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EUA e Israel na areia movediça

O exército israelense evacua seus soldados que foram feridos em batalhas em Gaza por meio de um helicóptero para tratamento médico no Hospital Beilinson, perto de Tel Aviv, Israel, em 18 de dezembro de 2023. [Nir Keidar/Agência Anadolu].

Já está muito claro que Israel não vai ganhar nenhuma guerra em Gaza. A vitória em uma guerra como esta, que é uma guerra imperialista, colonial e de invasão, não tem a ver com a devastação causada ao país atacado, mas com a dominação político-administrativa e a consequente estabilização desse domínio. Para vencer, Israel precisa afastar o Hamas do poder e aniquilar seu potencial de oposição, instalar um regime títere e pacificar a Faixa de Gaza – aos moldes do que a OTAN (EUA) fez no Kosovo. E a história já mostrou que isso é inviável em Gaza, pois desde 1948 o estado é de guerra sem fim (apenas com algumas desescaladas momentâneas) em todo o território da Palestina histórica.

Israel reúne as principais características de um invasor derrotado: crise política e econômica interna, despreparo e desmoralização do exército, oposição da opinião pública mundial e, por outro lado, a resistência ferrenha do inimigo. Sua situação é muito semelhante à dos Estados Unidos pós-1968 no Vietnã ou na segunda metade do período de ocupação do Afeganistão. A diferença é que esse cenário extremamente negativo é uma realidade já nos primeiros três meses de guerra (para não dizer desde o primeiro dia).

No âmbito militar, as Forças de Defesa de Israel acumulam vexame atrás de vexame, demonstrando uma falta impressionante de preparação para o exército que sempre foi considerado um dos mais temidos do mundo: dispararam contra seus próprios cidadãos quando da ofensiva da resistência palestina em 7 de outubro (se é que não foi proposital), bombardearam seus próprios cidadãos que haviam sido capturados pelos palestinos em Gaza, mataram 30 de seus próprios soldados como resultado de “fogo amigo”, muitos militares em posição de comando são absolutamente inexperientes e ao menos 2.800 tiveram de receber tratamento psicológico por traumas de guerra.

Por seu turno, o inimigo está com a moral alta (as pesquisas de opinião mostram um aumento na já elevada popularidade do Hamas e uma crença dos palestinos na vitória) e, se os combatentes representam cerca de 10% dos 23 mil palestinos assassinados em Gaza, essas baixas não chegam a 5% do número de militantes armados da resistência. Israel emprega mais de 250 mil soldados da ativa e outros 200 mil reservistas na guerra, mas a quantidade de tropas conta pouco em uma guerra irregular e assimétrica como esta, contra algumas dezenas de milhares de guerrilheiros urbanos que podem aparecer a qualquer momento na frente de um soldado, saindo de túneis, casas, becos e buracos. Muitos soldados israelenses, despreparados e inexperientes, seguram seus fuzis borrando-se nas calças. Até agora, cerca de 180 militares de Israel foram mortos na invasão a Gaza, com o número de soldados feridos podendo chegar a 20 mil, segundo uma reportagem da Bloomberg. Embora as baixas fatais sejam pequenas se comparadas com as do adversário, são as maiores que Israel já teve nesse tipo de guerra contra a resistência palestina, o que levou o Washington Post a chamar de “histórica” a taxa de soldados israelenses mortos.

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No âmbito político interno, “2023 foi o pior ano da história de Israel”, segundo o Haaretz, o principal jornal do país. O governo mais reacionário ideologicamente que Israel já teve, ainda mais do que as administrações anteriores de Benjamin Netanyahu, chegou ao poder como resultado de um acordo que indicou a opção do imperialismo americano por endurecer o regime do Estado fantoche e artificial diante de um cenário que já se sabia cada vez mais complicado para Israel, com o fortalecimento do Eixo da Resistência. A extrema-direita foi escolhida na falta de opções que pudessem estabilizar minimamente a situação política conturbada e garantir as posições dos EUA na região. O grande problema é que os fundamentalistas sionistas não querem estabilizar nada e suas soluções para a sobrevivência da colonização da Palestina não passam pela diplomacia – os ganhos com ela são parciais e demorados demais para seu gosto. Netanyahu e sua gangue entraram, assim, em choque com a tática estabelecida pelo imperialismo em Israel – e isso, como acabou ocorrendo, geraria uma instabilidade que poderia ser fatal. Por isso os EUA estão utilizando o Poder Judiciário para tentar retomar as rédeas da política israelense a fim de que essa divergência tática (que, inclusive, levou Netanyahu a se aproximar de Putin) seja dissipada. As manifestações de rua, que no fundo expressam o enorme descontentamento de uma parte dos israelenses com a tática de Netanyahu e com a instabilidade gerada por ela, têm o apoio da CIA (como foi reportado pela imprensa norte-americana), porque, já no início de 2023, era possível presumir um destino desastroso para o regime sob a condução de Netanyahu. A Operação Tempestade de al-Aqsa veio para aprofundar essa crise política de uma maneira dramática. As divisões chegaram à alta cúpula governamental, com trocas públicas de farpas entre seus membros.

A Tempestade de al-Aqsa está desferindo duros golpes na economia israelense. A guerra consome 220 milhões de dólares diariamente, superando o orçamento anual para a segurança do Estado. O déficit orçamentário subiu de 2,6% do PIB em outubro para 3,4% em novembro e deixarão de ser arrecadados 20 bilhões de dólares no começo de 2024. Houve uma queda de 12% no mercado de ações, redução do consumo e da arrecadação de impostos e um abalo na confiança dos empresários e investidores. Milhares de trabalhadores estrangeiros fugiram de Israel desde outubro, enquanto o governo suspendeu o contrato de 100 mil trabalhadores palestinos e 20% dos trabalhadores israelenses foram convocados para a guerra – sendo 15% no setor de tecnologia, o carro-chefe da economia, despencando a arrecadação das empresas do ramo em 56%. Cerca de 900 mil pessoas (incluindo trabalhadores altamente qualificados de setores-chave da economia) chegaram a deixar seu trabalho devido à guerra, fora os 230 mil evacuados das fronteiras norte e sul. O governo está tendo de arcar com os custos dos deslocados e do salário dos reservistas convocados para o exército.

O porto de Eilat, o principal de Israel, praticamente não funciona mais desde o bloqueio do Mar Vermelho pelos houthis. Os corajosos iemenitas, com um simples movimento, atingiram o calcanhar de Aquiles do regime de ocupação da Palestina. Principalmente porque, além de agudizar a crise econômica dentro de Israel, está apertando fortemente o calo dos financiadores do genocídio promovido por Tel Aviv: as grandes potências ocidentais, controladoras do sistema econômico internacional. A BBC informa que as taxas de transporte marítimo chegaram a aumentar em até 250% para importadores do Reino Unido, porque os ataques contra navios de ou com destino a Israel que passam pelo Mar Vermelho e o estreito de Bab al-Mandab levaram as empresas transportadoras a evitarem esse trajeto, mesmo que não tenham vínculo com Tel Aviv. Assim, devem optar por rotas mais longas e, portanto, mais caras, repassando o prejuízo para seus clientes, que, por sua vez, repassam para os consumidores finais.

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O mercado petrolífero mundial é um dos mais prejudicados. Na reta final de dezembro, o preço do barril de petróleo chegou ao pico de 80 dólares (Brent), o maior em dois meses. O novo ano começou seguindo a tendência de alta: na sexta-feira (05), a Brent fechou em quase 79 dólares o barril e a West Texas Intermediate em quase 74. Na esteira da corrida pelos trajetos marítimos, o Egito está aumentando a taxa da passagem pelo Canal de Suez em até 15% a partir deste mês, elevando drasticamente os custos de transporte de petróleo e contêineres. “As artérias pelas quais passa 90% do comércio mundial estão ficando bloqueadas”, lê-se em um artigo do The Telegraph.

O que já é ruim vai ficar ainda pior

“O comércio global poderá ter um 2024 sombrio”, prevê o mesmo artigo. O seu autor, um ex-oficial da marinha britânica chamado Tom Sharpe, recorda que, “historicamente, a Marinha Real foi o garantidor da segurança marítima” e que, “hoje, este papel cabe à marinha dos EUA, e é um papel cuja sua falta de combate no Mar Vermelho sugere que está cada vez mais cansada de assumir”.

Talvez não seja exatamente cansaço, mas impotência. A operação naval anunciada pelos EUA para desbloquear o Mar Vermelho desmoronou antes mesmo de começar, com vários países aliados dos americanos pulando do barco (com o perdão pelo trocadilho). A marinha americana, praticamente sozinha, ainda não teve coragem de realizar nenhuma ofensiva contra as posições dos houthis, responsáveis pelo que o Wall Street Journal chamou de “a ameaça mais significativa à navegação global em décadas”. A pior notícia para os americanos é que Bab al-Mandab e o Mar Vermelho – cujo fechamento já foi o suficiente para sangrar Israel e seus criadores – podem ser apenas o começo de uma hemorragia fatal. O Irã e seus aliados ainda têm muitas cartas na manga, como o bloqueio do Mediterrâneo, do Estreito de Ormuz e de outras passagens vitais. Por exemplo, por Ormuz passa cerca de metade do carregamento mundial de petróleo e o fechamento desse estreito causaria a quebra do mercado petrolífero e financeiro, segundo os analistas. “As fundações do sistema comercial global estão tremendo”, comenta Sharpe.

Há previsões de que um bloqueio completo do Mar Vermelho poderia custar 10 milhões de dólares por dia a Israel, enquanto a entidade sionista não encerrar seu genocídio em Gaza. E, com este continuando ao longo de 2024 (como já reconhece o próprio Netanyahu), os custos da guerra deverão ser iguais a 10% do PIB de Israel. O Ministério das Finanças estima que, caso ela dure até fevereiro, isso vai custar 14 bilhões de dólares – quase triplicando o déficit orçamentário. Economistas consultados pelo Washington Post preveem uma contração econômica para este ano e estimam que os prejuízos para a economia israelense serão piores do que os causados pela pandemia do coronavírus.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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