiramente democráticos, em vez de regimes opressores e assassinos.

Este artigo foi publicado originalmente pela rede Middle East Eye em 11 de janeiro de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
AfeganistãoÁfricaArtigoÁsia & AméricasEgitoEstados UnidosIrãIraqueIsraelOpiniãoOriente MédioPalestinaSíria
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments